Pé no acelerador da viatura que desliza, como uma serpente, no traçado da autoestrada de perfil de montanha. Aquela via é herdeira de uma outra projetada e construída com os carcanhóis europeus e a pressa de um Ministro das Obras Públicas em deixar obra, tão comum na nossa história a partir dos Descobrimentos, o que deu origem a uma estrada perigosa e que se veio a revelar mortal para muita gente: curvas, contracurvas, alçapões, mas aditivada pelas aparências de um “Itinerário Principal”!
A velocidade que imprimo na autoestrada é moderada, tem que ser moderada, já que a sua construção ondulante, com demasiadas subidas e descidas, mais do que um traçado da categoria de uma autoestrada deveria ter, não deixa muito espaço para aventuras rodoviárias.
Mãos dúcteis tateiam o volante, modelando-o com suavidade, sem teimosia e sem rigidez, gizando-o ao de leve para a direita, para a esquerda, para o centro ou para trás, acompanhando a estrada que desliza pela montanha como se fosse um imenso tapete rolante que vai do litoral salgado até às profundezas graníticas do interior beirão, à descoberta da pátria onde o Demo aquiliano reina a seu belo prazer!
De vez em quando um esguicho de travão, de souplesse, mas, como precaução, é preferível desacelerar. Um olhar cravado num horizonte que simboliza uma vastidão desejada, ansiada, sonhada…
De súbito, interrompo a minha mirada fixa no horizonte e deixo-me seduzir pelas muralhas que a Estrela e o Caramulo propiciam. A autoestrada é larga mas muito agarrada aos declives montanhosos: eleva-se, abaixa-se, não dá descanso ao viajante e surge, com agradável surpresa, aqui e ali, como se fosse uma tela ou uma fotografia rodeada de belas paisagens, nomeadamente naqueles pontos mais altos que nos permitem suspender a respiração, lançar uma mirada em frente, admirar a floresta vigorosa e dinâmica, cercada de locais deslumbrantes altaneiros, espraiada num imenso mar verde, que esconde um solo pobre mas carregado de vontades, como se fosse uma esbelta e oleosa cabeleira que, apesar de tudo, enaltece um rosto da mulher!
Por fim, eis o planalto que acolhe a cidade que tem como heráldica um “castelo de vermelho aberto e iluminado de ouro, tendo a primeira das torres laterais rematada por um homem vestido de negro tocando buzina de ouro, e a outra torre lateral rematada por uma árvore de verde sustida de negro e frutada de ouro. Coroa mural de prata de cinco torres…”, a cidade de Viseu, que se reporta a uma lenda que fala do rei Ramiro, da sua esposa D. Urraca, da linda moira Zahara, irmã de Alboazar, rei moiro, ou alcaide do castelo de Gaia sobre o rio Douro.
Entro numa via larga preenchida de inúmeras retundas até que chego a uma Avenida Europa. Esta nomenclatura surge-nos irónica e devassa-nos a nossa mais firme convicção que estas alusões são como os sonhos, que “sonhos são”, mas paremos então na meditação onírica e façamos uma retrospetiva que nos conduz a uma certa ironia, na simples alusão europeia desta via, com a cidade de Viseu, e de quejandos, como adiante se verá, alusivos a esta cidade!
A Europa deu guarida ao edil que durante anos e anos governou a capital do “Cavaquitão”. Modernizou-a, engrandeceu-a, deu-lhe um toque muito pessoal que perdura até hoje, como aquelas ruas atravessadas por rotundas que parecem mulheres prenhes, cujo progenitor tem como nome “Ruas”! Parece irónico, não é verdade? Que o tal edil que apadrinhou o nome a esta avenida e que a nomeou como “Avenida Europa” tenha, uns anos mais tarde, se refugiado na fria e cinzenta Bruxelas, aquela cidade onde um menino que urina eternamente seja uma das suas imagens icónicas mais fortes ou na fluvial Estrasburgo, rodeada de edifícios talhados ainda em madeira, como se fosse uma cidade medieval sitiada, perdendo o ditoso e esforçado senhor a sua bravata mais pessoal de respingar um tom escurecido à lã que lhe cobre o caco, silenciando-se com afrontosa mansidão, mas arrecadando um rico pecúlio para a sua reforma dourada!
Esta é a realidade, tal como ela se apresenta aos nossos olhos, sem pôr nem tirar, se bem que, em boa verdade, em matéria de criatividade possamos fornecer-lhe um pouco de sal, pimenta, umas ervas aromáticas: doces, salgadas e apimentadas, por forma a tornar a gastronomia mais rica, como se fosse uma geleia rústica, que tanto pode ser servida nos locais mais simples, como nos lares mais ou menos sumptuosos porque dela, da gastronomia e das mulheres, eu digo:
- O meu reino pelas três mulheres do sabonete de Araxá!
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Posso ver-te, olhar-te profundamente, experimentar a tua métrica, o teu suave sibilar que enobrece as tuas origens, a tua palavra amena e aprazível que nos deixa entrar na tua intimidade, a cor dos teus olhos que nos dão a pigmentação dos bosques repletos de pinheiros e o solo sulcado de relva irregular e silvestre…posso ouvir as tuas palavras que me evocam um coração cheio de vida, uma vontade ínfima em agradar, em proteger, em agasalhar, em plasmar uma amizade que não se deixa seduzir pelo artificialismo, pela irreconhecível vontade de agradar, mas que quer viver autónoma e sentidamente, mesmo que essa vida desponte apenas uns instantes nas nossas vidas, como são uns dias, em dois meses, vidas prolixas, profundas, dominadas pela cor e pela vontade de uma flor que se ergue no cimo de uma encosta, mesmo num fenda entre duas rochas que crescem livres por ali, agrestes e plurinominais, como são duas rochas firmes, duas plêiades criativas e sensíveis cuja duração se reflete numa amizade, numa vocação, num talento, que jamais esquecerá este encontro, se bem que ele seja um reencontro, mas nesta comunhão de vontades, de um exercício criativo, de uma intimidade mais reflexiva ele tenha sido o mais glorioso, o mais exuberante, porque dele saem valores e vontades que jamais se esquecerão: estejam onde estiverem duas forças cintilarão como duas estrelas de inaudita força e luminosidade!
Um dia poderás reler estas palavras, estes sentimentos, estas vontades, estas premonições, estes desejos, e verás que a Vida tem todo o sentido porque ela carrega todo o carinho que nós lhe queremos dar! Uma Vida agnóstica de sentidos, burlesca, irresponsável e devota do apenas pão e sustento alimentar é uma Vida vazia, vaga e de extrema simplicidade para ser erguida como a existência de um Homem…a volúpia, tão pregada pelos epicuristas, assume-se como o nosso lema de vida, tão assumida em nós pela verticalização de uma profundidade das palavras que enchem a nossa Alma de poetas encartados que forjam na prosa os encantos de uma infância que tarda em se apagar e que é nela, nessa barca, que navegaremos até ao destino traçado pelas barcas dramáticas com que Gil Vicente nos encantou.
As Barcas são o nosso agasalho do frio que sopra lá fora e que nos permite suportar a vacuidade diária que nos assola, que tanto nos entristece e que infelizmente somos obrigados a suportar. Os livros, os bons livros, as pessoas e a amizade que deles extraímos, obviamente que aqui se alude a certas pessoas, dão-nos o calor que tanto necessitamos para viver, a roupa que nos aquece e nos acode contra o frio polar que nos assola tocado por certas consciências que nos abalroam permanentemente.
E tu és a evidência do que pode fazer uma roupa, um agasalho, para tornar glorioso um encontro ou reencontro de duas almas desassossegadas que buscam redimir-se do um certo “laisser fair…laisser passer” cultural porque o que nos interessa mesmo é o conteúdo, a forma, a reflexão, a dimensão do sentimento, de um afeto mesmo que aparentemente esquecido e não o culto da imagem apenas e a suposição de que certos dons, eminentemente superficiais, é que interessa deter e dominar e que constantemente somos inundados!