É pelo dedilhar dos teus dedos
Que se agitam eruditos e galopantes
Numa dança auspiciosa
Que parecem levitar sobre as cordas da velha sitar
Nesse movimento ondulante
Ora veemente
Ora calmo e doce
Que mostras todo o teu virtuosismo!
A Índia
Essa colossal região do globo
Que doma, amança os mares mais agitados
Capaz de quebrar o gelo que separa as culturas
Servida pela sua métrica musical
Os seus ritmos apressados
Que parecem as suas gentes a deambular nas cidades
O calor avassalador
Não dá descanso ao subliminar tigre
Um símbolo da força e do poder indiano
Pululado dos palácios coloridos
Dos velhos marajás
Que vivem do passado grandioso
E que hoje se alimentam
Das esgueiras que sustentam as amontoadas salas
Rodeados de uma paisagem interminável
Que celebra todos os dias
Os alvores matinais
De sóis que despertam sempre tão cedo
Envoltos numa bola avermelhada
Que parece raiada de sangue
E que celebra essa música sublime
Do velho tocador de Sitar
Mas a Índia
Está dentro de nós
Com aquela grandeza de cultural milenar
Palco de tanta mortandade
Crueldade mesmo
Mas tanta epopeia
Também se pode afirmar
Da sua doce forma de ser
E dessa palavra mágica
Que dá pelo nome de Índia!
De repente,
Ouço o colorido pavão
Com as suas vestes azuis
Que ecoa o seu canto pela planície
À espera de uma companheira para copular
De noite nas árvores
De dia no chão…
Afinal o velho tigre emerge discreto
De sitar no regaço
E toca furiosamente a raga
Tão acutilante
Que me rendo à figura do mestre:
Ravi Shankar!
Respiras
Ainda
O ar da liberdade que adoravas
Ainda que esse respirar seja já um leve sopro
Que já não alimenta essa tua velha carcaça
E é nesses instantes de silêncio
Entrecortados pelo arfar do ar que te entra nos pulmões
Que, lentamente, te vais despedindo
De mim, de uma vida prazerosa,
E eu regozijado com o privilégio que foi ter-te estes anos todos;
Longa vida canídea a tua
E por mais que olhe para trás
Estás sempre omnipresente nas minhas memórias
E mesmo com tantas pessoas que tão mal me fizeram
E desaparecerem, esfumaram-se
E outras que tão bem me fizeram
Incluindo, parirem-me
E partiram
Mas tu velho amigo
És e serás sempre diferente de tudo e de todos;
Embora não o tenhas feito ainda, mas pressinto a tua partida está para breve;
Desde os primeiros instantes
Ainda como cachorrinho
Perseguias-me sem cessar
Parecia que o teu mundo era o meu
Olhavas-me com total enlevo
Com uma adoração que só os cães o sabem fazer
Como não te poderia adorar
Meu lindo cachorrinho?
Mas agora que assisto ao dealbar da tua última partida
Olho-te já com a recordação de 17 anos de vida em comum
Na qual foste tudo para mim
E como gostavas de te sentar a meu lado no sofá
Com o olhar deslumbrado
À espera de um afago ou de um olhar enternecido…
E nestes últimos instantes de vida
Pareço ouvir o teu ladrar
Os teus gemidos
A força da tua determinação
Só para estares onde eu estivesse…
Mas isso são já memórias
Apenas
Porque o que eu vejo é a tua cabeça
Que se agita suavemente
Para cima e para baixo
Com um movimento pendular
A teimar em prolongar a tua vida
Para estares mais uns instantes comigo
Mas sinto-te cansado e sem retorno
Alquebrado e tonto
A serpentear na frente do meu olhar no escuro
A aguardar que o barqueiro de vestes negras
Te leve até à outra margem
Que ninguém até hoje ousou conhecer
E tu
Depois desta derradeira viagem
Aguardarás que eu transponha o rio
com o barqueiro de vestes negras a meu lado
Para nos reencontrarmos na eternidade
E voltarmos a ser o que sempre fomos
Unidos pelo destino
Separados ocasionalmente
Ligados eternamente!
Uma ténue poeira
Que naquele tempo parecia esdrúxula
Disseminada e leve
Girando e pairando no ar
E quase parecia suspender o seu passo
E dar de si toda uma vida
Abateu-se debaixo do manto colorido
Das minhas memórias
E sentindo o odor
Ao pó deslavado
Que
Dia após dia
Ano após ano
Se foi acumulando
Em todos os retratos
Que testemunharam a tua existência
Na leveza de um voo de uma borboleta
Até que me deixei permanecer absorto e fixo
Por uns instantes
A olhar as paredes da velha casa simples e humilde
A sentir o odor a gado
Do leite fresco matinal
E os estridentes zumbidos dos insetos
Que esvoaçavam pelas redondezas
Mas a velha caixa conserva ainda os brinquedos dos meninos
Coisas simples, mas poderosas,
Porque ainda hoje
Fazem-me evocar os corroídos botões
Que rolavam perante o olhar dos petizes
E que acabavam por se perder nos intervalos do soalho;
Partiste criança, muito criança, ainda
E, como Anjo que partiste,
Acabaste no lugar destinado aos anjinhos
De repente,
Adoeceste e foi tudo num ápice
Acabaste por partir
Ainda mais inocente
Do que quando saíste das entranhas da tua mãe
Ficou o teu irmão
Forte e corajoso
Mas que nunca te esqueceu
E que deambulou uma vida preenchida
De um sítio para o outro
Instável
Em busca do Benjamin que conheceu em criança
Que tão precocemente acabou por ser sepultado
Na terra espúria que resolveu não seguir os desígnios da natureza
Que
Mais tarde
Engoliu os pais e o irmão
Mas ainda hoje
Diz-me o coração
Os dois irmãos continuam a deambular por ali
A brincar com os botões
Perante o olhar atento e aprumado dos pais;
O que é uma vida?
Se ela é ignorada;
O que é a morte?
Se ela é esquecida?
O que é nome?
Se já não estão os que
Outrora
Tanto chamaram pelo teu nome:
Benjamin…Benjamin…
Nesse desfiladeiro
Escuro como breu
Agnóstico
Que tresanda a terra esventrada
Para onde acabaste depositada
Depois de mais de uma década
A carregar padecimento e dor
Acabaste por desistir e perecer
Silenciando-se essa tua voz fina e elegante
Congelando-se a bela harmonia desse teu corpo jovem
Com que foste bafejada à nascença
Para onde foste lançada
Nesse mar gélido
Que queima quem nele toca
Mesmo que ao de leve
Como um voo de uma libelinha
A roçar na linha de água
Deixaste de ser
Para ser referenciada
Num simples papel registado
Numa obscura repartição pública
Tal como quando nasceste
Saíste do ventre da tua mãe
E
Fechando um ciclo
Para abrir outro
Agitastes as minúsculas mãos para cima
E deixaste sair os primeiros gritos
Com um sorriso estampado no rosto da mãe
As flores nos campos circundantes
Que tantas vezes passaram pelas tuas jovens mãos
Deixaram de ter esse teu olhar
A candura das tuas mãos
O alcance do olfato
Que alcançava o teu efervescente coração
Que começou
Desde muito cedo
A crescer de alvura
Para onde sempre guindaste os teus pensamentos
No lugar do rio
Que corria lá em baixo
Suave e terno
E que tantas vezes desejaste navegá-lo
Cresce agora a erva que pisaste
O musgo que colheste por alturas do Natal
As oliveiras que datam o sagrado na tua vida
As videiras milenares desse Douro
Abençoado
Com que nunca se alcança todo o seu esplendor
Por um olhar
Mas que se sente
E inspira tanto
Quando se inala o pó que desvanece
Das suas sequiosas terras!
Das palavras
Tão gastas e espezinhadas
Pelo chão que pisa
Pela voz intransigente
Ainda que meia deslavada
Que engrossa para caluniar
Quem dele pense de modo diferente
Teremos
Outra vez
Um quadriênio
Pululado de asteriscos
Que vivem para servir
Tão vil senhor!
Pareço contido
Mas esvaio-me em pensamentos
E não encontro a razão
Porque a humanidade
Está tão desumana;
Que nos resta
Pois
Se não
Olhar para trás
E ver que
Pelo menos
O senhor não tem vaipes de serial killer
Não usa aquele famoso bigode
Afunilado de broxa
E já cã não está a Leni Riefenstah
Que propagandeava os feitos
E as paradas militares dos nazis!
Por isso se diz frequentemente
Que a História sempre se repete
Ainda que com outra roupagem.
E quando o sonho
Surge ondulante
Perto da pureza
Que
Roça a imensidão do céu azul
Aí sentiremos a imortalidade…
Das estrelas viemos
A elas regressaremos
Para suspirar
Então
Na infinita leveza
No meio de todos nós
Ungindo a vida
Para fazer dela
Muito mais do que um instante!
Resplandece
Encerrado no interior
Na arca que me deixaste
Lançando-me
No encalce desse mistério
Que se adensa como nevoeiro
E que mais não é do que amor eterno
Que nem o frio glaciar
Nem o calor mais tórrido
Conseguem abominar
Lá dentro
Deixaste a essência da tua paixão
Que foste apreendendo a verberar
O que de ti
Saí
Em catadupa
Como a água nas correntezas
Saltitantes de um rio
Verdadeiramente aflitivo
Nessa espuma regeneradora
Que o vai purificar
Afirmaste-te
Nessa caixa
Que deixaste
À minha porta
E logo percebi
Que dela emanavam os teus carateres
Desenhados a caneta
Onde costumas erguer e dar corpo
A certas palavras
Que acabam ganhando um fulgor e uma dimensão gigantesca
Cedi ao meu desejo
De a abrir
Mas isso
Não bastou para fazer crescer em mim
A imensa curiosidade
Que está para além de a esventrar
Prefiro
Aguardar
Por fim
Pela surpresa
Lançando um olhar
Até ao teu coração catita
Que bate tão forte
Que se alimenta de ternura:
Em tudo
Tu
Transformas as mais singelas vivências
Em abalos sísmicos de emoções
Um dia de cada vez
Hoje uma caixa
Amanhã
Quem sabe
O teu reino
Que não é desta vida!
Que não dorme
Que se ergue
Das profundezas do chão
Regressada
Das pequenas frestas
Lançando o manto tisnado
Do reino dos silêncios
Lá onde
A Rainha
Essa sim
Dorme
Entre a lentidão
E a obesidade
Entre a vida e a morte
Mas que vai até à eternidade;
Formiga
Laboriosa
Cabeça móvel e atenta
Nas extremidades
Antenas eriçadas em alerta
Patitas levitando no solo
Como os irrequietos alfaiates na água doce
Sempre à procura
Sempre à procura
De uma iguaria
Para levar para o formigueiro
E a cigarra?
Aspira a ser formiga
Quer ser laboriosa
Enérgica
Preocupada
Mas se
Assim devera ser
Assim devera ser
Deixavas as noites quentes
Como breu
Nas planícies cálidas do Sul
Onde o sol inclemente
Não tem rival
Apenas
Aqui e ali
Umas tímidas sombras
À coroação das aflitivas rãs
Que coaxariam solitárias pela noite dentro!
Discorrendo sobre o poema de Alexandre O'Neill, "Formiga Bossa Nova", cantado pela Amália!
Considerando a cor dos teus olhos
Considerando os teus carnudos lábios
Considerando a tua frondosa cabeleira
Considerando a tua cintura curvilínea
Considerando os teus dentes de um branco leitoso
Considerando os teus dedos finos e alongados
Considerando a volumetria dos teus seios
Considerando os arrepios que me provocas
Quando olho para a tua bunda crioula
Considerando as tuas pestanas salientes e cobertas de rímel
Considerando as tuas unhas
Pintadas em tons carnavalescos
E a excitação que me provocas
Considerando ainda
Que as folhas das árvores
Pouco a pouco
Começam a lançar-se no chão duro e seco
Cansadas de se exibir gaudias nas copas das árvores
Considerando
Os demais considerandos
Internos e externos
Para a boa imagem dos serviços
Considerando o trabalho incansável de todos os profissionais
Que tanto dão para preservar o bom nome dos serviços
E sem deixar de considerar o labor de todos os membros do Executivo
Que nem as férias veraneias se atreveram gozaram
Pois
Estando de férias
Continuaram a estar presentes nos Conselhos de Ministros
Para autorizar a emissão de pagamento
A tudo o que é classe especial, com impacto, sobretudo junto dos cidadãos
Considero
Excluído
Desde já
O eterno candidato a Belém
Tão televisivo como informado junto de fontes
Alcançadas nas ruelas mais íngremes lisboetas
Que estamos em presença de um Executivo
Tão amado pelos senhores comentadores políticos
E tão injustiçado pela maioria do povo
Que não lhe dá o justo apoio em intenções de voto
E por isso
É urgente
Mudar
Mudar
Mudar
Proibir e perseguir todas as publicações insidiosas
Que se atrevam a denegrir o Executivo
Mas considerando
Todos os demais considerandos
Considero que este assunto vá a tema de discussão
Na universidade de verão dos jovens valores do partido
Que são o futuro da continuidade deste
A governar Portugal!
O pó esmorece a talha
Que o tempo
Ao tempo rouba
Desse livro que se escapuliu
Da nobre missão que o trouxe até mim
Mesclando-se com os seus irmãos
Para abarcar uma nova vida:
Passou à clandestinidade
Como tantos e tantos outros
Que viveram tempos difíceis
Em que a liberdade em Portugal
Era apanágio dos que transponham os míticos Pirenéus;
Tu
E eu
Tínhamos o pleno sentido dos sentimentos
Que brotavam deste livro prodigioso
Mas
Acossado e prisioneiro do tempo
Manteve-se clandestino na tua biblioteca
Onde conservas as preciosidades de outrora
Num tempo em que pensavas mudar o mundo
Com os livros que forjaram a memória
Das narrativas dos jovens de então…
Volvidos estes anos todos
Muitos dos que nos acompanharam nas brincadeiras de criança
Foram-se para outras paragens
Outros
Simplesmente,
Guardamos deles uma grata e suave memória
Da sua passagem por esta vida
Mas, todos eles acabaram por nos dar a humanidade
Que tanta falta faz às gerações que nos precederam
Pois, tornou-nos inconfundivelmente humanos e densos!
Guarda, pois, velho Amigo
Essas palavras
Guarnecidas num papel simples
Impressas numa velha máquina de escrever
Que, com o peso da idade,
Amareleceu-o
Mas tornou-o maciço;
Dá-lhe descanso eterno
Nessa folha logo a seguir à capa
E faz dessas minhas palavras um raro momento de uma vida
Que dê a dimensão do significado
Que representa
O Prodígio da Palavra!