Levo-te ao colo
Com as tuas mãos
Entrelaçadas no meu corpo
Sinto
Esse teu peito quente e ofegante
A descansar de júbilo colado ao meu
Acabamos a noite na mesma sintonia
O mesmo batimento
As mesmas vibrações
Dos nossos corações
Vislumbro essa tua cútis
Reluzente
Ansiosa
Quer mesmo ser afagada
Pelo deslizar suave
Para cima e para baixo
Das minhas mãos
Que acabam tateando os poros
Onde
Em cada um deles
Cabem os grandes desejos
De uma vida!
Nesse teus olhos sentidos
Que cintilam de cada vez que idealizas
O caminho da tua felicidade
Guardas a dimensão e o arrebatamento
Que o mundo todo te pode dar
Mas esses teus olhos
Não estão preparados
Para olhar os meus
E os meus os teus
Olhos sensíveis
A quem a luz cintilante
Lacera a íris
Preferindo ambos as sombras
Formadas pelas grandes florestas
Que acabam por acalmar
A fragância da nossa alma
Mas onde estiveres
Onde eu estiver
Mesmo sem nos conhecermos
Olhar-nos-emos inquietos
Surpreendidos
Quase certos
De que és tu
E que eu sou eu
Mas ansiosos em indagar
És mesmo tu?
Vestimos a mesma roupagem
A das palavras
Que revelam sentimentos
Que adiam decisões
Pedem mudanças radicais
Ultrapassamos
Imprudentes desfiladeiros
Apertadas gargantas
Áridos desertos pejados de areia
Terríveis montanhas
Acabamos por mostrar o caminho
Que impusemos um ao outro
Despidos nadamos no mar da inspiração
A cada braçada
Tocamos nas letras que flutuavam
E que, reunidas,
Formavam
Palavras
Frases
Textos
E foi então que tudo começou a fazer sentido
As palavras gravadas na superfície da água
deram-nos a dimensão
E o fulgor
Únicos
Que não esmorece com a distância
Ou com a ausência
Porque,
Lendo-te
E tu lendo-me
Passamos a ser companheiros
Do galope diário
Que nos levará ao Reino da Fantasia
E é aí, nessa dimensão cósmica,
Que encontraremos
Todos aqueles que já pereceram
E, destes, todos os que amamos de verdade
Os de sangue
Os de afetos
E todos aqueles que nos deixaram o lindíssimo legado
Das suas palavras
Para a posteridade
Vigias-me
Vigio-te a ti
Concede-me esse teu pulso frágil
Dá-me a dimensão das tuas fragâncias
Deixa-me sorver os néctares da tua planta
Que se esconde no interior dessa selva imensa
Que se incendia
E brota palavras de amor
Deixa-me perder-me nesse teu cais
Onde recebes navegadores solitários
Que falam o necessário
E que escrevem compulsivamente…
Faz deste nosso espaço
O Peter Café nessa Ilha do Faial
Que acode aos solitários marinheiros
Que navegam aos ventos
Na imensidão do oceano!
Quando morrem alguns
Não se podem dar ao luxo
Como os demais
De descansar em paz!
Desde as escrituras que a tradição manda
Descansem em paz
Mas há pessoas
Que adquirem uma tal grandiosidade em vida
Que acabam por se tornar mitos
Quase deuses
Carregados de carisma e de autenticidade
De uma força intrínseca e extrínseca
Que a pronúncia dos nomes em concreto
Transporta-nos logo para uma dimensão
Gigantesca, megalómana, mitómana
A que ninguém é indiferente
A propósito da morte recente
De um ídolo de dimensão universal
Era talvez a personalidade mais conhecida
Pelos bons e maus motivos
A que ninguém ficava indiferente
Será que, qual Citizen Kane,
Na hora da despedida proferiu:
“Rosebud”?
Ele foi, talvez, o primeiro ídolo
Mediático
Galáctico
Que preanunciou o que mais tarde viria
Quando ouço dizer
Que fulano postou na sua rede social
Sobre um qualquer tema em concreto
Redigindo, a propósito, uma breve e resumida mensagem
Invariavelmente muito bem redigida
Sensível
Profunda
Porque o momento assim o impõe
Mas, com que artimanhas do diabo,
Surgem estes ídolos que somem e seguem
Em vitórias nas pistas, nos relvados, nos pavilhões, nos palcos
E que deles apenas se conhece
Em público
Um discurso onde não abundam palavras de reflexão?
Tudo o contrário das suas mensagens escritas?
O finado ídolo era tão contraditório
Como todos os seus compatriotas o são
Onde não existe unidade em nada
Veneram os seus ídolos mortos
Como ninguém
Com a naturalidade que é tão comum
Aos do país das pampas
É por isso que é mais fácil
Que um elefante penetre num buraco de uma agulha
Do que encontrar dois naturais desse país
Que concordem um com o outro
É, aliás, a sua pele, a sua essência de vida
Numa sociedade forjada de emigrantes
Que nos dão a dimensão daquela comunidade:
Italianos, judeus, alemães e, claro, espanhóis
O que deu essa mistura explosiva
De povo que anda à procura da sua identidade
Tanto psicanalista numa só cidade de, ditosos, “bons ares”
Explicará, decerto, essa procura, essa dimensão feroz da identidade
Esse país está em permanente discórdia consigo mesmo
Discute-se com o amigo, com o vizinho e, claro, com o desconhecido
Mas discute-se também com quem se ama
Já imaginaram como será a relação entre os dois numa sociedade assim?
Mas o tango, as pampas, a patagónia e alguns glaciares famosos
Tornaram aquele país polar do sul
De formato de pera invertida
Que se dá ares de forte e que nunca desiste de pelear
Com o gigante ao lado que fala a língua de camões açucarada
Faltava, porém, uma personalidade
Que pudesse corporizar povo tão sentimental
Que deu ao mundo o tango
A que ninguém pode ser alheio
A sua musicalidade parece fazer vibrar as cordas dos nossos sentidos
Aquele povo tão profundo
Tão açambarcador da palavra
Tão teimoso
Tão casmurro
Mas tão excecional
Até nas contradições
E que deu ao mundo esse mito universal da literatura:
Borges!
Mas só aquele metro e meio de gente
Com uma fisionomia tão ergonómica
Que nasceu para ser jogador de futebol
E por onde passava era um furacão
Que conseguia chegar a tudo e a todos
E, sem medos, expressava os seus pontos de vista
Que até Fidel se rendeu ao seu gigantesco charme
À sua incrível arte de sedução
E ele à dele!
Mas prefiro mil vezes este mito
Que é um Deus para muitos
Mas um Deus humano
Do que mil heróis
Do que mil mitos
Da conta bancária
Onde o ter se sobrepõe ao ser!
Luz
Azul
Cintilante
Enorme
Infindável
Filtrada pelos meus olhos claros
Sensíveis à luz veemente
Irrompe poderosa até aos meus neurónios
Luz que me alivia
Do negro olhar dos dias chuvosos e cinzentos
Da espuma brumosa
Esbranquiçada
Leitosa
Que vai crepitando
Até se desfazer na areia
Do sal que respiro
Do omnipresente odor a maresia
Da fina areia que piso
Da espessa concha do pequeno molusco que estilizo
Enterrando-a ainda mais na areia
E daqueles peixinhos circundantes
Que nadam na minha imaginação
Benignas figuras da minha infância
Que avisto nos interstícios da neblina
Desta praia que avisto
Que conheço como ninguém
E que não me sai da cabeça
Ao último olhar que,
Na hora da minha despedida
Nestes neste mundo lançarei
Não faltará a praia que não me canso de avistar
A praia que não me canso de almejar
Nos dias de neblinas
E de frios insondáveis
Que não me deixam
Tranquilo
Em paz
Mas afina a praia
É muito mais do que o meu olhar
Do que a minha vontade
Do que os meus desejos
Está para além de mim
A praia
Sou eu
Mas és tu também!
Nesse teu melancólico olhar
Rente, interior, insatisfeito
Fugidio e fugaz
Alcanço
Num ocasional instante
Em que te revejo
E converso
Essas tuas inquietações
Que me surgem desde ti
Adquiro a certeza que a paixão
Essa que se escondeu
No teu opressivo pudor
E vive agora instalada na sombra
Do teu glorioso passado
Foi substância irrevogável
Que te abandonou
Nesse dia em que te revi
Leves gotículas de chuva
Soavam silenciosas no solo
Sem aquela sonoridade
Forte e expressiva
Que nos faz recuar
Perante a sua aparição
O dia, apesar de cinzento e enevoado,
Apresentava-se ameno
Mas este nosso reencontro
Não podia ocorrer de outra maneira
Que não fosse
Soar a estranho e, especialmente, emotivo
A conversa discorreu em tom intimista
A emoção subiu célere e quase de imediato
E, estranhamente, senti frio
Leves vibrações abalaram o meu corpo
Senti-te tensa e vi breves esgueirares
De olhares para que eu não visse
O que os teus olhos não queriam que eu visse
Estremeci e tu, ainda mais, estremeceste
Vislumbrar esses teus olhos tristonhos
Desinspirados e perdidos nas tuas memórias
E que se acendiam de júbilo
Quando falavas do futuro
Ou dessa descoberta interior
Filosófica e espiritual
Que tu
Desiludida, arrefecida, despida e desinspirada
Pela ausência de desejo
Que paulatinamente
E sem que te desses conta
Te foi abandonando
Te obrigou a enveredar
E foi, assim, essa luz transcendental
De busca, de procura
Pelo crescimento interior
Repelindo o que quotidianamente te rodeava:
Essas pessoas próximas que já não te dizem nada
Que se transformou na única luz que te orienta
Sustentada nessa parábola budista
Que vê um cavaleiro a trotar ligeiro;
Alguém pergunta:
- Para onde vais cavaleiro?
E o cavaleiro responde:
- Não sei…pergunta ao cavalo!
Mas nessas tuas mãos enrugadas
De dedos habituados
A esticarem-se
A entrelaçaram-se
A se encerrarem
Na concha da mão
Para não testemunharem
O magma de sentimentos
Que submergem
Nesse teu coração destroçado
Sem mel já para o alimentar
E sem a doçura sanguínea
Que acaba repelindo as borboletas
Dessa flor que levas ao peito
Murcha e, estranhamente, muda
E sem néctar
Mas os teus olhos
São todo um poema
Uma triste ode aos condenados
Aos que não têm redenção
Aos que mataram e vilipendiaram
Mas tu
Não mataste
Não roubaste
Não burlaste
Tu apenas querias dar a tua suavidade
Essa tua cor de fogo
Que explode de desejo
Na hora em que a chuva caí
Em bátegas múltiplas
Que acabam arrefecendo
Essa tua felicidade
A que, todavia, não olvidaste
E que anseias ainda voltar a ter!
Gostava de te abraçar
De te lançar os meus longos braços
Para te envolver a tua cútis
Gostava de te relançar o desejo
Mas isso seria trair
Cada um dos nossos projetos de vida
Por um fugaz e quente reencontro
E no final estaríamos os dois
Irremediavelmente sós!
Com o olhar abismado
Na paisagem absolutamente sublime
Que se mostra
À contemplação dos olhos
E ao crivo dos sentidos
Cismado a pensar no amanhã
Perplexo com tamanha verdura,
A esperança num mundo melhor,
Tanto serra
Que acaba cerceando a visão para além dos limites
Tantas árvores
Que preenchem infindáveis manchas de território
E algumas estradas que acabam derrubando o isolamento
Afiançado pela dimensão da beleza
Com que, por vezes, a natureza se mostra
Que deixa qualquer um assombrado
Pelo seu visionamento
Depois de alcançar o alto da serra
E é, pois,
Sentado nas velhas fragas
Que se assemelham a edificações
E criam a ilusão de habitações em granito
Edificadas no cume do monte
Que, em silêncio, podemos ficar em transe
E em permanente estado de contemplação quase absoluta!
O jovem pastor
Exausto de deambular pelas serranias circundantes
Acompanhando as suas orgulhosas cabras
De quatro patas almofadadas nos cascos
Que lhes permite irromper por ali acima
Sem sofrer qualquer contrariedade
Munidas de insaciável apetite
E que vão adubando o solo com uma fúria assinalável
Deixou-se quedar uns momentos em contemplação absoluta
E dali, para além de ouvir o vento a declamar palavras de circunstância,
Escutar, aqui e ali, o som de velhos motores de automóveis
Que vão procurando vencer os desafios
Impostos por uma estrada ziguezagueante
Paralela ao rio que corre suave e sublime
E se mostra à contemporização de um olhar
Nos vários prismas e nas múltiplas colorações que é possível avistar
Eis que o pastor se silencia ainda mais
E se queda absorto no envolvente
No que os seus olhos vêm
No que os seus sentidos sentem
E no que os seus olhos alcançam
E neste canário depara-se
De ouvido apuradíssimo
Que lhe chegam sons que se assemelham
Ao som do rio
Aquele deslizar esfuziante da água a correr
Em fundo e na ladeira lá em baixo
A deslizar em direção ao mar
A exibir as suas águas esverdeadas
Rendilhadas de fios esbranquiçados
As correntes que o próprio rio vai gerando
Que parecem fios em prata
Enfileirados nas vestes dos toureiros
Ao fundo avisto a barragem
Que acabou por domar as suas águas
Que no passado tantas vidas tirou
Diz-se até
Que um certo barão se afundou no rio
Por causa da quantidade de libras que levava nos bolsos
Mas diz-se também
Que outras vidas não tirou
Por certo uma exata senhora
Cuja saia rodada que trajava
Serviu de boia e salvou-a
Mas, indiferente ao desastre,
O rio era como que um alma penada
Que deambulava por aí
Acelerava nos rápidos
E tornava a navegação quase impossível
E descansava nas levadas
Fugindo ao seu velho destino
O que fazia com que as embarcações quase se imobilizassem
Nesse entretanto,
O pastor puxou de uma gaita-de-beiços
E pôs-se a tocar furiosamente
As cabras, impassíveis, continuavam a sua azáfama
Mordiscando e engolindo a erva abundante no solo
Para, de seguida,
Encetarem outro movimento mais abrangente
Procurando outro quarteirão
Para voltarem a comer a apetitosa e fresca erva
De repente,
O pastor avistou um sardão
Revestido com o seu garboso manto azulado
Que saía de uma fresta de uma das rochas
E que se deslocava pachorrento
Até uma parte da rocha onde tinha todo o sol
Que um qualquer sardão
E aquele em particular
Que dava ares de ser já um vetusto sardão
Podia desejar
Mas o sardão ignorou por completo o pastor
Pôs a sua cabeçorra para a frente e ali ficou
Esticado e imóvel ao sol
O pastou olhou-o demoradamente
E não se conteve
Lançou do cajado
Devagar e sorrateiramente
Mas, ao mesmo tempo, continuava a tocar na gaita-de-beiços
Velhas modas que o pai
Que foi pastor toda a vida
Lhe ensinara…
E então quando passava por um trecho musical
Mais agressivo e rápido
Vibrou uma forte pancada
Com o seu cajado
Na direção do sardão
E este nem teve sequer tempo de fugir
Ou de esboçar uma reação
Quedou-se imóvel e fulminado pela ação do pastor
O que nos pode matar
Não é a nossa força
Que amedronta os outros
As nossas fraquezas
Ou as nossas ações em concreto
Que podem dar força aos outros
Mas sim as ações ou inações
Dos que não estão em paz consigo mesmo!
Deito-me
Sob o leito da minha consciência
Boa ou má?
Depende do que soçobrou
Desse dia em concreto
Absorto a olhar a escuridão
Que invade o meu quarto
Respiro, anseio, embrenho-me
Nesse encerrar de olhos
Que,
Espero,
Me possa levar ao sono
Todas as noites deito-me
E depois de uns breves instantes de reflexão
Volto-me para uns dos lados
Para dar início à aventura
A menos que uma arreliadora dor
Não me permita
Mas o sono, esse malandro do sono,
Para uns ele é tão fácil
Mas para outros é tão difícil de alcançar!
O sono não aparece
E invade-nos quando nós queremos
Mas, antes, tem que ser a sua própria vontade a querer
E é então que, como que surgido do nada,
Ele apanha-nos de surpresa
E acabamos rendidos aos seus desígnios
O sono é pachorrento
Mas tem estratégia
E acaba por nos envolver
E de repente, surge no imediato
E começa a despir-nos dos preconceitos
Arremessa-nos até esse mar
Escuro, oleoso e desconhecido
Envolve-nos no seu manto
Faz-nos obedecer aos seus desígnios
E finalmente começa a dar os sinais:
Pesa-nos nos olhos
Inclina-nos o pescoço
Até que os olhos acabam por se encerrar
E a cabeça se afunda na almofada
E ali vamos
Envoltos no sonho
Cavaleiros da noite
Exploradores polares
Lendários viajantes da Patagónia
Boiadeiros a liderar a manada no Pantanal
Peregrinos a caminho de Santigo
Deixamos de aspirar ao concreto
Passamos a desejar o indesejável
A ter frio no calor da noite
Enrolado nos cobertores
Deixamos de concretizar o amor
Passamos a desejar
A ter medos
A ter fúrias
A estremecer
Passamos a esquecer-nos de quem somos
E é então que
Obliteramos a vontade de nos sentarmos à mesa
E mesmos que sejamos tão frugais
Nem fome nem sede sintamos
Apenas a vontade de prosseguir a marcha
Por ali adiante
Até que não possamos mais
E despertemos
Desse
Como doutros
Sonhos
E levantemos o olhar para cima
E concluímos:
Foi mais um sonho!
Embriagado
Pelo sonho
Capaz de permanecer décadas e décadas deitado
O rapaz vive de sonhos
De quimeras
De mundos fantasiosos que animam
A sua pobre vida
Embrenha-se na difícil arte da sedução
E até se arroga o direito de se auto seduzir
E é então que sedado
Alivia a boa nota
A saliva que se vai secando na boca
A vontade que o deixa órfão
A miséria que o envolve
Sem deixar de o transpor
Esse fio dourado
Que separa a consciência da inconsciência
Mas haverá vontade que supere a indecisão?
Deixa, ao menos,
Apanhar-te
Para engrossar as tuas calosidades
Fazer que tu sejas
Eu
Mas deixa-me volver a ser
O mesmo rapaz ensonado
Que se deitava leve e ligeiro
E dormia ininterruptamente
Deixa-me ser quem eu era
Antes de te conhecer!
Vou por ali a eito
Por fim alcanço-a
Entrincheirada e isolada
No meio dos planaltos
Voltada para uma garganta
Por onde se atreve o rio a correr
O som da água de um velho fontanário
Escondido numa construção de ciprestes
Anima o meu cansaço
Mas os meus olhos claros
Intolerantes ao sol de verão
Parecem já não aguentar mais
O sol
E aquela inclemente luz
Que dele emana!
Aproximo-me, bebo em goles sucessivos,
A água gelada que cai com força no tanque
Deixo-me capturar
Pela agradável sensação de frescura
Que acaba exacerbando os meus sentimentos
Sinto-a fluir livremente
No apertado canal
Que circunda a rua empedrada
Água clara, cristalina
Como nunca mais eu vi
Ao longe, ouço o ranger
Naquilo que me parecem queixumes
Das rodas dos velhos carros de bois
Altivos eucaliptos agitam-se
Num passo leve e comedido
Para cá
Para lá
Como se estivessem a dançar
Velhas músicas nostálgicas
Expelindo para o ar a sua marcante fragância
Na caminhada que me levou até aquelas paragens
E que não se cinze
À vetusta
Pequena
E castiça
Aldeola
Eis-me, pois, no dealbar de uma habitação
Que se sobressai das restantes
Onde debaixo de um velho alpendre
Se construiu uma gaiola
E aí esvoaçam tranquilas rolas
Que não se cansam de turturinar
O arrulho característico das rolas!
Casa que acolheu o grande Camilo em criança
Ali deu os primeiros passos nas letras
Apreendeu latim com um tio padre
E consta até numa das paredes da casa
Uma alusão ao que Camilo disse
Sobre ali ter vivido os momentos mais alegres da sua vida!
Mas quando o caminho empedrado
Pedras que, ali e ali, se vão soltando
Compostas de lisas arestas escorregadias
Eis-me, pois, a cindir o percurso
Que agora se vai estreitando
Numa íngreme descida
Onde vislumbro lá ao fundo
A água do rio acastanhada
De espuma esbranquiçada
Nas quedas de água
Que o parecem querer despertar
De um pachorrento dormitar das levadas
Mas o encontro deu-se com o velho lobo
Alfa da alcateia
Que bebia calmamente a água do rio
Quando observei o lobo dei-me o quanto estava equivocado
E eu que pensava que os lobos
Traziam a água à boca com a língua
Como os seus primos cães
Mas, afinal, eles sorvem a água
Desse lobo solitário
Que me fitou desconfiado
Com a água a escorrer
Em ínfimos fios
Pelo seu focinho empedernido
Quedou-se, desde então, em mim
Uma oculta vontade
Da busca pela solidão!
Correr atrás de ti
Como se eu fosse um néscio
Que, sincopado, se arremessa
Em dias sim
Em dias não
Para as tuas águas
Gélidas
Camaleónicas
Poluídas
Mas sagradas
Da sua caminhada ciclópica
Desde os Himalaias até à baía de Bengala
Vai engolindo velhos e novos rios
Carregados de histórias fantásticas
Descritos pelos sucessivos Panditas
Que, em cada recanto,
Explicam a essência do Hinduísmo
Testemunhar o ressurgir no horizonte
Dos primeiros raios de sol na Índia
Momento antológico do dia
Único, imprescindível, fundamental
Perceber a energia
Que,
Pela manhã,
A cada dia,
Eclode
Como se fosse uma gigantesca fogueira
Que cintila e aquece na manhã em que desperta
Aurora que se anuncia
Sempre esperançosa
Naquele incipiente silêncio
Captado bem cedo pela manhã
O romper do dia
Faz-me sempre lembrar
A primeira vez…
Que ouvi Waldemar Bastos
Que fui à escola
Que a mirei a ela
Que pronunciei a palavra nova
Estranha e a contragosto para mim
Que li algo novo que me desconcertou
Acordar pela manhã
Perceber que é mais um dia
Que não será igual ao anterior
É uma vitoriosa batalha conquistada
Ver aquele como um novo dia
E não a continuação
De dias e dias
Infatigáveis
Infindáveis
Onde tudo é igual
E o nada, que nada é,
Ganha contornos neuróticos
Sou um experiente e imponente arvoredo
Que já viu muito
Que conheceu árvores de várias latitudes
Frondosas e odoríficas
De folhas
Mais ou menos
Exuberantes
Detendo-se, a cada passo,
Com alguma em especial
Observando animadíssimo
As belas folhas, a imponência
E os ditames que o seu coração
Lhe foi ditando a cada instante
Adoro observar
As frestas encurvadas dos troncos
Aqueles nódulos resinosos
Como se ali estivesse
Toda a magnitude da natureza
Ou a minha própria vida empolgada
Por onde beberei a sua seiva
Gosto de sentir o vento a soprar forte
O verso a carpir as mágoas
A alegria expugnada dos exageros
Respirar o oxigénio
Que tão prestimosa sensação me transmite
Nos ótimos fluídos que me chegam
Até à profundidade dos meus afetos
Adoro a frescura
A agradável sensação de liberdade
De muitas árvores que crescem
No mais improvável espaço
E que parecem comandadas por um único impulso
Não desistir da vida
Não baixar os braços perante as adversidades
Que seria de mim sem as árvores?
Como ficaria eu se elas se ausentassem?
O mundo seria mais vazio e desinteressante
Sem os pássaros
Que se escondem
Que procuram refúgio
Que descansam
Que nidificam
Que cantam belas melodias
Nas árvores
Quem cresceu próximo da natureza
Seja no norte ou no centro
Com as suas imponentes florestas
Pululadas de contos celtas
Seja mais a sul
Com algumas das suas árvores
Que são formas de vida vegetal
Das mais longas da humanidade
Teve algures no seu passado
A sua árvore
E, nessa árvore,
Deslizou inúmeras vezes pelo seu tronco
Acima ou abaixo
E era ali que, soberbo, se sentia
Vendo o mundo circundante de cima
O poder imaginar
Que tinha poderes ilimitados sobre as coisas
Como se fosse um príncipe
Saída das incontáveis narrativas
De Hans Christian Andersen
Ver o mundo de cima
Deu-me
Pela primeira vez
Uma diferente perspetiva
Da dimensão que estava habituado a ver
Ver de cima
Ver de baixo
Ver no mesmo plano
Concedeu-me uma incurável fonética
De não me bastar ao óbvio
Mas ver, ver, ver sempre
Para além do óbvio
Do cinzento
Ou do apenas preto e branco
E ao ver assim
Percebi como diletante eu sou
O diabo não brinca
É astuto, engenhoso,
Tão ignobilmente interesseiro!
Mas, dentro de mim,
E mesmo que o diabo não queira
O Ganges vai continuar a correr
Para Bengala…
Por baixo da relva
Que eclode viçosa e espessa
Amplo manto esverdeado
Jazem sepultadas centenas de ossadas
Naquela terra tão impregnada
De odores e minúsculos seres
Que se alimentam de moléculas putrefactas
Necrópole acentuadamente contemporânea
Construída num talhão de cota baixa
Inabitual para estas edificações
Habitualmente edificadas
Em zonas mais altas
Mas,
Abrem-se os olhos
Para deixem fruir a minha alma ferida
Vasculhar todos os recantos deste cemitério
Onde eu, todavia, não penetrara
Incomensuráveis campas alinhadas
Remetem para um imponente desfile militar
Assinaladas
Revestidas a relva
Harmoniosas e a perder de vista
Que me dão a sensação de frescura e de vida
E não o habitual e gélido mármore
Ou o compacto e escuro granito
De repente, no meio da relva
Entre o corredor
Que permite a entrada dos carros fúnebres
E as sucessivas fileiras de campas arrelvadas
Vislumbro um pequeno lago
Que me ajuda a refrescar as memórias
Liberta-me dos pecados
Porque água significa pureza e cristalinidade
E nesta pequena mancha aquosa
De aspeto curvo e sinuoso
Vejo a vida como ela é
Ondulante e surpreendente
Ao contrário da morte
Que não tem movimento
Mas todo o seu contrário
O lago dá-nos a dimensão fresca da natureza
Como nos dá a relva
Já as campas de linhas
Tão absolutamente direitas e fixas
Dão-nos a dimensão de como será a morte
Penetrando mais adentro
Vejo no exterior de um edifício
As pessoas aglomeradas em pequenos grupos
Mascaradas
Como se cada uma delas
Estivesse num encontro
Em que se preanuncia a sua partida deste mundo
Que se olham
Inalteráveis e sem emoção
Que se miram
Mas sem verem os rostos
Na última e derradeira partida
E, estou certo,
Que na hora da despedida
Não haverá emoção no rosto
Porque esse foi-se com a vida
Mas almas despregadas
Como pirilampos nas noites quentes de verão
Que deambulam sem destino
Em volta das iluminações públicas
A força do mistério da morte
Parece interpelar cada um dos presentes
Que se agrava ainda mais
Pela dimensão universal desta pandemia
Seja
Uma morte
Esperada
Repentina
Seja, como no caso em apreço,
Agravada por se tratar de uma morte por asfixia
Causada pelos gomos de uma laranja
Tornando este óbito tão especial
Num momento de revolta
Incompreensível e impregnado de emoção
A incredulidade é o sentimento emergente
Para além da perda de um ser humano
A todos os que ali estão
Para testemunhar as exéquias
Mas o momento de emoção
Deu-se quando o caixão
Saído do salão onde se havia recolhido
Para dar as despedidas aos mais chegados
Testemunhando uma breve alocução
Se dirigiu para o crematório
Onde iria ser cumprida a máxima:
“Tu és pó”!
Debaixo do “Perfect day”
Do Lou Reed
Aquela música suave
Que se vai arrastando
Que acaba arranhando a alma
Testemunhando o “dia perfeito”
Que imaginou que a sua despedida perfeita
Seria no dia do seu funeral
Que se pudesse ouvir aquela música em especial
Ela que sempre se expressou
Por sentimentos veiculados através da música
Mas a música e sobretudo a letra
Desconchava-nos
Pede-se
Passar um dia contigo
Acompanhado de coisas simples e vulgares da vida
Para se ter um “dia perfeito”
Todo o contrário destes tempos
Em que até as crianças são exigentes
Segue o caixão ao som da música nos breves e últimos movimentos
Até ao local onde será incinerado
Não, não foi um dia perfeito
Foi, sim, um dia trágico
Ver uma mulher que vencera
Terrível pugna contra inimigo tão cruel
Como é o cancro
E que morreu de forma tão trágica
E quando se esperava uma vida ainda pela frente
Teve, afinal, uma vida tão efémera…
E não podia ser nunca,
Aquele dia,
Um dia perfeito!
Por onde andas
Federico Garcia Lorca?
Acaso viajas nas nuvens
Como sempre parece ter sido o teu desígnio?
Tu que foste assassinado
Cobarde e vilmente
Pelos fascistas de outrora
De unicórnio na cabeça
E que recentemente começaram a pugnar
Entusiasmados
Que o mundo é dos machos
E que todos os outros,
Sejam ou não minorias,
Devem ser banidos
Ou humilhados dos escaparates
Mas, como poderei encontrar-te?
Ou, pelo menos,
Como poderei encontrar essa armadura
Que sustentou a tua carne?
Tu que provocaste pânico
Nos teus perseguidores
Que, irresolutos, acabaram por te fuzilar
Enterrando-te à pressa
Sem cuidarem de saber se estavas vivo
Se o teu coração batia ou não?
Mas, Federico,
Mesmo que eu acabe por não te encontrar
Os teus vestígios corporais
Ou esses teus olhos tão radiantes
Ou os teus lábios finos e volúveis
Mas deixa-me ficar-me pelo óbvio
Disfrutar da harmonia e da cadência das tuas palavras
Em castelhano? Sim, em castelhano…
Tem mais música, mais profundidade, mais salero
Mas, deixa-me, enfim, ouvir esse verso eterno
Que, infatigável, se repete dentro de mim:
“Verde que te quero verde”
Essa gente que abomina ciganos
Pretos e outras minorias
Que repele a igualdade de género
Que não pode ouvir falar sequer de homossexualidade
Que tem sempre um discurso associado de ódio
A tudo o que é diferente
Essa tropa de gloriosos defensores
Dos “bons e castos costumes”
Quer retomar o poder
Rindo-se, à despregada, da cara dos humildes
Que votam neles
E que regozijam quando olham para o povo
Que identifica os mesmos males
Que eles identificam
Mas povo, esse, que quer sangue
E esses novos fascistas querem
Exigem mesmo
A pena perpétua
Mas logo a seguir quererão a pena capital
E querem-na, sobretudo,
Para fazer o que outrora fizeram a Federico
Assassinar, furar, esventrar
A todos esses medonhos “maricas”
Esfumando os seus corpos
Sepultando-os em valas comuns!
Mas, imponderável, dos imponderáveis,
Federico foi muito mais grandioso
Do que esses capões de meia tigela
Dos capões, nem penas lhe sobraram
Mas de Federico?..
Então não é que sobreviveram
As sublimes palavras desse genial inventor delas
Que as tratou como alguma vez alguém ousou tratar
Esse músico que fez perdurar até hoje as suas composições
Esse fugaz homem a quem a figura paterna o assustava
E que buscava na mãe o conforto
O colo
Que ele tanto procurou na sua fugaz e efémera vida
Em Fuente de los Vaqueros
Morreu, diz-se, de costas
Simbólico ato
Perpetrado pela soldadesca da Benemérita
Desses que na sua divisa propugnam:
“Honrar é minha insígnia”
Pois…entendo…
De costas é que os invertidos devem ser mortos!
Mas Federico
Descansa em paz
Nessa firme e dura terra de Castela
Que nas noites de lua cheia
Eclode sangue desde as suas entranhas!