A música de pura melodia
Inicia-se
Soando uns acordes de uma guitarra
que me imobiliza,
De cada vez que a escuto
Paro no presente
E regresso saudoso ao passado;
À medida que os instrumentos casam e se entrelaçam
Com a voz melodiosa da cantora
Fico em sentido
Ereto
Obsessivamente atento
Carregado de audácia
Pronto para desfrutar
Da glamorosa estrela de cinema alemã
Que com a sua voz
Anasalada me entra tão facilmente
Que acaba me penetrando até às entranhas
Pois parece saída de um oceano cintilante
De noite de lua cheia
A evocar as ninfas
Por isso
Me inebria
Me comove
Me converte
Me desafia
A paixão ardente
Que trago dentro de mim
Que se expressa numa voz cadente
Que existe apenas dentro de mim
E foi ela que sempre me foi guiando no caminho
Até ao bar
Onde a estrela de cinema alemã
Posa todo o seu glamour
E é aí que
Olho no espelho e vejo a minha própria silhueta
E analiso os verdes olhos
Que
Por uma qualquer razão
Se formaram em mim
E que são esse desejo eterno
De voltar ao passado
Mas viver bem o presente
Pois a terra acabará cobrindo
As glórias e as derrotas
Que transporto desde o primeiro dia
Nessa busca de encontrar o equilíbrio
Que
Sempre que ouço o
I'm in Love with a German Film Star
Sempre me puxa para cima
Até me enlevar!
I'm in Love with a German Film Star, título de uma música do grupo The Passions, banda britânica de pós-punk/new wave formada em 1978 e dissolvida em 1983.
Não pude mirar-te
Como eu gostaria de o fazer
Apenas me cingi a um ténue movimento
Do meu pescoço com pertinente circunspeção
Tentando, de soslaio, penetrar nessa tua alma cansada
E é no regaço
Onde se espraiam com denodado deleite
As tuas finas mãos
Que
Paulatinamente vão humedecendo
Finas gotículas de orvalho
Lá onde medram os pequenos besouros
As solitárias salamandras
Aqueles seres invisuais que captam todos os sentidos;
E eu
Apesar de olhos bem abertos
Levitando nas tuas sombras
Deslizando na suavidade dos teus desejos
Interrompo a marcha
Sorvo uma a uma das tuas gotas
Que me são servidas pelos teus finos dedos
Para acabar por colher um pequeno ramo revigorado de três rosas
Tantas as que deste à luz
De cheiro adocicado
Com abelhas esvoaçantes por perto
As flores que sempre adoraste
As que louvaste na alegria da tua vida
E mesmo
Quando rodeada de ervas daninhas
Que viviam atulhadas à tua volta
Conservaste na tua intimidade os teus maiores prazeres
Mas as rosas
Que sempre adoraste
De ciclo em ciclo
Todas as primaveras
Sempre rebentam e dão-se à exaltação: viçosas e carregadas de esperança!
Por entre as madeixas que caem da tua cabeça
Como cachos de glicínias que tombam da extensa ramada
Que nos dias mais quentes
Bem refrescam
As almas dos crentes
A força das convicções dos gentios
E ali ficas
Infinitamente
A relembrar os sorrisos de criança
Os primeiros amores
Tão insipientes como passageiros
As subidas às árvores
Para avistar mais além o mundo
Até que te recolheste aos silêncios
Para fugires às tristezas que acabaram por te tolher anos e anos a fio…
Mas, acabaste por semear o teu maior desejo
E acabou por florir, florir, florir
Só para ti!
Nos olhos
Azuis
Que espelham o fundo da tua alma
Jactantes diamantes
A cintilar
Em radiosos dias solarengos
Brilhando como a estrela única
Que nos guia o norte,
O olhar
Antes vivo e resplandecente
Surge agora como mar fustigado por uma tempestade tropical
O teu corpo
Já não obedece aos ditames do teu bravo querer
Queres, mas já não podes
Pois esses braços fustigados
Nos últimos anos
Por perfurações minúsculas de seringas
Custam enormidades moverem-se
Mesmo que seja para içar um simples copo,
As tuas pernas
Movem-se pesarosas e lentas
À custa da voz que a teu lado
Te vai estimulando
Como sempre o foram para ti na vida
Para te dar o alento necessário
A ultrapassar todas as dificuldades
Porém, já não respondes ao que te pedem
Já não ris
Nem choras
Ao que te comove
Apenas te interpelas
Com um ar de adormecimento
Como se fosses um sonâmbulo,
De súbito,
Ergues a cabeça para indagar num tom suave:
- Eu já morri, não foi?
E quando a teu lado
O desespero se transformou em impotência
Dos teus lábios
Sempre austeros e destituídos de palavras e de sentimentos
Volta a ecoar uma frase
Tão comovente como intrigante:
- Dá-me um abracinho !
Pássaro Azul
tenho um pássaro azul no meu coração que quer sair mas sou demasiado forte para ele, digo-lhe, fica aí dentro, não vou deixar que ninguém te veja. tenho um pássaro azul no meu coração que quer sair mas despejo-lhe whiskey em cima e inalo o fumo dos cigarros e as prostitutas e os baristas e os caixeiros das mercearias não suspeitam sequer que ele está ali dentro.
tenho um pássaro azul no meu coração que quer sair mas sou demasiado forte para ele, digo-lhe, fica no teu lugar, queres dar cabo de mim? queres mandar pelos ares todo o meu trabalho? queres estourar com a venda do meu livro na Europa? tenho um pássaro azul no meu coração que quer sair mas sou muito mais esperto, só o deixo sair à noite de vez em vez enquanto toda a gente dorme. digo-lhe, eu sei que estás aí, por isso, não fiques triste. depois meto-o de volta, mas põe-se a cantarolar um bocadinho lá dentro, não o deixei propriamente morrer e nós dormimos juntos assim com o nosso pacto secreto e ele é tão gracioso ao ponto de pôr um homem a chorar, mas eu não choro, tu sim?
Charles Bukowsk
Este pássaro
Azul
Também vive no meu peito
E vive aí
Desde o dia em que abri a página de um livro
E vi estampado na primeira folha
O poema;
Já não recordo onde me encontrava naquele momento
Em que me passou o Pássaro Azul pelos meus olhos
Nem quais as inquietações que me assolavam
Naquele momento
Seguramente que não as de hoje
Poema efervescente
Intrigante e profundo
Parece lava incandescente
E parece ter sido escrevinhado
Entre umas cervejas
Uns drinques
Uns bourbons
Uns Whiskys
Cigarros e cigarros
Intermináveis
Naquele ambiente pesado
Em que a conversa
São gritos entrecortados
Pelos exageros do álcool…
E de cada vez
Que me fixo sobre o ecrã
E vislumbro uma página em branco
É quando
Uma e outra vez
De supetão
Se solta
O pássaro azul do meu peito!
No silêncio
Que é ali
Naquele recanto mais lobregue
Onde os deuses alinhavam os seus pensamentos
Vem-me à memória a fraqueza da tua idade
Que se enrola
Como a muleta à espada
No centro da praça de toiros
O matador que se atiça à besta negra
E eis que avisto
Suavemente
A demência que não se esconde já…
Por entre a fúria de um vento forte
Que vem sempre como um último fôlego de final de inverno
Acompanhada por furiosas bátegas que nos atemorizam
Sei sempre que as tuas mãos não se cansam de me afagar
As tuas palavras
Sinetas doteis que me fazem iluminar a esperança
O teu odor que me enche de amargura
Quando não estás presente
Os teus olhos
Que cintilam
Como os fios bordados a oiro
No fato do matador numa tarde solarenga
E eu
Semeando a planície
Colhendo os furtivos pinhões
Por baixo dos pinheiros mansos
Cheirando essa tua terra
E por onde evoco sempre
O dia em que misturar-me-ei na tua essência
E onde o vento
Ao de leve
De mansinho
Soprará o meu corpo moído em pó
Para alcançar as altivas árvores
Que ladeiam o castelo
Que se ergue
Sem vergonha
No meio de um extenso bosque…
Mas um dia também
Chamar-me-ei terra apenas!
Por onde andará
Essa áurea misteriosa
Que até chegou a ser nomeado com título régio?
Nesse farto bigode
Carregado
Negro
Lutuoso
Esponjoso
Opulento
De gestos e olhares
Onde imperava a elegância de um gentleman,
Dominavas
Como ninguém a arte da palavra
Ensinaste gerações de treinadores
A dizer e a fazer:
- Coisas bonitas…
Mas há muito que esvoaçaste
Voando em solitário no céu azul de verão
Para uma dimensão apoteótica
Onde levitam as almas sensíveis
Os espíritos inquietos
Os cultores da estética
Que observam as cores e as formas de uma bela pintura
Mas em ti sobressaia a estrutura de quem adora planar livremente
Nas longas e fortes asas de um condor
Que observa em caleidoscópio
Cada um dos quadrados pululados de erva
Tão comuns nas ilhas açorianas
Mas a terra, a tua terra onde vieste ao mundo,
Esteve presente sempre em ti
Naquela vida austera, de monge, que levavas
E nos silêncios a que te vetaste
No último terço da tua vida
E tinhas tanto para dizer
Para escrever
Como esse teu “Vértice de Água”
Mas, de repente,
Silenciaste-te
Uma vez mais
Para acabares por fazer viver
As coisas bonitas da vida!
Paz a essa alma tão iluminada
Prolixa e profunda
E é pois, também por ti,
Que consagro a minha vida à escrita
Sempre rodeado de livros
E de imensas palavras que estalam na minha cabeça
E como tu
A ocupar o meu canto anonimamente
Para tentar fazer
Coisas bonitas
Também!
A tua voz
Não me é estranha
Como se alguma vez o pudesse ser?
Ouço-te desde o dia em que abri os olhos
Respirei profundamente
E vi a tua silhueta
Que empubescia no interior da minha memória
Cravada na garupa do cavalo
Montado pela bela amazona de cabelos longos tisnados;
Essa tua voz
Que é a minha também
Leva no regaço os nossos desejos mais ternos:
Um fogo incessante que se ateia glorioso
Água que jorra
No prazer irrepetível de um grito
E lá bem dentro do que mais fundo nos une
Guardamos as sombras interiores
Que, por vezes, tantos nos inquietam
Para que o mundo caminhe depressa;
Um rio que se destapa
E na encruzilhada de uma ilhota
Acaba separando-se em dois longos braços
Afanoso e rebelde
Que, atrevido, deixa fluir
A força das suas águas
Onde cada pequeno leito
Brilha na jactante correnteza
Seguindo a sua marcha
E é quando mais à frente
As águas do mesmo rio se voltam a encontrar e a abraçar
Águas que correm desde o berço
E eu volto a escutar as nossas vozes…
As nossas vozes são romarias
Que bailam no calor de uma noite de verão
As nossas vozes
São a harmonia silenciosa das nuvens
As nossas vozes
As nossas vozes
São o vigor que alimenta o nosso ser
E não se destapam pela sua singularidade
Antes, envolvem os nossos ossos
Recobertos de pequenas falhas
Que vituperam a nossa carne
Na malsã corredura de uns tantos
Que se escapulem sempre
Para uma inenarrável estreiteza de vistas
Para enganar as suas vidas
De mais um pachorrento dia!
Assolado pela luz dos teus olhos
Capciosos
E entrelaçados
Nas pétalas encarnadas das tuas vestes
Vejo o pendulo a fazer:
Tic tac...tic tac…tic tac…
Essa tua voz apressada
A correr isoladamente
Durante anos e anos a fio
Até que desaguou numa manhã solarenga
Num dos canais da ria
Que já é tua
Minha já o é
Desde sempre
E foste caminhando a meu lado
Surfando sob as ervas que se agitam e balanceiam
Sem demora
Conduzindo-nos por esses ínvios caminhos
Que tanto se arreganham e lutam contra a força das águas da ria
Descomposta e deslaçada
De cor forte acastanhada
Onde raízes que se soltaram
De velhas plantas que já não se regeneram
Grãos de terra e de areia que se soltam das enxurradas das chuvas fortes
Mareiam sem destino
À espera de um fundo escondido
Calmo e silencioso
E longe dos olhares
Que mais não avistam do que o hoje
E aí sob a vigilância dos guardiões das águas
Possam zelar e proteger este nosso segredo
Seres de boa vontade
Carregados de paixão
E que não se olvidam nunca de celebrar este dia!
Sigo
Por entre
As bravas
Guturais
E resistentes árvores
Que se amontoam
Na feliz mansidão
Do reino das bolotas
Que se vão soltando dos ramos
Que
Sem o saberem
Sem o quererem
Sem o desejarem
Saboreiam a doce terra
Cheiram o bafo húmido vindo mar azul ao longe
Audível
Nos dias quentes e folgazães
Dos verões que nunca acabam
Amontoados nas cercanias da Serra de Grândola
Guardados pela erva rasteira
Sufragada pelas tímidas ovelhas
Que se deslocam em catadupa
Naquele pisar de solo
Cuidadoso e seletivo
Como só ali se ousa;
No meu passo
Indelével
Silencioso
E sempre mediativo
Estugado na planície
Tão grande
Como um céu carregado de estrelas
Tão absorto
Na luz que nos olha
Como uma aurora boreal
Avisto
Ao longe
A Monarca
Do Alentejo e dos Algarves
Que em certos dias do ano
Se escapule até às amendoeiras em flor
Para recordar a doce e fofa neve
Das terras longínquas do Norte!
Apregoo a doce meninice
Da minha voz
Que se confunde com o narrador
Das minhas notas de vida
Que se misturam
Desde tempos imemoriais
Com a Natureza
Prenhe de acontecimentos
Que estão sempre ao dobrar de uma qualquer esquina
De uma voz que não se perde
Nunca
Do sentido que tem
Ou não tem
Nesta Vida!
Quando me cruzei contigo
Felicitei-te
E felicitei-me
Não pude deixar de me entusiasmar
Com a alegria estampada no rosto
Porém,
Não pude rebobinar
A esperança
Há muito congelada
Não pude fazer viver
O passado
Mudando de rumo
Ou alterando
O que de bom ou mau
Me fez chegar até aqui
Mas vi-me
No reflexo do espelho
Que não me cansava de me lembrar
O sangue que vi derramado nas ruas das cidades
A loucura mansa
A pérfida vontade do poder
A tonta vaidade
De achar que outros farão melhor
E,
Sem projecto antanho
Sem esboço credível no presente
Sem mobilizar as suas próprias hostes
Dos que pedem agora aflitivamente
A mudança
E que
Vislumbram
Um futuro que se avizinha de um branco glacial,
Pedem, somente, el cambio
Sem cuidar de saber que a mudança
Implica dinamismo
Esforço e vontade
E crença neles próprios
Quando todos parecemos ainda
Servidores da continuidade
Pois
Mudar
Mudar
O quê?
De protagonistas
É mais fácil seguir a mensagem
De quem comanda a embarcação
De quem
Apesar de tudo
Deu ânimo aos cidadãos
Em todos os tormentos padecidos
No mar em solidão
No mar em convulsão
No mar em negação
E não interessa saber
Se no barco se mente tanto
Todos os farão para levar por diante tamanha empreitada
Interessa saber
Quem nos trouxe até aqui
E que exibe
Cada dia que passa
Tão boa forma
E ótimo sentido de humor
E que ainda é aquele que poderá pode decidir as escolhas
A que todos iremos ser chamados…
Mas não tenhamos medo do que aí virá!