Um dos capítulos de “O pátio das memórias” tem o título supra assinalado.
Partilho-o, com gosto, e como forma de homenagear a musa e inspiradora Prima com uma existência tão efémera, preferiu viver sôfrega e embriagada do entusiasmo juvenil do que empanturrada em pastosos dias a viver de memórias!
Calhou-lhe uma vida curta, mas fulgurante!
Passou a sua curta existência em movimento cadenciado ao som de músicas de batidas fortes, ditas de alternativas.
De passada ávida, lesta nos gestos, nervosa, mas decididamente firme, levantando subtilmente os pés como se fosse um experiente peregrino de Santiago a calcorrear seguro os caminhos até à catedral, nos trilhos de um desejo chamado elétrico!
Embora sempre a correr, a saltar, a palmilhar ínvios desejos, percorria-a, por vezes, uma necessidade mais íntima: sentar-se no solo e sentir simplesmente uma tarde de verão quente e seca, refrescar-se com a água fria saída de uma mangueira…queria colo, rogava o enlevo de uns braços que lhe fundissem as dúvidas com as certezas que a aquecessem nos dias mais frios no peito de um doce ombro para receber todos os carinhos que a pudessem deixar encantar e sentir-se tocada quando ouvia da boca daquela tia chamar-lhe:
- Nina!
E será este o suave momento em que o tempo parou imerso numa grande dúvida? Será este o instante para nos questionarmos das dúvidas deixadas pela sua súbdita ausência?
A sua vida parecia orientada como se fosse um lustroso elétrico a percorrer com elegância as distâncias, mas tudo a ver, tudo a sentir, tudo a cheirar, disposta a ser a rapariga que tinha desejos intensos e fecundos que lhe permitissem almejar a felicidade, que ela tanto quis e tanto lutou para a alcançar enquanto mulher!
Revejo-a sempre jovem, porque apenas viveu a juventude e assim perdurará; magricelas, olhar vivo e intenso, senhora de um refinado sentido de humor, proporcional à sua irritação com o pedantismo e a intolerância; trazia já todo o potencial que iria fazer dela aquela que, mais tarde, todos iriam sentir como uma rapariga de carácter, senhora do seu nariz e que calcorreou sempre os caminhos que ela escolheu, nunca cedendo ao facilitismo e à apatia, mas antes, envolvendo-se precocemente com a música, com os segredos que os outros trazem guardados no seu interior. Desde muito jovem começou a desenhar as palavras que acabaram por transformá-la na alma arrebatada que ela se veio a revelar no seu curto, mas proeminente, testemunho de vida, que não mais se me apagou da minha memória e que ainda hoje sinto uma saudade cravada no meu peito! E quando a evoco sinto uma irritação, seguida de um sentimento de intolerância contra aquele que, dizem, é o Pai, e responsável por fazer a Justiça lá em cima e, por suposto, cá em baixo também, e não soube, ou então não quis, preservar esta fantástica criatura que tanto tinha para dar, mas para aprender também, e que foi arrebatadamente traído o seu destino por uma inoportuna presença naquele local, numa aurora carregada de brumas!
Quase que a vi nascer, numa rasteira habitação, rodeada de todos aqueles que verdadeiramente sempre lhe quiseram o Bem. Quando cheguei, na companhia dos meus pais, vi a minha mãe exultante com o nascimento da nova sobrinha, a correr célere na direção da jovem mãe a saudar a sua coragem e a sua força por ter tido a criança naquela casa simples e humilde, longe dos hospitais, médicos e parturientes.
Testemunharam-me, garantiram-me até, que na hora em que a criança nasceu, viram, perplexos, o pai com os braços eretos na direção do altíssimo e, em simultâneo, a dar saltos entusiásticos como se fosse uma criança, no preciso momento em que ouviu pela primeira vez o choro daquele ser acabado de nascer. Evoco também uma música que não me saí da memória, ignoro o título da composição, sei apenas que é uma canção dos Procol Harun, lendário grupo de Rock britânico dos anos sessenta e setenta do século passado que fazia furor na época; nunca mais ouvi em toda a minha vida essa música, mas como um Carma que trago sempre comigo, ela passa frequentemente no meu interior, em diálogo constante com o meu ser, e posso afiançar que onde soar a música estás tu também, o que significa que tu vives já nessa música…e por isso, como a ouço frequentemente, posso dizer-te:
- Estarás sempre comigo!
Foste um tronco viçoso e sublime, entrelaçado de ramos e extensa folhagem, e nos dias de sol resguardaste, com a sombra dos teus galhos, de todos os que procuraram a tua guarda, o teu apoio. Mas quando chovia e soprava um vento agreste também não te esqueceste da solidão, do frio, da tristeza mais vil. Foste para os amigos o que não foste para alguns dos mais próximos, mas tu vivias em permanente estado de insurreição contra os que sempre te procuraram resguardar do que achavam perigos e perdições, e vislumbravas oportunidades que a vida te ia dando para aprenderes a cresceres.
Mas vi-te ainda com os primeiros ramos, que gradualmente se foram fortalecendo, ao ponto de começarem a surgir as primeiras folhas. Ramos e folhas cresceram tanto que puderam resguardar lindos locais para acolher pássaros entusiasmados que ensaiavam cânticos que me deixavam em êxtase. E então passaste a ser aquela linda árvore que a todos tocava pela graciosidade, e mesmo nas mais maléficas invernias, posicionavas-te sempre, mas sempre, com sentido estético elevado, que foi criando uma áurea de mulher bendita que traz a felicidade a quem dela se aproxima. Por isso permaneces viva e, pelo menos enquanto durar a minha passagem por este mundo, não sairás da minha recordação!
Tive a sorte de não olhar pela última vez para aquele manto de rendas, coberto por lindas flores que tanto gostavas, que cobriam o teu corpo gelado, naquele exato instante em que te despedias deste mundo e aguardavas pelo salvo-conduto para penetrar numa outra dimensão. Por isso, posso testemunhar que te conservo imaculada, fiel aos desígnios que tu traçaste para ti própria, às tuas certezas e incertezas que influenciaram a maneira como te vi desde o início.
Sedosos cabelos pretos, de lábios pintados de cor arroxeada, uns riscos nos olhos de um fino tracejado a preto...a gótica que sempre foste, vinculada a estilos pesados de música como o pós-punk, rock gótico, o death metal, entre muitos outros; uma música caraterizada por um certo niilismo, uma visão de vida romântica, mas sombria; Jeans rasgados, cintura alta, coturnos, vestidos e blusas com alças fininhas, barriga de fora, cruzes e chokers como acessórios.
Reservei-te um lugar de destaque, naquele altar reservado aos melhores, não por uma qualquer razão especial, mais ou menos pessoal, mas porque tu estavas entre as melhores da tua geração.
Tiveste uma vida de excessiva incompreensão, mas talvez os desentendimentos, a intolerância, que quase todos deram provas contigo, mostraram-te uma respeitável e magnânima coragem, de querer ser uma mulher de pleno direito, com opinião e autonomia para se valer a si própria. Uma mulher clarividente que olhava o mundo de frente e que não perdia tempo com vilezas ou invejas.
Na época todas procuravam apanhar o elétrico, mas à última da hora deixavam-se incrustar pela fraqueza e viam-no passar incapazes de o segurar. Mas tu, já na altura, buscavas a satisfação do desejo; rejeitavas a hipocrisia, a falsidade, a manha, a copiosa bajulação, refugiavas-te no teu quarto, rodeada de música, de cadernos repletos de palavras escritas de cima para baixo, na perpendicular, nos recantos mais íngremes de uma folha em branco, logo cultivadas por mais palavras que constituíam o jardim que te alimentava; tinhas a força das palavras que te alimentava, a certeza das tuas convicções, tinhas o carisma das fragâncias frescas que não te deixavam descansar e eternizar nos lugares e por isso não paravas um minuto sossegada! E aí, nesse horto palavroso, que sempre foi o teu refúgio, pudeste ser feliz, pudeste odiar, pudeste desesperar-te, lograste sentir ânsia de chegar, de partir, permitiste experimentar revolta, deixaste a penitência atuar, foste justa, perfeita ou autêntica ou simplesmente a mulher com os seus defeitos e virtudes.
Continuei na estrada da vida, mesmo já sem a tua presença. Muitas vezes evoquei o interior do elétrico onde sempre te imaginei a viajar, agora eternamente. Estás lá, com aquela música com que sempre te associo e recordo, e sempre com a felicidade estampada no rosto, igual a ti própria.
Tive o privilégio de te conhecer, de te estudar, de refletir e de finalmente te compreender. Quiçá, parte substancial da minha personalidade que se vai revelando e postulando nas palavras, tenha muita da tua essência feminina que, a ser assim, não se quedou rôta naquela madrugada, mas floresceu e deu inspiração a quem sente que a vontade é efémera, e que logo passa para uma obrigação ou um vício, mas o desejo, esse mantém-se vivo, obsessivo, permanente e renovado…por isso és para mim um duradouro desejo de te evocar e só se finará quando não conseguir prover os contornos do teu rosto, da tua fina e elegante figura, dos teus olhos doces, mas por vezes amargos, na dificuldade em entenderes as pessoas. Nesse dia serei também uma evocação de uma pessoa transgressora, que refletiu mais que do que viveu, mas viveu o suficiente para ponderar, tornando o último dos desejos numa realidade: evocar-te, deslizar suavemente no elétrico da memória, na companhia daquela música…e assim contemplar-te permanentemente!
Conservo na entrada da minha casa um quadro caricatural de ti, executado por um desses artistas de rua. É uma recordação muito especial para mim por várias razões; está lá o teu elegante rosto, uma larga fita que amolece os teus longos cabelos escuros, o teu olhar expressivo, aquela vivacidade que tu espalhavas ao teu redor exposta naquele sorriso aberto e universal, a viola no chão, a mesa de bar, e tu sentada nela, distribuindo cartas, uns discos avulsos e as palavras “homens…homens…” e a exclamação:” calou!”. E o que me comove nesta caricatura, para além de te ter capturado naquele momento de forma tão sublime, é ela ter sido executado por um artista de rua, que sei que tu muito gostavas, admiravas e penso que o teu sonho era mostrar também na rua as tuas imensas capacidades que exponenciavas. Por isso, de cada vez que avistavas um na rua, não resistias aos seus encantos, nem sequer aquele tocador de gaita-de-foles de Vigo que te despertou vivo interesse e inquietação e logo que o avistastes, rodeaste-o, assombrada pela destreza como ele executava uma qualquer composição popular galega momentânea…então, veio a criança que sempre foste e virando-te para os teus pais, naquele momento humildemente, e rogaste se não podias adquirir esse belo instrumento musical de sopro?
E este expressivo quadro em que reproduz uma caricatura tua está pendurado à entrada da minha casa.
Guardo alguns discos que te pertenceram e um deles, dos “Siouxsie & The Banshees” intitulado “Superstition”. Era, eu sei, uma das tuas glórias musicais da época, um hino ao bom gosto musical, um daqueles que eu intuo que quando estavas no silêncio sofrido e mourejavas na difícil e impossível tarefa de permanecer neste mundo tocou uma derradeira ocasião. E de cada vez que o escuto, surge-me a tua delgada figura a acompanhar cada uma das músicas, especialmente aquela, que ouvi várias vezes em tom elevado ainda na tua casa, que se denomina “Kiss Them For me”, um hino ao bom gosto, à exuberância, ao amor também, de cuja letra consta o seguinte:
Beije-os Para Mim
Isto resplandeceu e brilhou
Para a bela rainha que está chegando
Um anel e um carro
Agora por muito você é o mais bonito
Nenhum partido que ela não atenderia
Nenhum convite que ela não mandaria
Transmitido pelo som interno
De sua promessa de ser encontrado
"Nada ou ninguém será eterno
Faça-me deixá-lo para baixo"
Beije-os para mim - eu posso estar atrasada
Beije-os para mim - se eu estiver atrasada
Isto é divino, oh isto é sereno
Nas fontes de champagne rosa
Alguém que esculpiu sua devoção
No coração aparentando poça de fama
"Nada ou ninguém será eterno
Faça-me deixá-lo para baixo"
Beije-os para mim - eu posso estar atrasada
Beije-os para mim - eu posso me encontrar atrasada
Na estrada para New Orleans
Um pulverizador de estrelas bateu na tela
Como o décimo impacto fracamente alumiado
As velas proibidas raiaram
Beije-os para mim - eu posso estar atrasada
Beije-os para mim - eu posso me encontrar atrasada
Beije-os para mim - eu posso estar atrasada
Beije-os para mim - eu posso me encontrar atrasada
Eu sei, é um pedido, que vindo de ti, é uma ordem: beijarei…para ti!
Avisto, derramadas no solo, folhas e maçãs apodrecidas,
Um pesaroso besouro saúda-me buliçoso!
Ardilosa, encrespada, a morte veste-se de negro,
Altiva, pressurosa, inclemente,
Um frio glacial percorre o meu corpo…
Penteio cada folha, palmilho cada palavra, gasto-me em cada frase,
Escuto a voz que se anuncia em cada parágrafo,
Deixo-me penetrar pela cadência de cada capítulo;
Por fim, avisto o Pátio…
E vejo-te a ti, que percorres este livro:
A esperança redobrada num mundo melhor!
Receção poética que é uma espécie de azulejo preenchido com palavras que saúda todos os que se aproximam da casa.
A poesia consta do intróito de uma obra em prosa da minha autoria sobre as incessantes façanhas de alguns personagens, mais ou menos famosos, da minha família materna, obra que relata factos reais, outros assim...assim e outros ainda que são produto integral da imaginação do autor, do seu sentido de humor, dos seus afetos, das suas vontades, dos seus desejos.
A obra foi editado em livro, todo ele concebido por mim, desde a edição (de autor) até à escolha da capa e, claro, a escrita e que recebeu o título de “O pátio das memórias” .
Assim, realizei o sonho de publicar sem grandes custos adicionais. É verdade que tive já vários convites para o fazer com outras obras que apresentei a editoras mas não estou minimamente motivado para o fazer, pelas condições que me propõem e depois pela exposição pública a que inevitavelmente estaria sujeito e que decidiamente não gosto!