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Artimanhas do Diabo

Artimanhas do Diabo

SOLTEM AS AMARRAS…A BARCA SE VAI FAZER AO MAR

Procuro

Vasculho

Indago

E acabo por me perguntar:

Por onde andais almas nobres, generosas e principescas?

Mas, nessa procura,

Que sempre me interpela incessantemente

Acabo cruzando-me  

Com as vaidades terrenas

De certas almas

Que emanam

Que exalam

Certos odores fétidos:

A podridão

Os livores cadavéricos

Fazem ninho

Põem os ovos

E deles sairá a morte

E toda a sua dor

De desespero atroz

Trajando de negro

Traiçoeira e peçonhenta… 

Almas sequazes de um certo protagonismo

Movem-se em elegantes movimentos

Acabando por levitar

Imbuídos da parecença

Sobretudo da parecença

E ei-los que alcançam a glória da presunção

Justamente quando se posicionam

Na sua jangada

Jactante e arrogante 

Que emerge na linha do horizonte  

Sempre aconchegada na parecença

A dominar os acontecimentos

À espera de dar o último golpe

A derradeira cartada

Que os fará ganhar mais um título

Mais uma comenda…

Mas, virá o dia,

Em que cairá a máscara

Estatelar-se-á no solo aquele corpo sem rosto

Exibindo a sua pobre condição humana;

O valor

A competência

Que, presumiam, para si próprios

Ter à exaustão

Cairão fátuos

No solo

E ver-se-á, então,

A sólida vacuidade

 E sobrará, apenas, a alucinação

A incompetência reforçar-se-á 

Enfurecida e pressionada

Acabará gerando uma força interior

Que, explodirá, como um Géiser!

E a barca, então, se lança

Solene e altiva   

Nas águas cálidas da indiferença dos outros!

 

 

A DERRADEIRA VONTADE

      O rapaz puxou de um isqueiro cintilante em tons dourados, demasiado espampanante para aquilo que a sua figura aparentava, acendeu-a e consumiu-a rapidamente, com aquela avidez própria de quem pressente que aquela é uma ocasião única, engolindo sequioso o fumo como se aquele fosse o último cigarro da sua vida.

      Na verdade, aquela seria mesmo a derradeira prisca que introduziria nos lábios nos próximos tempos em liberdade. Os meses seguintes iriam ser passados na cadeia para cumprir sete meses de prisão efetiva. O juiz na hora da decisão teve em conta, para além de ter ficar provado que cometeu o crime de ofensas corporais simples (deu umas bofetadas noutro rapaz que, como ele, vivia na rua), a circunstância, agravante, como se dizia na sentença, de ter atrás de si um longo historial de processos crime por furtos ou conexos com este crime, tendo no seu cadastro criminal várias condenações.

      Na hora em que dirigiu a habitual alocução ao arguido, o juiz, apesar de admitir que aquele não era um crime grave, não esteve com contemplações, advertindo-o solenemente: “…o senhor…com o longo historial de condenações que tem atrás de si, não espere perdão ou brandura deste ou doutro tribunal; só mandando pessoas como o senhor  para a cadeia é que a sociedade fica mais descansada…por isso vai lá passar uns mesitos para que a comunidade fique, pelo menos da parte que lhe diz respeito, mais descansada pois ali não poderá fazer mal a ninguém nos próximos tempos…” .

          A beata, ligeiramente maior do que as habituais, havia sido encontrada num cinzeiro público e recolhida com toda a minúcia pelo rapaz, receoso que se esfarelasse em vão. Guardou-a no bolso com todo o cuidado para a acender num momento especial. Decidira que depois de fiscalizar os caixotes de lixo, recolher o metal encontrado e levá-lo ao Zé do Ferro, recolhia o dinheiro, bebia um café e fumava finalmente o troféu achado. 

     O agente da PSP deu-lhe voz de detenção e explicou-lhe resumidamente que o levaria para o Estabelecimento Prisional para cumprir uma pena de sete meses de prisão efetiva. Então, o rapaz vociferou dizendo: “…leve-me senhor agente, mas antes deixe-me fumar esta ponta que guardo com todo o cuidado para um momento especial…”; ato contínuo puxou da prisca, acendeu-a e começou a inalar o fumo.

      Um dos agentes, ao vê-lo inalar tão prazeroso o fumo que provinha da curta prisca, puxou de um maço, estendeu-lhe um cigarro e disse-lhe “…ó homem, se é para fumar um cigarro antes de ir para a cadeia, ao menos fume um em condições, inteiro e de boa marca…não são os  condenados à morte na América que na véspera em que vão ser executados têm direito a escolher a sua última refeição? Por isso, fume o cigarro nas calmas e, já agora, fique com o maço!”

      O Natal estava à porta.

Publicado pela CHIADO BOOKS no II Volume da Coletânea de Contos de Natal, intitulada “Natal em Palavras”.
Selecionado este meu Conto de Natal, o qual tinha como limite máximo 500 palavras

JÁ SE AGITAM AS ÁRVORES

Um festim verde

Compacto, elucidativo

Um glorioso coração ardente

Que se agita suave e elegante

Como se fosse um paquete no meio das vagas;

Caem os primeiros pingos de chuva

Neste outono que vai anunciando

Acompanhado

Pelo balançar sincopado das árvores

Até aqui o albergue das agitadas aves

Pululantes no seio dos inúmeros braços floreados

Que se não atemorizam

Mas começam a escassear

e, sobretudo,

Esquivas e vulneráveis   

Vão vagueando pelos dias cinzentos e chuvosos

De voo rasante na solidão ques erá mais negra

Mas expectantes

Do que a próxima primavera

Que há de vir

Lhe reservará…

O rio corre cândido e vagaroso

Serpenteando sublimes árvores que tanto o apreciam

Mas virá o tempo em que o rio

De corrente vigorosa e sublevado  

 Silenciará

As palavras,

O melodioso canto dos rouxinóis

E os ramos das árvores enfrentarão

A força e o vigor dos possandos arremedos de Éolo

E assim,

Paulatinamente,

Apercebemo-nos 

Que começa a completar-se um ciclo de vida

Mas, entretanto, abre-se outro…

Para o ano estarei mais atento ao nascimento das folhas das árvores

Porque vê-las

Agora  

A começarem a derramarem-se no solo

Faz suar a nostalgia pelos quentes verões

A compaixão pelo fenecimento

A grave ausência

O nada, que já não o é

Nem cousíssima nenhuma;

Quero ouvir-te coração verde

Quero ouvir-vos ó ninfas

Quero escutar a voz dos que a perderam

Porque partiram num final de tarde

Quero evocar essa voz

Que permanentemente ecoa dentro de mim

Enquanto viver ela não se perderá jamais!  

ATÉ AMANHÃ CAMARADA!

Vemo-nos amanhã camarada?

Sim ver-nos-emos

Quando as trevas se dissiparem

Quando a luz a todos nos iluminar

Quando o tempo que até aqui vigorou

Deixar de nos apoquentar

Quando a lua já não for um lugar longínquo apenas

Mas um tempo em que tempos se reveem

Numa luz ténue, suave e inspiradora  

Que nos traga um amanhã carregado de esperança

Deixemos, pois, de pedalar

Em humildes gingas

De duas rodas silenciosas

Humildemente silenciosas

Cessemos, pois, a fuga

De cidade em cidade

Dos homens maus

Que atacam vilmente pelas denúncias que recebem 

Sejamos, pois, cidadãos de pleno direito

No arrastar lento e sincopado

De um grupo de ceifeiros de pés no chão

Da nossa vila alentejana

Terra mui nobre

Solidária e fraterna

Que se diz morena

Rodeada de casas brancas

Decoradas de pequenas listas azuis ou amarelas;

Até amanhã camarada

Que a garganta não se seque

Não se apague

Que a vontade seja feita

Pela vontade do coletivo

Porque esse

Até amanhã camarada

Não é uma despedida

Mas um até já

Que acalenta o futuro que aí vem

Como as cearas

Que todos os anos renovam a esperança  

Nas planícies do Alentejo!

AS PALAVRAS

São simples sinais

Carateres

Marcas

Símbolos…  

Artefactos realmente defensivos

Ou proeminentes,

Parciais ou integrais,

Lanços de intrusão;

Mas as palavras

Podem ser também terrivelmente sedutoras     

Que acabam por nos deixar escravos

Mais do que da pessoa

Da escrita dessa pessoa:

Permeáveis  

Viciados mesmo  

Enquanto não voltamos a elas

Para ler ou reler o que elas nos parecem querer dizer

Mas quando voltamos a elas

Podem não ter já o exato sentido

Que descortinamos na véspera

Depende de nós, 

Óbvia e sincreticamente!

As palavras

Obrigam-nos a pensar

Sim, a pensar, e muito

Mas de uma forma mais lenta

Demoradamente

Arrastando connosco

O nosso suave gosto

Contentamente

Ou razão de uma vida

Em fazê-las crescer numa folha em branco

Como se fossem,

Naquele universo alvo e cintilante  

Pistas, encalços, vestígios

De percursos na neve  

Fofa e cativante

Que cobre a paisagem

Neste dealbar de mais um dia

Do resto dos dias 

Que nos faltam viver

Das nossas vidas!

ZEN

Uma estrada sem destino

Um mar adocicado

Um céu verde e sem estrelas

Um panteão secreto

Uma vida interrompida sem esperança

Uma bola quadrada

Um poema que emerge sem jactância e fulgor

Uma construção no mar

Espelho baço da alma

Não há nada desde o princípio

Não há pó que se acumule

Não há vontade que se vislumbre

Cairá

A vontade

A vaidade

A virilidade

Um dia serás salvo:

Se você encontrar o Buda, mate o Buda

Se você encontrar um patriarca, mate o patriarca”   

    

REVELAÇÃO

 

Assume o risco

Deixa a vontade submergir

Mostra o mérito que há em ti

Não me venhas dizer que não sabes

Que não queres

Que não consegues

Haverá um dia em que te revelarás

Para tentares viver o amor

Todo o amor

Que há em ti!

Liberta o desígnio

Com a sua fascinante força

Tão puro  

Tão provocador   

Capaz de por fim à insónia

Não te deixes iludir

Pela frieza

Pelo orgulho

Ou pela vaidade

Um dia, que não são dias,

Dar-te-ás conta do desperdício que foi a tua vida

Sem a cintilante luz

Esse pássaro misterioso

Que voa de poiso em poiso

Para nos revelar o que é o amor!   

 

NA INTIMIDADE UMA LARANJA

À minha frente uma laranja

À minha ilharga

Uma voz maviosa

Mas intermitente

Que acaba me entusiasmando  

Olho-o adubado:

Bela silhueta arredondada

Casca de textura enrugada

Cor cintilante que irradia paz

Contraste que a vontade cria

Apalpo o citrino

Sondo-o

Acabo me entregando a ele verdadeiramente

Falo-lhe de voz maviosa, ternurenta, suave e profunda

E ele no auge da excitação

Acaba me arrebatando nos silêncios da paixão

Então, tateio a laranja

Afago-a

Aproximo-a dos meus olhos

Retiro-lhe a casca suavemente

Vou-a despindo

De pausado cerimonial 

A nudez está no auge

É demencial e única

Já não há retorno possível

Acabo separando os gomos

Um a um

Coloco-os num prato

Para os vislumbrar à luz do meu sentido estético

Insiro na minha boca

Devagar, como demanda profilática,

Cada um dos gomos na boca

E experimento um hálito adocicado

Que me asperge uns salpicos ácidos 

Sinto a frescura do seu sumo

A flacidez de uma textura carnal tão engomada

Que não se cansa de me surpreender a cada instante

Um figo de ventre estripado

Uma banana desnudada  

Jazem no leito

Acompanhando a laranja

Emparedados com os gomos

Toldados pelo meu amor pelo citrino;

Uma e outra vez

Ouço a voz dos silêncios

Que medem a minha paixão

O meu sério envolvimento e compromisso

Uma rosa roça ao de leve pelo meu corpo

Eriça-me

Aquece a minha intimidade

Ativa os tecidos mais moles

Que medram na minha ousadia

Acabo rendido

Ao delicioso instante do sossego 

Agora tão preciso e necessário  

Após possuir o citrino

De repente,

Transformei-me num personagem ameno       

Estendido num leito

Imóvel   

Subjugado à pacatez

Ao marasmo  

Incapaz de me reerguer

Pelo menos imediatamente! 

 

A ÁRVORE DA VIDA

Pela vida fora

Carregas na mão

Um livro carregado de histórias

De mistérios

De vontades

De desejos

Que interpelam

A tua essência

A tua envolvência

E que tanto exigem a tua presença!

Cada folha é um instante da tua vida

Tão compacto

Vontade de viver

Mas também de vaidades nos anseios

Nas ambições

Nos sonhos, também, tão imprescindíveis

Pois que seria de ti

Sem os muitos sonhos que te interpelam

E que agitam o marasma que, por vezes, te interpela

E tanto te corrói?

 

TORPOR...DEPOIS QUE TRUCIDASTES UMA VIDA

Muito mais que uma torrente demencial

Muito mais do que um mar encrespado

Furibundo

Muito mais do que uma raiva

Nesse furor que te embalou e minou

Até ao fim trágico que veio a acontecer;

Vaidade, amor, paixão, loucura?

Porque assassinaste assim,

Dessa forma,

O pobre do homem?

Não lhe podias dar,

Ao menos,

Um leito firme acolchoado

Revestido a madeira

E depositado

Na fiável terra que fará pó?

Tiveste que incendiar a tua mente

Tiveste que queimar as vestes

Tivestes que destruir outras vidas

Jazes atrás das grades

Na frieza da tua cela

Lá onde o silêncio só existe na calada da noite

E não mais me acenes com desculpas

Com perdões

Com expiações

Tiveste a tua vida limpa

E destruíste-a!

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