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Quantas folhas
Quantas árvores
Alquebradas ou eretas
Se alinham na minha frente
Para me dar
Sombra
Textura
Frescura
Júbilo
As árvores…ah as árvores…
Que, ignoro se alegres ou tristes,
estão neste mundo
Para colorir e alegrar os dias
De quem as sabe valorizar
Podemos estarrecer
No vislumbre panorâmico
Da miséria urbana
Que nos lança para o caos
Sedento, enorme e derradeiro
Da pobreza infame
De quem nada tem
E fica vivendo do que não tem
Essa miséria sem fim
Ainda mais miséria
Degradante
Que é a volúpia
Dos que tudo têm
E que vêm na caridade
A salvação da sua existência
Benigna solidão
A horta dos eremitas
Que se agarra às pedras gastas
Das fortificações e castelos
Que se alinham milimetricamente
Ao longo do muro construído
Aí, nessa muralha,
Posso, enfim,
Vociferar à vontade
Dizer e comentar
Coisas absurdas e aberrantes
Como perecer asfixiado
Por uma peça de fruta
E morrer em segundos
Absurdo e sem redenção
A que ninguém está
Nem pode estar
Verdadeiramente preparado
Mas parece
Menina empolgada
De soquetes esbranquiçados
E franja em forma de musgo
Que não olhas de frente
Para o que verdadeiramente te afronta
Preferes, enfim,
Ziguezaguear sem destino
Ocultando-te em palavras
Carregadas de intensa exaltação amorosa
Como se fosses a voz dos embriagados de paixão
De tanto dizeres
E pareces sempre carregada
Martirizada até
De palavras que não têm fim
E sempre ordenando esses sentimentos
Como se fossem
Camadas sobrepostas, enfileiradas
De velhos e novos amores
E que são o combustível
Que te ergue da fúria contida
E te mantêm em pé
Vejo-te nesse aconchego
Serpenteando por entre as árvores
Mitologicamente
Como se tudo fosse
Natureza, paixão e amor
Mas desconfio que uma onda enorme
Poderá varrer a tua vida
Já varreu, aliás,
Arrastando-te para um pântano
Sulfuroso e espesso
Carregado de brumas
E de assombrações
E ouvir esses teus queixumes
Mesmo que seja nessa tua voz maviosa
Causa-me
Obstipação emocional
E por isso
Não sei quando voltarei
Até essas tuas palavras
Que medram com as minhas
Que se embriagam e entrelaçam
Nos meus sentimentos
Nas tuas palavras
Nessas tuas tantas certezas
Não há lugar para a diferença
Para o outro lado
É a verdade pura
De bronze
Enferrujada
Que em ti
Vejo nesse teus olhos de maruja
Que olha para o farol
E anseia pela noite
Para ver a luz acesa do faroleiro
Refletida na longura do mar
Mas, impaciente, aguarda o nascer do sol
Para ver o mar
Agitado, enfurecido e em desassossego
Carregado de vagas
Tempestuosas e revoltadas
Espero, então,
Ver por aí
As folhas caídas de outono
Rendido ao extrair voluptuoso dos adereços
Que cobrem essa tua intimidade
Preliminares que antecedem o júbilo
Deixo-me enlevar pela tua singular e afirmativa
Maneira de cumprires as tuas obrigações
Resquício dessa recordação do teu efémero pai
Mas quando estás próxima de conseguir
Acabas, sofrida e angustiada,
Por enterrar o êxtase
Que os teus sentimentos tanto te pedem
Silencias-te
Mergulhas, então, em monólogos
Desvirtuada e ressentida
Porque a graça parece ter-se esfumado
Exibes um sorriso fácil
De benevolência
E uma aparente boa disposição
Que não se casam com o teu olhar
Que, distraído e colhendo-te uma mirada desprevenida,
Deixa transparecer uma melancolia inquietante
Que me demanda o afeto que nutro por ti
Mulher cansada de ilusões
A quem dura e sentida tem sido a vida
Até o consórcio afetivo
Que começou por ser de entusiasmo e paixão intensa
Se foi quedando na frieza
De cada um no seu canto
Do leito conjugal
Longe um do outro
E amparados às almofadadas
Aquela mulher que no passado se suplantava
E parecia não se submeter a ninguém
De eminente consideração de si própria
Que extravasa líbido
Olhava sem pudores nos olhos
De sorriso maroto e insinuante
E se antevia nela
Um forte desejo de ir em frente pela aventura
Vive hoje de um certo brilho do passado
Como uma estrela que cintila nesse imenso céu escuro
E quando a olhamos
Questionamo-nos se ela todavia ainda tem vida!
Mas, estrela perdida, não perdeste o desejo
E, mesmo discreta e fundadamente,
Atreves-te a, por vezes,
Sonhar, desejar
Que uma bela história de amor
Te liberte do sótão encarquilhado e poeirento
Em que guardas o livro das tuas memórias
E voltes a edificar esse jardim
No Éden
Onde tantas vezes
Trocaste a formalidade e a aparência
Por um subversivo e ousado beijo
Que logo te deste no instante
Que te deixaste esquentar
E fruíste no desejo
Esse rio que corre dentro de ti
Nesse teu mundo subterrâneo
Que não morreu
E que é a fonte desse empolgamento
Que continua presente
Mas optaste pelo silêncio
E empurraste-te para esse território
Em que esquecimento nidificou
Acabaste por enterra-lo
Para te convenceres que não tens mais idade para certas coisas
Mas sim, tens idade, e tens graça ainda
Para dar e vender e sabes
Tenho a certeza
Fruir dos instantes da vida
A cada instante e ser e fazer júbilo
A quem em ti confiar o destino
Tens ainda a vontade de uma adolescente:
Trepar uma árvore
Deitar-te na relva
Meter uma fina palha na boca
Despir-te
Roçar esse corpo cansado
Aprisionar o desejo que há em ti
Num corpo compacto que te deseje
Como tu o desejas
Fazer amor nos locais mais improváveis
Porque, domesticada, silenciada
Levada a…
Continuas a mesma flor silvestre
Que eu conheci lá atrás
A espiga de milho que merece ser desfolhada
Desfiada, desflorada, desnudada
Porque a mulher mudada
Aparentemente
Pelas circunstâncias da vida
Conserva os sentimentos
Da água cristalina
Que corre apressada e límpida
Da nascente
Mas esse rio que te abastece
E que escassos são os que o conseguem avistar
Subterrâneo, porque assim as circunstâncias o exigem,
Não tem fim
Dentro de ti tens a fé inabalável no progenitor
Que zelará
Na viagem terrena
Por ti
Eternamente
Para te compensar da fugaz convivência!
Lábios carnudos
Que se encrespam
Como cristas de galo
Aprumados
Sedosos
E húmidos
Eles são a porta da gruta
Onde à entrada erguem-se filamentos de lã
Humedecidos e ondulados
Sem o vigor dos irmãos que medram no couro cabeludo
Mas entusiasmados como um velho camponês
Que todos os anos espera pela melhor cultura
E vai dizendo:
- Este ano é que vai ser…
E naquele beijo
O último que me deste
Querias que nele coubesse toda uma vida
Sorves-te naquele instante
E eu a ti
De uma só vez!
Olhos verdes clareados
Cútis cor de mármore
Corpo escultural sem adiposidades
De girafa espampanante
Que desde que o mirei
Desejei-o
Como se quisesse concentrar toda a força de uma vida
Como as palavras escritas
Que, de ti, soaram para mim
E tão olímpicas se revelaram
Que acabaram por intercetar
Os meus sentimentos mais profundos
De ti
Mulher alva de fulgor e entusiasmo
Senti o verdadeiro cheiro da maresia
Envolta em colares guarnecidos com conchas e algas
Vi a sereia que abandonou o mar
Em busca de uma paixão para a vida
Os búzios que contemplei nas tuas mãos
Ensinaram-me a respeitar ainda mais as crenças
Filamentos de redes à tua volta
Ensinaram-me a não me deixar enganar facilmente
Em tudo o que te desejei
Que te vi
Vi-me
E acabei por me ir
Abnegado e cúmplice
Como entrei
Olhando esse mar azul perfumado
Desde aquela varanda que guardo na memória
E tu sempre tão generosa comigo
Deste-me tudo o que eu te pedi
Mas já não me podes dar mais
Nem eu a ti
Porque não sei mais onde estás?
E vieste agora
Como uma memória enroupada num sonho
Desde o meu passado para me desinquietares
Como uma órbitra
Lançando sobre mim suaves seduções
Acabando por me exclamar:
- Acabou…esquece...
Atira-te às palavras com fúria
A tua paixão para a vida!
Mas eis que me cruzo com uma outra mulher
De tez escurecida
Olhos inquietos que olham para o além
Que procuram em cada estrela
Sorver cada instante como se fosse
O derradeiro momento da sua vida
Nas suas palavras descortino
A discreta onça com as suas pegadas
Sulcadas no areal dos rios
Mulher apaixonada, discreta e tão melindrosa…
Mas não consigo passar sem os seus nobres humores
Sentimentos que brotam de cada um dos seus poros
Dedos ágeis que manejam as letras e formam palavras
Pela sua boca
Saem gotículas do desejo e do entusiasmo pela vida
E que regozija
Quando transponho a sua gruta
Tão primitiva como escondida
Onde guarda todos os pergaminhos
Preenchidos com sublimes odes
Que se inspiram nas paixões da sua vida
Mas é com artimanhas que delimita
Através de doces palavras
A sebe que segurará
A quem, afinal, elas se destinam
Irmã
De idioma
De palavras
Não me deixes neste mundo
Sem o vigor dessas tuas palavras
Tão classicamente arrebatadas
Posso acabar os meus dias só
Como sós estaremos
Na hora da despedida
Mas nadando nesse mar da fertilidade
Onde flutuam as tuas palavras
Aí não precisarei mais dos zimbros
Que ondeiam o mar de Sesimbra
Porque ao encontrar-te
Encontrei-me
E não mais fugirás do meu radar!
Exibe-me, então, esse teus lábios de uma vez
Para eu ver como quentes eles são
E deixa-me regar essa tua planta
Que guardas com tanto viço
Deixa-me ver o sangue espesso
Dessa mistura de sentimentos
Que brota das tuas veias
A base da tua edificação
Onde mora essa paixão extrema e intocável
E que é a tua gloriosa salvação!
![007.jpg 007.jpg]()
*Escrito em Sesimbre em 1990.
FIM DA VIAGEM
E agora que se anuncia o fim desta viagem
Recortada por leves enseadas
Esconderijos onde o vento acabou se confessou do amor ao mar
Fortes batidas nas rochas
Que sustentam as ondas do mar
Que me endureceram as emoções
Mareada de “recuerdos”
Registados em sete folhinhas em papel
Carimbadas por manchas acastanhadas
Gastas pelo tempo
De carateres semiapagados
De odores salinos
Mesclados com o forte odor da terra
Temperados pela erva que cresce na Corredoura
Dos tunídeos prateados
Das cavalas mais resilientes
Ou desse homem dos “bigodes”
Que, mais que um chefe agarrado aos seus opíparos grelhados,
Parecia um velho navegador Viking
E é então que evoco,
Sim,
Com muita saudade,
O meu progenitor
Que me acompanhou na primeira viagem
Em que aportei à vila de Sesimbra
Mas que estará sempre dentro de mim
Nas sucessivas viagens que vou realizando
E que me acompanhará até ao fim dos meus dias
Porque a sua imagem, o seu vigor, a sua força, a sua personalidade
São aquilo que eu sou na plenitude!
Visto o meu melhor fato
Nessa derradeira hora de partir
Aliso o meu cabelo com o pente
Que, como uma gadanha,
Me vai alisando a espessa cabeleira
Com que sou abonado
Acomodando-a no devido lugar
Expurgando-a dos grãozinhos de caspa
Como se eles fossem as coisas malignas que me afetam
Não sou de ninguém
Se não de mim mesmo
Partindo
Chegando
Sinto-me muito melhor
Chegando
E não partindo;
Mas nesta hora da abalada
Em que deixarei este mar azul e calmo
Debruço-me sobre mim mesmo
Desvio o olhar para além do que as folhas em papel registam
E vislumbro nelas tudo o que na altura me incomodava
Nos personagens que escolhi para a narrativa
Destinada a pôr-me em paz
Mas de ti
Não me despedirei nunca
Chegarei nessa derradeira punção
Destinada a extrair os nossos sangues
Juntando-os
Para daí fazer não um, nem dois,
Mas textos intermináveis recheados de palavras
Como um jardim resplandecente
Mourejado
De flores e ervas
Que não serão de mim, de ti
Mas dos dois
Que viajarão na via látea
Até ao crepúsculo final
A barca acaba saindo
A bruma pouco a pouco se desvanece
E esse mar azul volta a ser avistado
Em toda a sua plenitude
E é na calma que me despeço
Das falésias que guardam Sesimbra
Mas de ti
Rio que atravessa a floresta
Que todos os dias desaguas o teu caudal no meu
Engrossando-o e tornando-o mais complexo
Desafiando o curso das minhas águas
Que me vês derrubar os sucessivos barqueiros
Que com audácia tentam vencer as vagas que vou lançando
Não me despedirei nunca!
![006.jpg 006.jpg]()
* Escrito em Sesimbra em 1999.
ANTECÂMARA DE UM JULGAMENTO
Perguntas,
Mulher que és,
Quem sou eu?
As mulheres não se contentam com o fácil e avulsamente
Esbracejam, afoitam, escarafuncham, indagam
Querem saber tudo
Até que acabam por desenterrar a verdade
Emocionada mas bem profunda
Como a raiz da glicínia
Procura a profundidade
Para se suster e crescer
A mulher busca a segurança
A certeza dos valores ocidentais, orientais
Em suma, universais
Assegurar que a sua vida
Se expandirá para além de si própria
No reino dos julgamentos
Onde homens julgam outros homens
Existe uma certa visão bíblica
Aquela onde no final da vida
E quando chega a hora de tomar a barca
Que levará ao destino final, sem retorno,
Alguém nos julgará pela vida que levamos
Mas será que nos podem julgar
Pela vida que levamos ou que tivemos ou que nos deixaram ter
Quando, habitualmente, ela está tão condicionada
Pelos outros,
Que nos querem
Mas também pelas múltiplas rejeições
Que vamos padecendo ao longo da vida
Até que aprendemos a viver com elas
E aí não há remédio
Há que levantar a cabeça e seguir em frente
E é então que a pergunta se impõe
Como alguém nos pode julgar
Se estamos tão condicionados pela aceitação ou rejeição dos outros?
Se me amas, amo-te também
Se me odeias, odeio-te também
É um pouco nesta dicotomia que vivemos
E é sobre ela que temos que prestar contas!
Será isto viver? Não será, antes,
Padecer na vida para depois ir para um lugar
Que nos dizem bonito e belo onde é tudo tão lindo?
Mas queremos nós, afinal, encontrar um local assim tão esplendoroso?
Ou, como é do meu caráter, buliçoso por natureza,
(Conhecem algum judeu que o não seja?)
Gosto de aqui estar
Mesmo que rodeado de tamanhos contrastes
Pois se ao lado do belo
Não existisse o feio, o horrível
Como se poderia afirmar “belo, magnífico, esplendoroso”
Se não existisse um termo de comparação?
Julgas-me, eu julgo-te
Aprecias-me, eu aprecio-te
Amas-me, amas-me mesmo?
Amo-te, amo-te mesmo?
Ou amo as tuas palavras
E tu as minhas
Que brotam dos nossos corações
Abertos e curiosos
Que gostam de olhar o céu
Para as estrelas que cintilam nesse firmamento
Ilimitado, expansivo e em crescendo
Apreciar essa lua deslumbrante
Que se esconde tantas vezes
Atrás do palco onde mandam as nuvens
Nós os dois somos géneros únicos
De uma mesma entidade
Que ama, e amará
Odeia, ou odiará
Pela palavra, sempre pela palavra
E não pelos sentimentos
Porque esses alimentam a incúria
E deixam-nos frágeis como
Um condenado à morte
A quem lhe dizem:
- É agora a hora de dizeres a verdade e toda a verdade…
Mas como pedir a verdade a quem espera a morte?
E para quê dizê-la se a morte é eminente e certa
Não será melhor esperar pelo julgamento
Para atuar na defesa do condenado
Ao céu ou ao inferno?
Mas dos teus olhos saem vislumbres com os meus
As tuas ações cotejam com as minhas
Dos teus haveres, palavras apenas,
Ficarão inertes
Escritos a letras douradas
No grande livro sem fim onde agora estão
Caminhando tu deslumbrada e ereta pelo deserto
Bailando eu numa embarcação no mar
Encontrar-nos-emos nesse pós julgamento
Pois, ambos iremos parar ao mesmo lugar
A esse recanto onde estão
Poetas, prosadores, pintores, artistas e demais sonhadores
Pois é aí que pertencemos!
![005.jpg 005.jpg]()
* Escrito em Sesimbra em 1990.
O MAR DOS ZIMBROS
Deixa-me ver-te
Pequenina e esguia
Terra de tão boas práticas marítimas
Nessa enseada côncava
Que amacia o olhar
Porto seguro e abrigado
Donde se avista o mar longínquo e rasgado
Que nas noites de intenso luar
Veste as suas melhores indumentárias
Para nos acompanhar nessa viagem noturna
Mostrando-nos, lá longe, as luzes que se anunciam
Desse sonho antigo
Do porto de águas profundas: Sines!
Vejo o sargo
Que se agiganta à chaputa
Vejo o goraz da pedra
Tão raro como delicioso
Reluz o plebeu salongo
Que preanuncia o nobre imperador
Pescadores que marcham inclinados
De balde na mão
Espalhados como sardinha pelas ruelas da vila
Habituados a velejarem
Nesse mar sem fim e oblíquo
Que parece que vai engolir todas as embarcações
Mas acabo por me confrontar
Com uma frase talhada na pedra escrita por Raúl Brandão
“Pescador de Sesimbra…
Regula-se pelas estrelas e pela malha encarnada da serra…”
O mar essa infinidade que impõe respeito
Como um deserto imenso
Onde cabe tudo
Até os sonhos e os amores mais difíceis
Porque a tragédia é eminente e cerca-nos
No deserto, como no mar,
É onde avaliamos as nossas forças e as nossas fraquezas
Pois sobreviver ali
É um dia de cada vez
No deserto, como no mar,
Também há amor, também há paixão,
E dada a magna infinidade
De cada um destes lugares
O amor, a paixão, a tragédia
Não conhecem moderação
São estupendas manifestações
Da Alma
E é aí também que ela se revela e brilha eterna!
![004.jpg 004.jpg]()
* Escrito em Sesimbra em 1990.
DO OLHAR DE UMA GAIVOTA
Aviso-te ou não da minha chegada a Sesimbra?
Mas acabo por suster as reflexões sobre ti
Que me observas do ecrã do computador
Arrebatada pela cor dos meus olhos!
Deslizas como uma borboleta
Voando para cima e para baixo sem destino
Olhando unicamente para a flor mais doce
Movendo sempre essas tuas asas
Com que atrais toda a minha atenção
E de coração ao vento
Anuncias essa dança que só nós sabemos dançar
Tu, no teclado do teu telemóvel,
Movendo esses teus dedos finos e perscrutadores
Que se aventuram a procurar as palavras
Que melhor casam com as minhas
Eu, na página em branco,
Pululada de carateres
Desde o alto do castelo acabo avistando
Cavalo e burro imobilizados no Forte de Santiago
De cabeça encafuada numa pia de água
Mas não vejo D. Sancho e João!
Que estarão fazendo os dois
Na casa que armazena as armas
E dá guarida aos homens que as manejam?
E é nesse instante,
Nessa vista de pássaro que o castelo me proporciona
Que olho para a praia
Salpicada de pequenas ondas
Que se desfazem na areia
E vislumbro um acontecimento extraordinário:
As tuas palavras grafadas na areia
Em letras garrafais
Sulcadas em chão firme e fundo
E é aí que observo
O encadear dessa paixão que há em ti
Expressa nas tuas palavras fortes e sentidas
Desses poemas que se aconchegam junto às ondas do mar
Suaves, silenciosas e meditativas…
Agora, sim, reflito no que os meus sentimentos me acabam dizendo
No espelho frígido que recebe o marcador
Que o irá resplendecer de júbilo
Nas palavras que, ambos, tanto amamos
Ou nas palavras que tanto nos amam a nós dois
Porque eu e tu
E as palavras também
Ficamos aveludados e tristes
Como os rouxinóis
Quando deixamos de ouvir o lento correr da água do rio
Ou quando deixamos de ouvir o “Kind Of Blue” do Miles Davis
Ou quando escutamos as variações
Em torno de uma qualquer melodia
Do xilofone do Gary Burton!
![003.jpg 003.jpg]()
Escrito em Sesimbra em 1990.
GASTRONOMIA DE LETRAS
Luz agnóstica que emana do mar
A despeito de uma tal empresa
Levada a eito pelo cavalo e burro
Aparelhados nas suas garupas pelo valente cavaleiro e fiel escudeiro;
Das redes das artes da pesca
Que se estendem na imensidão
Das ruas estreitas
Que fazem comunicar entre si
As várias facções que existem na vila de Sesimbra
Pescadores de camisas listadas aos quadrados
Emparedados nas casas simples
De cigarro fumegante na mão
Entricheirados nos dias de inverno
No café, tendo, sempre por perto, Porto ou Moscatel
Para aduçar a vida
Ali, naquela enseada
Protegida pelas montanhas que circundam a vila
Dos ventos fortes do norte
E sustêm o vento, todo o vento, que sopra do mar
Refugiavam-se já os corsários
hábeis pilhadores dos barcos que navegavam por este mar azul cintilante
Hoje, todas estas almas de piratas que por lá ainda levitam
Acabam por fazer esconder as vontades
Ilustram as evocações que nos podem levar à morte
Praia ácida, de gélidas e cristalinas águas
vizinha da vila
Onde se respira um forte odor a peixe
E vem o sal que nos faz olvidar as dificuldades
Da vida desse mar
Onde, no passado, reinou o espadarte
E que hoje é esse negro peixe
Quem ali reina
Que, por ser espada,
Bem se adequa ao traje de Don Sancho;
Mas não esqueçam o gigante choco
Que ali se deixa panar
Nessa mistura de sabores
Entre o frito com o mais fresco
Que o mar nos pode oferecer!
harre burrico...olé cavalo
Sigamos a empreitada!
![002.jpg 002.jpg]()
Conto escrito em Sesimbra em 1990.
De Lisboa
“Terra de muitas e desvairadas gentes”
A Santana
Do “campo” e dos “camponeses”
Num ápice se vai
De Santana
Se avança por estrada íngreme
Serpenteante sobre o maciço rochoso
Até que se arriba
A Sesimbra vila dos “pexitos”
Do campo
Das aves, dos grilos, das rãs
Que nos aguçam a vontade de ali permanecer
Logo derrogada pelo pó das pedreiras circundantes
Do mar
Que, ao longe, atraí o nosso olhar
Onde impera a suavidade dos sentidos
Que nos acalenta a vontade de nos deitarmos
E ouvirmos os cânticos das sereias
Naquele imenso leito azul
Nesse tempo, quem evoluísse pela estrada da Falésia
Vislumbrava uma gruta
Moradia de um eremita
Que vivia numa azáfama permanente
Como se o seu tempo de vida fosse escasso
Deixem-me louvar
As algas
Os jardins que suavizavam o fundo do mar
A areia da Praia da Falésia
Onde incontáveis vezes
Ouvi o Constantino
Não o guardador de vacas e de sonhos
Mas o ilusionista
Que declamava mil vezes as mesmas histórias
Enroupadas por protagonistas
E contextos diferenciados
De sorriso alegre e franco que nos desarmava
Da criança que ele sempre foi até ao fim dos seus dias!
Mas sigamos D. Sancho e o seu escudeiro João…
![001.jpg 001.jpg]()
Escrito en 1990, na incrível vila de Sesimbra.
Noites de inverno
Escuras como breu
Luzes ausentes no oceano
O vento, esse malandro invisível,
Que nos arrasta para a tormenta
Mar agitado que nos assusta
Desarmam-nos
Submetem-nos a uma maior solidão
Qualquer semelhança com a ficção é pura coincidência!