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Artimanhas do Diabo

Artimanhas do Diabo

SINTONIA

 

Levo-te ao colo

Com as tuas mãos

Entrelaçadas no meu corpo  

 

Sinto

Esse teu peito quente e ofegante

A descansar de júbilo colado ao meu

 

Acabamos a noite na mesma sintonia  

O mesmo batimento

As mesmas vibrações

Dos nossos corações

 

Vislumbro essa tua cútis

Reluzente

Ansiosa

Quer mesmo ser afagada

Pelo deslizar suave 

Para cima e para baixo

Das minhas mãos   

Que acabam tateando os poros

Onde

Em cada um deles

Cabem os grandes desejos

De uma vida!

 

Nesse teus olhos sentidos

Que cintilam de cada vez que idealizas 

O caminho da tua felicidade  

Guardas a dimensão e o arrebatamento 

Que o mundo todo te pode dar

 

Mas esses teus olhos

Não estão preparados

Para olhar os meus

E os meus os teus

 

Olhos sensíveis

A quem a luz cintilante

Lacera a íris

Preferindo ambos as sombras

Formadas pelas grandes florestas

Que acabam por acalmar

A fragância da nossa alma 

 

Mas onde estiveres

Onde eu estiver

Mesmo sem nos conhecermos

Olhar-nos-emos inquietos

Surpreendidos

Quase certos

De que és tu

E que eu sou eu

Mas ansiosos em indagar

És mesmo tu?

 

Vestimos a mesma roupagem

A das palavras

Que revelam sentimentos

Que adiam decisões

Pedem mudanças radicais

 

Ultrapassamos

Imprudentes desfiladeiros

Apertadas gargantas

Áridos desertos pejados de areia 

Terríveis montanhas

Acabamos por mostrar o caminho

Que impusemos um ao outro

 

Despidos nadamos no mar da inspiração  

A cada braçada

Tocamos nas letras que flutuavam    

E que, reunidas,

Formavam  

Palavras

Frases

Textos

 

E foi então que tudo começou a fazer sentido

As palavras gravadas na superfície da água

deram-nos a dimensão

E o fulgor

Únicos

Que não esmorece com a distância

Ou com a ausência

Porque, 

Lendo-te

E tu lendo-me

 Passamos a ser companheiros

Do galope diário

Que nos levará ao Reino da Fantasia

 

E é aí, nessa dimensão cósmica,

Que encontraremos

Todos aqueles que já pereceram

E, destes, todos os que amamos de verdade

Os de sangue

Os de afetos

E todos aqueles que nos deixaram o lindíssimo legado

Das suas palavras

Para a posteridade

 

Vigias-me

Vigio-te a ti

 

Concede-me esse teu pulso frágil

Dá-me a dimensão das tuas fragâncias  

Deixa-me sorver os néctares da tua planta

Que se esconde no interior dessa selva imensa

Que se incendia

E brota palavras de amor

 

Deixa-me perder-me nesse teu cais

Onde recebes navegadores solitários

Que falam o necessário

E que escrevem compulsivamente…

Faz deste nosso espaço

O Peter Café nessa Ilha do Faial

Que acode aos solitários marinheiros

Que navegam aos ventos

Na imensidão do oceano!  

O DEUS HUMANO

Quando morrem alguns 

Não se podem dar ao luxo

Como os demais

De descansar em paz!

Desde as escrituras que a tradição manda

Descansem em paz

 

Mas há pessoas

Que adquirem uma tal grandiosidade em vida

Que acabam por se tornar mitos

Quase deuses

Carregados de carisma e de autenticidade

De uma força intrínseca e extrínseca

Que a pronúncia dos nomes em concreto

Transporta-nos logo para uma dimensão

Gigantesca, megalómana, mitómana

A que ninguém é indiferente

 

A propósito da morte recente

De um ídolo de dimensão universal

Era talvez a personalidade mais conhecida

Pelos bons e maus motivos

A que ninguém ficava indiferente

Será que, qual Citizen Kane,

Na hora da despedida proferiu:

“Rosebud”? 

 

Ele foi, talvez, o primeiro ídolo

Mediático

Galáctico  

Que preanunciou o que mais tarde viria  

 

Quando ouço dizer

Que fulano postou na sua rede social

Sobre um qualquer tema em concreto

Redigindo, a propósito, uma breve e resumida mensagem

Invariavelmente muito bem redigida

Sensível

Profunda

Porque o momento assim o impõe

Mas, com que artimanhas do diabo,

Surgem estes ídolos que somem e seguem

Em vitórias nas pistas, nos relvados, nos pavilhões, nos palcos

E que deles apenas se conhece

Em público

Um discurso onde não abundam palavras de reflexão?

Tudo o contrário das suas mensagens escritas?

 

O finado ídolo era tão contraditório

Como todos os seus compatriotas o são

Onde não existe unidade em nada

Veneram os seus ídolos mortos

Como ninguém 

Com a naturalidade que é tão comum

Aos do país das pampas

 

É por isso que é mais fácil

Que um elefante penetre num buraco de uma agulha 

Do que encontrar dois naturais desse país

Que concordem um com o outro

É, aliás, a sua pele, a sua essência de vida

Numa sociedade forjada de emigrantes

Que nos dão a dimensão daquela comunidade:

Italianos, judeus, alemães e, claro, espanhóis  

O que deu essa mistura explosiva

De povo que anda à procura da sua identidade

Tanto psicanalista numa só cidade de, ditosos, “bons ares”

  Explicará, decerto, essa procura, essa dimensão feroz da identidade

 

Esse país está em permanente discórdia consigo mesmo

Discute-se com o amigo, com o vizinho e, claro, com o desconhecido

Mas discute-se também com quem se ama

Já imaginaram como será a relação entre os dois numa sociedade assim?

 

Mas o tango, as pampas, a patagónia e alguns glaciares famosos

Tornaram aquele país polar do sul

De formato de pera invertida

Que se dá ares de forte e que nunca desiste de pelear

Com o gigante ao lado que fala a língua de camões açucarada

 

Faltava, porém, uma personalidade

Que pudesse corporizar povo tão sentimental

Que deu ao mundo o tango

A que ninguém pode ser alheio

A sua musicalidade parece fazer vibrar as cordas dos nossos sentidos

Aquele povo tão profundo

Tão açambarcador da palavra

Tão teimoso

Tão casmurro

Mas tão excecional

Até nas contradições

E que deu ao mundo esse mito universal da literatura:

Borges!

 

Mas só aquele metro e meio de gente

Com uma fisionomia tão ergonómica  

Que nasceu para ser jogador de futebol 

E por onde passava era um furacão 

Que conseguia chegar a tudo e a todos

E, sem medos, expressava os seus pontos de vista

Que até Fidel se rendeu ao seu gigantesco charme

À sua incrível arte de sedução

E ele à dele!

 

Mas prefiro mil vezes este mito

Que é um Deus para muitos

Mas um Deus humano

Do que mil heróis

Do que mil mitos

Da conta bancária

Onde o ter se sobrepõe ao ser!

 

 

 

 

 

 

 

 

A PRAIA

Luz

Azul

Cintilante

Enorme

Infindável

Filtrada pelos meus olhos claros

Sensíveis à luz veemente   

Irrompe poderosa até aos meus neurónios

 

Luz que me alivia

Do negro olhar dos dias chuvosos e cinzentos

Da espuma brumosa

Esbranquiçada

Leitosa

Que vai crepitando

Até se desfazer na areia

 

Do sal que respiro

Do omnipresente odor a maresia 

Da fina areia que piso

Da espessa concha do pequeno molusco que estilizo

Enterrando-a ainda mais na areia

 

E daqueles peixinhos circundantes

Que nadam na minha imaginação

Benignas figuras da minha infância

Que avisto nos interstícios da neblina

Desta praia que avisto

Que conheço como ninguém

E que não me sai da cabeça

 

Ao último olhar que,

Na hora da minha despedida

Nestes neste mundo lançarei

Não faltará a praia que não me canso de avistar

A praia que não me canso de almejar

Nos dias de neblinas

E de frios insondáveis

Que não me deixam

Tranquilo

Em paz 

 

Mas afina a praia

É muito mais do que o meu olhar

Do que a minha vontade

Do que os meus desejos

Está para além de mim

 

A praia

Sou eu

Mas és tu também!

Nesse teu melancólico olhar

Rente, interior, insatisfeito

Fugidio e fugaz   

Alcanço

Num ocasional instante

Em que te revejo

E converso

Essas tuas inquietações

Que me surgem desde ti  

 

Adquiro a certeza que a paixão

Essa que se escondeu

No teu opressivo pudor

E vive agora instalada na sombra

Do teu glorioso passado

Foi substância irrevogável

Que te abandonou

 

Nesse dia em que te revi

Leves gotículas de chuva

Soavam silenciosas no solo

Sem aquela sonoridade

Forte e expressiva

Que nos faz recuar

Perante a sua aparição

 

O dia, apesar de cinzento e enevoado,

Apresentava-se ameno

Mas este nosso reencontro

Não podia ocorrer de outra maneira

Que não fosse

Soar a estranho e, especialmente, emotivo  

 

A conversa discorreu em tom intimista  

A emoção subiu célere e quase de imediato  

E, estranhamente, senti frio

Leves vibrações abalaram o meu corpo

Senti-te tensa e vi breves esgueirares

De olhares para que eu não visse

O que os teus olhos não queriam que eu visse

 

Estremeci e tu, ainda mais, estremeceste

 

Vislumbrar esses teus olhos tristonhos

Desinspirados e perdidos nas tuas memórias

E que se acendiam de júbilo

Quando falavas do futuro

Ou dessa descoberta interior

Filosófica e espiritual

Que tu

Desiludida, arrefecida, despida e desinspirada

Pela ausência de desejo

Que paulatinamente

E sem que te desses conta

Te foi abandonando

Te obrigou a enveredar

 

E foi, assim, essa luz transcendental

De busca, de procura

Pelo crescimento interior

Repelindo o que quotidianamente te rodeava:

Essas pessoas próximas que já não te dizem nada

Que se transformou na única luz que te orienta

Sustentada nessa parábola budista

Que vê um cavaleiro a trotar ligeiro;

Alguém pergunta:

- Para onde vais cavaleiro?

E o cavaleiro responde:

- Não sei…pergunta ao cavalo!

 

Mas nessas tuas mãos enrugadas

De dedos habituados

A esticarem-se

A entrelaçaram-se

A se encerrarem

Na concha da mão

Para não testemunharem  

O magma de sentimentos

Que submergem  

Nesse teu coração destroçado

Sem mel já para o alimentar

E sem a doçura sanguínea

Que acaba repelindo as borboletas

Dessa flor que levas ao peito

Murcha e, estranhamente, muda

E sem néctar

 

Mas os teus olhos

São todo um poema

Uma triste ode aos condenados

Aos que não têm redenção

Aos que mataram e vilipendiaram

Mas tu

Não mataste

Não roubaste

Não burlaste   

Tu apenas querias dar a tua suavidade

Essa tua cor de fogo

Que explode de desejo

Na hora em que a chuva caí

Em bátegas múltiplas

Que acabam arrefecendo

Essa tua felicidade

A que, todavia, não olvidaste

E que anseias ainda voltar a ter!

 

Gostava de te abraçar

De te lançar os meus longos braços

Para te envolver a tua cútis  

Gostava de te relançar o desejo

Mas isso seria trair

Cada um dos nossos projetos de vida

Por um fugaz e quente reencontro

E no final estaríamos os dois

Irremediavelmente sós!  

 

 

O SARDÃO AZUL

Com o olhar abismado

Na paisagem absolutamente sublime 

Que se mostra

À contemplação dos olhos

E ao crivo dos sentidos

 

Cismado a pensar no amanhã

Perplexo com tamanha verdura,

A esperança num mundo melhor, 

Tanto serra

Que acaba cerceando a visão para além dos limites

Tantas árvores

Que preenchem infindáveis manchas de território

E algumas estradas que acabam derrubando o isolamento  

 

Afiançado pela dimensão da beleza

Com que, por vezes, a natureza se mostra  

Que deixa qualquer um assombrado  

Pelo seu visionamento   

Depois de alcançar o alto da serra

 

E é, pois,

Sentado nas velhas fragas

Que se assemelham a edificações  

E criam a ilusão de habitações em granito  

Edificadas no cume do monte

Que, em silêncio, podemos ficar em transe   

E em permanente estado de contemplação quase absoluta!

 

O jovem pastor

Exausto de deambular pelas serranias circundantes

Acompanhando as suas orgulhosas cabras

De quatro patas almofadadas nos cascos

Que lhes permite irromper por ali acima

Sem sofrer qualquer contrariedade

Munidas de insaciável apetite

E que vão adubando o solo com uma fúria assinalável

Deixou-se quedar uns momentos em contemplação absoluta

E dali, para além de ouvir o vento a declamar palavras de circunstância,

Escutar, aqui e ali, o som de velhos motores de automóveis

Que vão procurando vencer os desafios

Impostos por uma estrada ziguezagueante

Paralela ao rio que corre suave e sublime

E se mostra à contemporização de um olhar

Nos vários prismas e nas múltiplas colorações que é possível avistar

 

Eis que o pastor se silencia ainda mais

E se queda absorto no envolvente

No que os seus olhos vêm

No que os seus sentidos sentem

E no que os seus olhos alcançam

 

E neste canário depara-se

De ouvido apuradíssimo

Que lhe chegam sons que se assemelham

Ao som do rio  

Aquele deslizar esfuziante da água a correr

Em fundo e na ladeira lá em baixo

A deslizar em direção ao mar

A exibir as suas águas esverdeadas

Rendilhadas de fios esbranquiçados

As correntes que o próprio rio vai gerando   

Que parecem fios em prata

Enfileirados nas vestes dos toureiros 

 

Ao fundo avisto a barragem

Que acabou por domar as suas águas

Que no passado tantas vidas tirou

 

Diz-se até

Que um certo barão se afundou no rio

Por causa da quantidade de libras que levava nos bolsos

Mas diz-se também

Que outras vidas não tirou

Por certo uma exata senhora

Cuja saia rodada que trajava

Serviu de boia e salvou-a

 

Mas, indiferente ao desastre,

O rio era como que um alma penada

Que deambulava por aí

Acelerava nos rápidos

E tornava a navegação quase impossível

E descansava nas levadas

Fugindo ao seu velho destino

O que fazia com que as embarcações quase se imobilizassem  

 

Nesse entretanto,

O pastor puxou de uma gaita-de-beiços

E pôs-se a tocar furiosamente

 

As cabras, impassíveis, continuavam a sua azáfama

Mordiscando e engolindo a erva abundante no solo

Para, de seguida,

Encetarem outro movimento mais abrangente

Procurando outro quarteirão 

Para voltarem a comer a apetitosa e fresca erva

 

De repente,

O pastor avistou um sardão

Revestido com o seu garboso manto azulado

Que saía de uma fresta de uma das rochas

E que se deslocava pachorrento

Até uma parte da rocha onde tinha todo o sol

Que um qualquer sardão

E aquele em particular

Que dava ares de ser já um vetusto sardão

Podia desejar

 

Mas o sardão ignorou por completo o pastor

Pôs a sua cabeçorra para a frente e ali ficou

Esticado e imóvel ao sol

 

O pastou olhou-o demoradamente

E não se conteve

 Lançou do cajado

Devagar e sorrateiramente

Mas, ao mesmo tempo, continuava a tocar na gaita-de-beiços

Velhas modas que o pai

Que foi pastor toda a vida

Lhe ensinara…

E então quando passava por um trecho musical

Mais agressivo e rápido

Vibrou uma forte pancada

Com o seu cajado

Na direção do sardão

E este nem teve sequer tempo de fugir

Ou de esboçar uma reação

Quedou-se imóvel e fulminado pela ação do pastor

 

O que nos pode matar

Não é a nossa força

Que amedronta os outros

As nossas fraquezas

Ou as nossas ações em concreto

Que podem dar força aos outros

Mas sim as ações ou inações

Dos que não estão em paz consigo mesmo!  

DEIXA-ME SER

Deito-me

Sob o leito da minha consciência

Boa ou má?

Depende do que soçobrou

Desse dia em concreto  

 

Absorto a olhar a escuridão

Que invade o meu quarto

Respiro, anseio, embrenho-me

Nesse encerrar de olhos

Que,

Espero,

Me possa levar ao sono

 

Todas as noites deito-me

E depois de uns breves instantes de reflexão

Volto-me para uns dos lados

Para dar início à aventura

A menos que uma arreliadora dor

Não me permita

 

Mas o sono, esse malandro do sono,

Para uns ele é tão fácil

Mas para outros é tão difícil de alcançar!  

 

O sono não aparece

E invade-nos quando nós queremos

Mas, antes, tem que ser a sua própria vontade a querer

E é então que, como que surgido do nada,

Ele apanha-nos de surpresa

E acabamos rendidos aos seus desígnios

 

O sono é pachorrento

Mas tem estratégia

E acaba por nos envolver

E de repente, surge no imediato  

E começa a despir-nos dos preconceitos

Arremessa-nos até esse mar

Escuro, oleoso e desconhecido

Envolve-nos no seu manto

Faz-nos obedecer aos seus desígnios 

E finalmente começa a dar os sinais:

Pesa-nos nos olhos

Inclina-nos o pescoço

Até que os olhos acabam por se encerrar  

E a cabeça se afunda na almofada  

 

E ali vamos 

Envoltos no sonho

Cavaleiros da noite

Exploradores polares

Lendários viajantes da Patagónia

Boiadeiros a liderar a manada no Pantanal

Peregrinos a caminho de Santigo

 

Deixamos de aspirar ao concreto

Passamos a desejar o indesejável

A ter frio no calor da noite

Enrolado nos cobertores

Deixamos de concretizar o amor

Passamos a desejar

A ter medos

A ter fúrias

A estremecer

Passamos a esquecer-nos de quem somos

E é então que

Obliteramos a vontade de nos sentarmos à mesa 

E mesmos que sejamos tão frugais   

Nem fome nem sede sintamos

Apenas a vontade de prosseguir a marcha

Por ali adiante

Até que não possamos mais

E despertemos

Desse

Como doutros

Sonhos

E levantemos o olhar para cima

E concluímos:

Foi mais um sonho!

 

Embriagado

Pelo sonho

Capaz de permanecer décadas e décadas deitado

O rapaz vive de sonhos

De quimeras

De mundos fantasiosos que animam

A sua pobre vida

Embrenha-se na difícil arte da sedução

E até se arroga o direito de se auto seduzir  

E é então que sedado

Alivia a boa nota

A saliva que se vai secando na boca

A vontade que o deixa órfão

A miséria que o envolve

Sem deixar de o transpor

Esse fio dourado

Que separa a consciência da inconsciência

 

Mas haverá vontade que supere a indecisão?

Deixa, ao menos,

Apanhar-te

Para engrossar as tuas calosidades  

Fazer que tu sejas

Eu  

 

Mas deixa-me volver a ser

O mesmo rapaz ensonado

Que se deitava leve e ligeiro

E dormia ininterruptamente

Deixa-me ser quem eu era

Antes de te conhecer!

 

O LOBO

Vou por ali a eito

Por fim alcanço-a

Entrincheirada e isolada

No meio dos planaltos 

Voltada para uma garganta

Por onde se atreve o rio a correr

 

O som da água de um velho fontanário

Escondido numa construção de ciprestes 

Anima o meu cansaço 

Mas os meus olhos claros

Intolerantes ao sol de verão

 Parecem já não aguentar mais

O sol

E aquela inclemente luz

Que dele emana!

 

Aproximo-me, bebo em goles sucessivos,

 A água gelada que cai com força no tanque

 

Deixo-me capturar

Pela agradável sensação de frescura

Que acaba exacerbando os meus sentimentos

Sinto-a fluir livremente

No apertado canal

Que circunda a rua empedrada 

Água clara, cristalina

Como nunca mais eu vi

 

Ao longe, ouço o ranger

Naquilo que me parecem queixumes

Das rodas dos velhos carros de bois

 

 Altivos eucaliptos agitam-se

Num passo leve e comedido 

Para cá

Para lá

Como se estivessem a dançar

Velhas músicas nostálgicas

Expelindo para o ar a sua marcante fragância

 

Na caminhada que me levou até aquelas paragens

E que não se cinze

À vetusta

Pequena

E castiça

Aldeola    

Eis-me, pois, no dealbar de uma habitação

Que se sobressai das restantes

Onde debaixo de um velho alpendre

Se construiu uma gaiola

E aí esvoaçam tranquilas rolas

Que não se cansam de turturinar

O arrulho característico das rolas!   

 

Casa que acolheu o grande Camilo em criança

Ali deu os primeiros passos nas letras

Apreendeu latim com um tio padre

E consta até numa das paredes da casa

Uma alusão ao que Camilo disse

Sobre ali ter vivido os momentos mais alegres da sua vida!

 

Mas quando o caminho empedrado

Pedras que, ali e ali, se vão soltando

Compostas de lisas arestas escorregadias

Eis-me, pois, a cindir o percurso

Que agora se vai estreitando

Numa íngreme descida

Onde vislumbro lá ao fundo

A água do rio acastanhada

De espuma esbranquiçada

Nas quedas de água

Que o parecem querer despertar

 De um pachorrento dormitar das levadas

 

Mas o encontro deu-se com o velho lobo

Alfa da alcateia 

Que bebia calmamente a água do rio

 

Quando observei o lobo dei-me o quanto estava equivocado

E eu que pensava que os lobos

Traziam a água à boca com a língua

Como os seus primos cães

Mas, afinal, eles sorvem a água

 

Desse lobo solitário

Que me fitou desconfiado

Com a água a escorrer

Em ínfimos fios

Pelo seu focinho empedernido  

Quedou-se, desde então, em mim

Uma oculta vontade

Da busca pela solidão!

O MEU GANGES

Correr atrás de ti

Como se eu fosse um néscio

Que, sincopado, se arremessa  

Em dias sim

Em dias não

Para as tuas águas  

Gélidas

Camaleónicas

Poluídas

Mas sagradas

 

Da sua caminhada ciclópica

Desde os Himalaias até à baía de Bengala

Vai engolindo velhos e novos rios

Carregados de histórias fantásticas

Descritos pelos sucessivos Panditas 

Que, em cada recanto,

Explicam a essência do Hinduísmo

 

Testemunhar o ressurgir no horizonte

Dos primeiros raios de sol na Índia

Momento antológico do dia

Único, imprescindível, fundamental

Perceber a energia

Que,

Pela manhã,

A cada dia,

Eclode

Como se fosse uma gigantesca fogueira

Que cintila e aquece na manhã em que desperta  

 

Aurora que se anuncia

Sempre esperançosa

Naquele incipiente silêncio

Captado bem cedo pela manhã

 

O romper do dia

Faz-me sempre lembrar

A primeira vez…

Que ouvi Waldemar Bastos

Que fui à escola

Que a mirei a ela   

Que pronunciei a palavra nova

Estranha e a contragosto para mim

Que li algo novo que me desconcertou

 

Acordar pela manhã

Perceber que é mais um dia

Que não será igual ao anterior

É uma vitoriosa batalha conquistada

Ver aquele como um novo dia  

E não a continuação

De dias e dias

Infatigáveis

Infindáveis

Onde tudo é igual

E o nada, que nada é,

Ganha contornos neuróticos

 

Sou um experiente e imponente arvoredo

Que já viu muito

Que conheceu árvores de várias latitudes

Frondosas e odoríficas

De folhas

Mais ou menos

Exuberantes 

Detendo-se, a cada passo,

Com alguma em especial

Observando animadíssimo

As belas folhas, a imponência

E os ditames que o seu coração

Lhe foi ditando a cada instante

 

Adoro observar

As frestas encurvadas dos troncos

Aqueles nódulos resinosos

Como se ali estivesse

Toda a magnitude da natureza

Ou a minha própria vida empolgada

Por onde beberei a sua seiva

 

Gosto de sentir o vento a soprar forte

O verso a carpir as mágoas

A alegria expugnada dos exageros

Respirar o oxigénio

Que tão prestimosa sensação me transmite

Nos ótimos fluídos que me chegam

Até à profundidade dos meus afetos

 

Adoro a frescura

A agradável sensação de liberdade

De muitas árvores que crescem

No mais improvável espaço

E que parecem comandadas por um único impulso

Não desistir da vida

Não baixar os braços perante as adversidades

 

Que seria de mim sem as árvores?

Como ficaria eu se elas se ausentassem?

O mundo seria mais vazio e desinteressante

Sem os pássaros

Que se escondem

Que procuram refúgio

Que descansam

Que nidificam

Que cantam belas melodias

Nas árvores

 

Quem cresceu próximo da natureza

Seja no norte ou no centro

Com as suas imponentes florestas

Pululadas de contos celtas

Seja mais a sul

Com algumas das suas árvores

Que são formas de vida vegetal

Das mais longas da humanidade

Teve algures no seu passado

A sua árvore

 

E, nessa árvore,

Deslizou inúmeras vezes pelo seu tronco

Acima ou abaixo

E era ali que, soberbo, se sentia

Vendo o mundo circundante de cima

 O poder imaginar

Que tinha poderes ilimitados sobre as coisas

Como se fosse um príncipe

Saída das incontáveis narrativas

De Hans Christian Andersen  

 

Ver o mundo de cima

Deu-me

Pela primeira vez

Uma diferente perspetiva

Da dimensão que estava habituado a ver

Ver de cima

Ver de baixo

Ver no mesmo plano

Concedeu-me uma incurável fonética

  De não me bastar ao óbvio

Mas ver, ver, ver sempre

Para além do óbvio

 Do cinzento

Ou do apenas preto e branco

E ao ver assim

Percebi como diletante eu sou  

 

O diabo não brinca

É astuto, engenhoso,

Tão ignobilmente interesseiro!

Mas, dentro de mim,

E mesmo que o diabo não queira

O Ganges vai continuar a correr

Para Bengala…

 

 

NÃO…NÃO FOI UM DIA PERFEITO!

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Por baixo da relva

Que eclode viçosa e espessa  

Amplo manto esverdeado   

Jazem sepultadas centenas de ossadas

Naquela terra tão impregnada

De odores e minúsculos seres

Que se alimentam de moléculas putrefactas

 

Necrópole acentuadamente contemporânea

Construída num talhão de cota baixa

Inabitual para estas edificações

Habitualmente edificadas  

Em zonas mais altas

 

Mas,

Abrem-se os olhos

Para deixem fruir a minha alma ferida   

Vasculhar todos os recantos deste cemitério

Onde eu, todavia, não penetrara

 

Incomensuráveis campas alinhadas

Remetem para um imponente desfile militar  

Assinaladas

Revestidas a relva

Harmoniosas e a perder de vista

Que me dão a sensação de frescura e de vida

E não o habitual e gélido mármore

Ou o compacto e escuro granito

 

De repente, no meio da relva

Entre o corredor

Que permite a entrada dos carros fúnebres

E as sucessivas fileiras de campas arrelvadas

Vislumbro um pequeno lago 

Que me ajuda a refrescar as memórias 

Liberta-me dos pecados

Porque água significa pureza e cristalinidade

E nesta pequena mancha aquosa

De aspeto curvo e sinuoso

Vejo a vida como ela é

Ondulante e surpreendente

Ao contrário da morte

Que não tem movimento

Mas todo o seu contrário   

 

O lago dá-nos a dimensão fresca da natureza

Como nos dá a relva 

 

Já as campas de linhas

Tão absolutamente direitas e fixas

Dão-nos a dimensão de como será a morte

 

Penetrando mais adentro

Vejo no exterior de um edifício

As pessoas aglomeradas em pequenos grupos

Mascaradas

Como se cada uma delas  

Estivesse num encontro  

Em que se preanuncia a sua partida deste mundo

Que se olham

Inalteráveis e sem emoção

Que se miram

Mas sem verem os rostos

Na última e derradeira partida

E, estou certo,

Que na hora da despedida

Não haverá emoção no rosto

Porque esse foi-se com a vida

Mas almas despregadas

Como pirilampos nas noites quentes de verão

Que deambulam sem destino

Em volta das iluminações públicas

 

A força do mistério da morte

Parece interpelar cada um dos presentes

Que se agrava ainda mais

Pela dimensão universal desta pandemia

Seja

Uma morte

Esperada

Repentina

Seja, como no caso em apreço,

 Agravada por se tratar de uma morte por asfixia

Causada pelos gomos de uma laranja

Tornando este óbito tão especial

Num momento de revolta

 

Incompreensível e impregnado de emoção

A incredulidade é o sentimento emergente

Para além da perda de um ser humano

A todos os que ali estão

Para testemunhar as exéquias

 

Mas o momento de emoção

Deu-se quando o caixão

Saído do salão onde se havia recolhido

Para dar as despedidas aos mais chegados

Testemunhando uma breve alocução   

Se dirigiu para o crematório

Onde iria ser cumprida a máxima:

“Tu és pó”!

 

Debaixo do “Perfect day”

Do Lou Reed  

Aquela música suave

Que se vai arrastando

Que acaba arranhando a alma

Testemunhando o “dia perfeito”

Que imaginou que a sua despedida perfeita

Seria no dia do seu funeral

Que se pudesse ouvir aquela música em especial

Ela que sempre se expressou

Por sentimentos veiculados através da música

 

Mas a música e sobretudo a letra

Desconchava-nos

Pede-se

Passar um dia contigo

Acompanhado de coisas simples e vulgares da vida

Para se ter um “dia perfeito”

Todo o contrário destes tempos

Em que até as crianças são exigentes

 

Segue o caixão ao som da música nos breves e últimos movimentos

Até ao local onde será incinerado

 

Não, não foi um dia perfeito

Foi, sim, um dia trágico

Ver uma mulher que vencera

Terrível pugna contra inimigo tão cruel

Como é o cancro

E que morreu de forma tão trágica

E quando se esperava uma vida ainda pela frente

Teve, afinal, uma vida tão efémera…

 

E não podia ser nunca,

Aquele dia,

Um dia perfeito!

 

  

 

 

 

SANGRE DE CASTELLA

 

federico_garcia80677.jpg

 

 

Por onde andas

Federico Garcia Lorca?

Acaso viajas nas nuvens

Como sempre parece ter sido o teu desígnio?

Tu que foste assassinado

Cobarde e vilmente 

Pelos fascistas de outrora

De unicórnio na cabeça

E que recentemente começaram a pugnar

Entusiasmados

Que o mundo é dos machos

E que todos os outros,

Sejam ou não minorias,

Devem ser banidos

Ou humilhados dos escaparates

 

Mas, como poderei encontrar-te?

Ou, pelo menos,

Como poderei encontrar essa armadura

Que sustentou a tua carne?

Tu que provocaste pânico

Nos teus perseguidores

Que, irresolutos, acabaram por te fuzilar

 Enterrando-te à pressa

 Sem cuidarem de saber se estavas vivo

Se o teu coração batia ou não?

 

Mas, Federico,

Mesmo que eu acabe por não te encontrar

Os teus vestígios corporais

Ou esses teus olhos tão radiantes

Ou os teus lábios finos e volúveis

Mas deixa-me ficar-me pelo óbvio

Disfrutar da harmonia e da cadência das tuas palavras

Em castelhano? Sim, em castelhano…

Tem mais música, mais profundidade, mais salero

 

Mas, deixa-me, enfim, ouvir esse verso eterno  

Que, infatigável, se repete dentro de mim:

“Verde que te quero verde”

 

Essa gente que abomina ciganos

Pretos e outras minorias

Que repele a igualdade de género

Que não pode ouvir falar sequer de homossexualidade

Que tem sempre um discurso associado de ódio

A tudo o que é diferente

Essa tropa de gloriosos defensores

Dos “bons e castos costumes”

Quer retomar o poder

Rindo-se, à despregada, da cara dos humildes

Que votam neles

E que regozijam quando olham para o povo

Que identifica os mesmos males

Que eles identificam  

 

Mas povo, esse, que quer sangue

E esses novos fascistas querem

Exigem mesmo

A pena perpétua

Mas logo a seguir quererão a pena capital

E querem-na, sobretudo,

Para fazer o que outrora fizeram a Federico

Assassinar, furar, esventrar

A todos esses medonhos “maricas”

Esfumando os seus corpos

Sepultando-os em valas comuns!

 

Mas, imponderável, dos imponderáveis,

Federico foi muito mais grandioso

Do que esses capões de meia tigela

 

Dos capões, nem penas lhe sobraram

Mas de Federico?..

Então não é que sobreviveram  

As sublimes palavras desse genial inventor delas  

Que as tratou como alguma vez alguém ousou tratar

Esse músico que fez perdurar até hoje as suas composições

Esse fugaz homem a quem a figura paterna o assustava

E que buscava na mãe o conforto

O colo

Que ele tanto procurou na sua fugaz e efémera vida

Em Fuente de los Vaqueros

 

Morreu, diz-se, de costas

Simbólico ato

Perpetrado pela soldadesca da Benemérita 

Desses que na sua divisa propugnam:

“Honrar é minha insígnia”

Pois…entendo…

De costas é que os invertidos devem ser mortos!

 

Mas Federico

Descansa em paz

Nessa firme e dura terra de Castela

Que nas noites de lua cheia

Eclode sangue desde as suas entranhas!

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