AMORAS SILVESTRES
Amoras silvestres
Visitam-me amiúde
Regressam desde o passado longínquo
Onde vislumbro o pó
E já não a essência
Do corpo que se dividiu
Passado sem regresso
A ele não poderei voltar
Da forma com o vivi
Onde
Tudo era lento, postergado e preanunciado
Não havia tanta vontade
Tanta obsessão pelo ter
Nem espaço sequer para o ser
E o desejo era uma miragem
Latente e opressivo
A Fé substituía e entorpecia qualquer esboço de desejo…
Nesse tempo
A animosidade estava ausente
A cobiça palavra apenas
E eu esticava as finas mãos
Penetrando nos silvados
Compartilhando a disputa com os melros
Queria apenas colher amoras silvestres
Guardadas pelos espinhos
Enchia ávido de amoras
A minha boca adocicada
E ficava-me com as minúsculas grainhas
Que envolvem a polpa das amoras,
Nesse tempo ansiava
Por um país moderno e sofisticado
Mas o que tinha eram amoras silvestres
Espinhos…muitos espinhos…
E nada mais
Ergueu-se há muito monumento à ignorância
Grassava
A simplicidade campestre
A pobreza espiritual
Nesse país
Nesse tempo
Tudo era cinzento
E manifestamente comediante
Ninguém sabia rir
Todos eram excessivamente sérios
Não pela vontade mas pela imposição!
Hoje há revivalismos sobre o passado
Por vezes demasiado hiperbólicos
Até uma simples descrição de uma colheita de amoras
Nos remete até uma saudade
Que acaba destilando gotículas de saliva
A minha primeira colheita de amoras
Acabou misturada com açúcar
Foi a minha primeira sobremesa a sério
Que, todavia, recordo
Na companhia de um idoso
Jovial e generoso como ninguém
Que, em permanente entorpecimento alcoólico,
Acabou por perecer, afogado, nas águas de um ribeiro
E ouvi-o tantas vezes declamar o adágio popular:
- Sopas de vinho não embebedam…
Mas é no pó que vou aspirando
Que me vem do sótão da memória
Que evoco todos aqueles com quem brinquei
Aguardar-me-ão
Pelo reencontro
Renovando os votos
Para voltar a ser feliz
Ludibriando a tristeza sentida pela ausência
Saciando a sua vontade com a minha presença
Brincando alegres e candidamente
Como as crianças
Que fomos outrora!