Aspergiste suavemente esse teu odor corporal
A que eu de imediato aderi
Quis e senti-te, desde logo, bem próxima de mim
Como se noutra vida já nos tivéssemos cruzado e compartido emoções
E nessas, memórias que são, guardo-as na minha alma,
Que conserva as vivências de outras vidas
As tuas longas pernas dobradas,
Como uma girafa que bebe água de uma poça,
Sobre mim a envolver o meu corpo
E as vezes que eu tremia ao som desse doce sussurrar
Que a tua escrita, agora lida, parece conter
Ouvi-te soletrar
Declamar, passo a passo,
As minhas palavras
Sorvi cada uma delas
Lavradas em prosa poética
Lavei-me com a água mais pura da nascente
Empanturrei-me de palavras, de sons, de afetos
Subi a todas as árvores
Para ver se te avistava
Nos frutos guardados nas copas
Mas nenhum deles tinha a doçura e o sumo que têm as tuas palavras
Que eu lia todos os dias com sofreguidão
Um dia encontrei-te a calcorrear a areia junto ao mar
Tinhas um ar tristonho
Parecias ensimesmada com os teus problemas
Ou seria o excesso de trabalho?
Noutra ocasião, avistei-te ao longe imóvel
No alto de uma montanha
E parecias uma sacerdotisa a abençoar aquela vista admirável
De mãos ao alto
Cabeça levantada
E olhos vidrados no horizonte
Bem te acenei,
Mas em vão,
Senti-me como se estivesse numa ilha longínqua
E tu eras uma embarcação que passava ao largo
Mas por mais que acenasse não me conseguias ver
Noutra jornada, vi-te junto a um banco de um jardim
Só,
Mais uma vez,
Aliás, imagino-te sempre só
Parece que transportas toda a solidão da humanidade
Quiçá, o é esse teu trabalho que te obrigue ao convívio
E por isso, quando estás de folga
Andas invariavelmente só
Noutra vez, li uma carta tua,
Indubitavelmente uma confissão
Estavas decidida a mudar tudo de uma vez
Tinhas no alto da tua folha um “ser mais”
E desta vez intui-te ainda mais triste do que das outras vezes
Vi-te a olhar a relva
A admirar uns melros
Que, afanosos, saltitavam para encontrar minhocas
Olhei-te ao longe, vi como os teus olhos irradiavam deceção
Não me vistes, passei pelo meio de uns arbustros,
E quando me cheguei a ti
Viraste o pescoço de modo impetuoso
E olhaste-me de frente
Sorriste
Reconheceste-me
E vi, nesse teu semblante de garota,
Um entusiasmo que há muito não via nesse teu rosto
Olhar-me, e eu olhar-te,
Despertou em nós sentimentos fortíssimos
Afinal, cada um de nós
Acabou reconhecendo a sua alma gémea
Pelas palavras
Elas não enganam
Por isso, antes de amarmos as pessoas
Amamos as suas palavras
Nascemos, morremos ou salvamo-nos
Pelas palavras
E pelos afetos que cada uma delas nos acabam proporcionando!
Por horas
Por dias
Por meses
Deitei-me bem longe de ti
Palha ausente que não me aferroou o corpo
Solitário leito,
Imenso como um oceano,
Onde adormeci
Indagando sobre o futuro
Buscando erigir obstinados pensamentos
Acabou aquecendo a minha solidão
De tanto procurar a cor dos meus olhos
Perdidos nesse deserto pejado de areia
Acabei por me dissipar e ainda mais confuso
Mas a tua ausência
Não me afastou
Nem me fez esquecer de ti
Tornou-me, até, mais cúmplice
Perseguido pelos fantasmas
Estatelei-me no solo
Esventrei-me
Deixei que o musgo verde me penetrasse
E quando te desejava e ansiava pelo teu regresso
Vi que a minha solidão alimentava a minha fantasia
Ouvi-te dizer que a tua valentia
Está na cobardia dos outros
E, na verdade, tu tens essa flor ao peito
Tens a flama que te incendia e te estimula
De viver num vespeiro de cobardes
Que buscam sobreviver e seduzir
Quando, na verdade, a vida dessa gente é deveras vácua
E mesmo que, para além das serranias,
Me tentem convencer que eles é que lá mandam
Mas eu sei que quem lá manda são os de fora
Mas quem mandará, afinal, por aquelas paragens?
Autenticadas pelo subir e descer as serras
Comprovadas na contemplação da imagem
Que se vislumbra no reflexo das águas dos rios
Se não esse poeta, escritor, contista, médico
Com nome de espécie botânica
Que tão bem cantou as almas dessas gentes
Que descreveu emotivamente
Os fueiros descontrolados a desancar sob as cabeças dos homens
A música das concertinas a vibrar nos corpos dos cantadores
Ou que emoldurou os mais belos versos
Numa ode monumental e única
Um momento sublime descritivo
Onde todos se quedam parados, silenciosos e pensativos
A escutar a voz tímida, fluente, envolvente e sábia
E que falta sente a gente desse teu joeiro da palavra
Que te deixava cantar como se fosses um feliz jornaleiro
Nessa jorna fertilizada!
Quem ainda te ouviu naqueles longos discursos
Por alturas do 10 de junho, nessa voz da portugalidade,
Terá sentido um orgasmo de emoções
Na escolha criteriosa da palavra
Que sempre soubestes buscar
Que eu persigo há muitos anos.
E por mais décadas que eu viva
Banhar-me-ei sempre nas tuas águas
Na força torrencial dos sedimentos
Por alturas da monção
Que escorre desde os Himalaias
Que são as palavras
Nesse teu ofício
Com que tu sempre nos presenteaste!
Contigo
E só contigo
Caminharei, voarei, navegarei
Para todo o lado:
Para a frente
Para trás
Até ao fim do mundo
Qual Sancho colado a Don Quixote
Eu só queria
Que fosses tu a marear
Essa mítica Arca de Noé
Porque, assim,
Teria a certeza que nela iriam navegar
Todos os que lá coubessem
E seriam mesmo todos!
Palavras que são a tua paixão
E com ardor as declamas
E fazem tua divisa
De uma vida centrada nelas
Traze-las inscritas
Nesse teu causticado peito
Que repousa, relaxa adormecido,
Como uma tímida flor
Que se esconde na sombria selva mais húmida
Mas as palavras emergem do teu coração
Que bate, bate, colorido
E sempre arrebatado
Ladeado por essa brandura doce
Os voluptuosos gestos das tuas mãos
E pelo omnipresente espírito altruísta
Como se tu fosses uma imensa árvore reluzente
Onde brilha cada um dos seus ramos
Como se cada um e todos eles
Fossem estrelas
Que nos deslumbram no firmamento
Que acabam por nos comover
Pela distância
E a vastidão do seu brilho
Que para chegar ali
Teve que percorrer tantas galáxias
Senhora
De uma perene voz
Que afaga os sentidos
Naquela harmonia sensual
Que embevece e comove
E não me arrependo de o dizer
Que coisa mais valiosa
Ter-te por perto
Conhecer-te
Como se fosses um desses seres microscópicos
E eu o cientista interessado em desvendar os teus mistérios
Poder apreciar essa tua beleza
Guardada nesse coração
Onde guarneces
Sem subterfúgios
As finas asas
Onde voam as minhas memórias!
Tens aquela paixão dos do sul
As tuas palavras
Parecem as preces
Dos sábios tuaregues
Onde pareces guardar
Todos os mistérios das areias desérticas
E é então,
Sem surpresa,
Que acabas sempre por derreter
Os finos e mudos flocos de neve
Que caem
Que deslizam
Suaves e leves
Na noite polar do hemisfério norte!
Deitado em cima de um extenso véu
Que lhe cobre apenas as partes íntimas
Que, ali,
Mais se assemelha a uma mortalha
Do que um prenhe agasalho
Que parece ter sido destinado
A manter intacto esse belíssimo cadáver
Que jaz no solo sem vida
Surge-nos Adónis
Adormecido eternamente
O javali que o golpeou,
Não se sabe se com vida ou sem ela,
Esfumou-se
Mas deixou assinaladas as suas presas
Nas partes erógenas
E pudibundas de Adónis
Tão pudibundas
Que uma das Graças
Envolveu-o com o seu longo véu
Para esconder a brutalidade
Com que o animal decepou
Tão belíssimo gigante
A quem, para ser um deus grande,
Igual às divindades superioras,
Faltam-lhe apenas asas!
E de que serviu a Adónis
Fazer-se acompanhar de lança?
Se o animal que o golpeou
Tinha a força de uma tempestade?
E a manha de uma serpente?
Vénus parece lamentar-se eternamente
No seu corpo robusto
Rosto fino e circunflexo
Cabelos crescidos, doirados
Tombados para o seu lado esquerdo
Pois
Mesmo ouvindo os gritos desesperados de Adónis
Não lhe pôde valer
Vénus afaga suavemente a cútis de Adónis
Recolhe a sua mão pendida, já sem vontade,
E deixa-a entregue à sua robusta coxa
Para lhe dar o alento
Que ele necessita
Na hora em que a morte venceu
E a promessa de novas culturas se erguerá
Neste ciclo de vida
Em que o calendário nos atém a todos
As três Graças
Como se fossem Esfinges
De olhos cerrados
Parecem querer esconder a dor no seu interior
E eis-nos Cupido, com o desespero no rosto,
Criança que é
Mas sem tempo de o ser nunca
Pois filha é
Do amor e da guerra!
Pequenas manchas de sangue espalhadas pelo solo
Completam os horrores deste apocalipse
Que comprovam a violência perpetrada pelo ataque do javali
Um dos galgos
Observa atencioso
De olhar inteiro, questionador e felino,
As preces
Em que as Graças parecem exclusivamente concentradas
Acompanhando cada uma das palavras
Que soam solenes e justas
Na hora de uma morte tão insubmissa, brutal e soez
Mas Vénus não está a carpir somente
Mune-se da sua longa manta de cor sanguínea
Para se defender dos perigos
Que do solo parecem advir
Untando os seus pés nesse manto acolchetado
O outro dos galgos
Mais canídeo e menos mitológico
Não se espanta com a morte
Nem com o feminino nu ali presente
Nem com os horrores ali acoitados
Cheira, desconfiado, uma pequena mancha de sangue
Que jaz espalhada no solo
Nessa mistura dos líquidos resultantes da peleia entre Adónis e o javali
E ao longe um céu rasgado por nuvens
Que se vão juntando épicas
Que parecem querer anunciar a tormenta
Em fundo escuro
Carregado de extensa folhagem
Por trás de Vénus, das três Graças e de Afrodite,
Emerso em imagens que nos horrorizam
Ergue-se um gigante tétrico
Que parece disposto a envolver todos
Naquele abraço sombrio dos seus ramos
Na proteção fúnebre das suas folhas
Anunciando esse inevitável caminho sem retorno
E que para nós simboliza
Entrar nos aposentos
Onde a morte se anuncia ciclicamente!
*Quadro com esse título do pintor flamengo Peter Paul Rubens que se encontra atualmente no museu de Jerusalém.
Se regressares dessas façanhas
Trajado com as vestes de cruzado
De ar circunspecto e vitorioso
De barba de três dias
De tez exótica e bronzeada
Que te aproxima daqueles
A quem decretas fatwas
Pensando que tudo está controlado
E que te podes rir
Nas barbas dos outros
Podes traficar afetos
Distribuir prebendas
A esmo
Felicidade para todos
Em troca desse teu falso amor
Incondicional aos cidadãos
Não te olvides
Que vives no reino da fantasia
Já não sequer o do papel
Mas o da página em branco
Onde riscas, traças, arquitetas
Vida e vidas
Que não te trarão a paz,
A tranquilidade
Mas todo o seu contrário!
Nessas areias movediças
Em que te deslocas
Não há sequer
Um palmo que se aviste
Que seja estável e sólido
Mas nessa viagem forjarás
Os desígnios dessa tua luz
Que inacessível e tormentosa
Te pode fazer delirar
Que a vitória está ali tão perto
A escrita
Apenas
Te pode fazer resgatar da vida
Da alegria
Do contato com os demais
Mas vivendo unicamente sob as palavras
Tuas e dos outros
Tu vives no interior de um casulo
E mesmo que guarnecido de asas
De que serviriam elas
Se não pudesses voar?
Poderás ambicionar sorver
A água límpida que enche essa taça
Colhida
Como se fosse a água mais pura do universo
E ela te dê a palavra mais densa
O sentimento mais forte
E pensares
Que, assim, tens tudo na mão
Mas não imaginas
De como belzebu é flibusteiro
Ele que é amargo de boca
Intrometido no coração das pessoas
Adora endoidecê-las
Aos que se apresentam hábeis servos de deus
E aos ímpios a quem belzebu adora
De longe, de onde ele vem,
Não se importa com as aparências
Aliás, vive em cima delas
Mas servo do deus único
Atado em promessas
De milagres ostensivos
Rugoso pai
Incendiado pelo toque
Dessa brasa que se ateia
Que em ti é fogo do mesmo fogo
Sorri com essa ânsia de florires
Insipientes orgasmos
Insidiosas vontades
Que não te farão maior do que o que és
Vai
Por onde viestes
Deixa-me neste meu longo caminho
Junto à praia
Deixa-me afagar os catos
Para me habituar aos atrozes espinhos
Que me aproximarão da fogueira universal
Que me deixará triunfante
Nesta minha solidão em que escolhi viver
Longe das palavras amáveis dos outros
Num qualquer lugarejo
Pois mesmo que odiado
É aí onde eu quero estar!
De ti
Quero distância
Antes o meu diabo
Que o teu diabo de pessoa.
Por onde andas minha voz ausente?
Onde estás minha escrita noturna?
O que andas pensando meu interrogativo ser?
O que farás depois de descobrires aquele pergaminho
Que pensavas que se havia perdido
E que, afinal, não se perdeu
pois acabaste de o reencontrar
Por aí na blogosfera?
Sim, o que farás quando o voltares a ler
E vires o que ele contém?
Mas antes que leias e digas algo
Deixa-me ler, por favor,
Todas essas palavras que te escrevi
Desde esse remanso com vista para o vale
Para esse rio que corre suave e cintilante
Como se fosse el Rio de la Plata
Revejo
Releio
O que escrevi
E, imediatamente,
Relembro-me do que me escreveste
Repiso, mastigo, regurgito
Penso profundamente em cada palavra que me reservaste
Nesses tempos febris
E que pareciam meio dementes
Lendo cada minha palavra
Cada frase em modo de poesia
Centrada na página ao meio
Que é como eu gosto de ver estas baladas sentimentais
Indago o que pensarias
Quando me escrevestes
E sobretudo
Reconstruo o puzzle
Como se fosse uma estrutura de um jogo de lego
E vejo bem o alcance das vírgulas
Ou a ausência delas
A força de certas palavras
O erotismo, a vontade, a excitação
Não é só perceber em cada palavra
O quanto me amavas
Isso disseste-o de forma subtil inúmeras vezes
No mar, na areia, na serra, na rua
Num sonho
Num simples voo de pássaro
Ou nos alfaiates que deslizavam à tona da água calma do rio
Nas estrelas que cintilavam
E que nos indicavam os caminhos dos espaços imensos
Até nesse teu deus que sempre te iluminou
Ou até nas muitas palavras que se afiguravam de circunstância
Ou simplesmente nas ausências, tuas e minhas,
Mas sim a intensidade
O arrebatamento
Como tu sempre te quiseste afirmar
E revejo agora mesmo
Ao ler o pergaminho onde estão registadas as tuas palavras
Que tudo em ti
Tinha um destinatário
Como se fosse um alvo bem definido
Apontado para mim
E não havia alfobre tão deslumbrante como o teu
E o meu,
Dizias tu,
Era o mais lindo
O mais verdejante
O mais húmido
Local onde os ruminantes pastavam
Indiferentes às ameaças
Era ali que tu me dizias
Que me amavas loucamente
Ou por palavras explícitas
Ou implícitas
Que só nós os dois
Verdadeiramente
Nos entendíamo!
Um dia, deixaste-me, abandonaste-me
Cessaram as tuas respostas
Uma e outra vez
Até que, em desespero, te escrevi palavras duras
Arrependi-me
Já era tarde
Uns tempos mais tarde
Disseste-me que descobriras um novo amor
Que me pedias desculpa
Mas não conseguias já sentir a mesma paixão por mim
E vivi assim enlutado e ferido no meu orgulho
Porque te dei tudo, e quando digo:
Tudo,
Foi tudo mesmo!
E sinto isso mesmo agora ao reler o que te escrevi
E quando voltaste a entrar na minha vida
Recomeçaste a escrever-me
Primeiro de forma suave
Mas logo voluptuosa
Que é como sabes que eu gosto
Afinal nem me dei conta
E tu de certeza também não
Que entre um amor e outro
Aquela ausência pelo meio
Para regressar ao mesmo amor primitivo
Foram duas vidas que ambos vivemos
Viver e perecer, sem medo,
Como se tivéssemos encontrado o caminho espiritual de Buda
E voltar a nascer
E, fatalmente,
E porque tínhamos essa dívida connosco
Acabamos por nos reencontrar
Numa qualquer das minhas patranhas
À boa maneira de belzebu
Que, afinal, nos juntou neste curso de água
Que jorra indomável por entre duas rochas
Desliza por entre a serra
Vence os vários declives e acaba desaguando no mar
Como é a escrita!
Giram
Ou deviam girar
As pás dos moinhos
Naquele movimento simplório
Naquela cadência sincopada
Saudosa e límpida
Debaixo daquele ruído feito de pedras
De quando moíam os cereais
E os transformavam em farinha
Que tantas bocas alimentavam
Na metrópole
Que se vangloriava
Do imenso e disperso
Território colonial
Nos quatro cantos do mundo!
O vento adensa-se sob a colina
Que espreita arrepiada
Nesse constante movimento de olhar
O vale lá em baixo
E sem nunca se cansar e dispersar
Mirando geométricos vinhedos
Tentadoras oliveiras
Dispersas habitações
Mas, por vezes, o vento berra mais alto
Sopra mais forte
Naquele vai e vem constante
Para não se deixar enganar
Pelos dispersos casais que visitam a colina
Que olham para o altaneiro edificado
Com um misto de admiração e de rejeição!
Os moinhos respondem
Em coro
Aos soluços do vento
Que não se antecipa
Com as pressas das gentes
Que olham os rústicos moinhos
De paredes empedradas
E telhados de ardósia
Reconstruídos e renovados
Como se fossem pedintes
Que,
Lavados e barbeados,
Não deixam de ser pedintes!
Acentua-se,
Ali naquele alto da colina,
Pelas palavras dos visitantes
E pelo matraquear das selfies
Que tentam aprisionar o momento
Mas impedem-nos
De sentir a beleza do lugar
Pelo encanto que foi e tem sido
O desafio de preservar estes velhos moinhos
Que deixam as gentes daqui
Pejadas de um pujante orgulho
Mas cativas de uma certa pobreza
Que parece incrustada nalgumas gentes da montanha
Mas ninguém se questiona
Que ideia foi aquela
De construir um monumento kitsch
Naquele santuário de contemplação?
Até o vento
Senhor de tão sábia prosápia
Que não se esconde
E expõe sempre os seus pontos de vista
Com altivez homérica
Com orgulho napoleónico
E de sentimentos resplandecentes
Num dos raros recantos
Onde se apresenta a exibir as suas barbas
Sinal de uma certa sabedoria feita de experiência
E os seus longos cabelos que lhe caem pelos ombros
Como ramadas suspensas nos arames
Não parece satisfeito naquele santuário
Ele próprio
O vento
Não se cala
Exibindo pujante e orgulhoso
O brasão gravado em pedra
Nas paredes da sua casa
Rendendo a sua justíssima homenagem
Ao deus Éolo
E como se sentirá esse deus
Tão antigo como o pensamento
Com aquela omnipresente figura
Erguida num pedestal
Que nos remete para um sentimento
Tão inglório como ridículo?
Fará jus
Ao kitschianismo
Mais inenarrável
E até Don Quixote
Se levantará da sua tumba
Nessas bibliotecas onde descansa em paz
E tentará derrubar
A “santa” que emerge
Desse altar
Com a sua lança
E a sua demência
Que de igualha se vê
Naquela colina que bem podia ser sagrada
E não o é!
E Torga
Que tão magistral cantou
A beleza dos lugares do mundo
Grita, desesperado, de pergaminho na mão,
À sua tripulação
Uma das suas odes mais imperiais
Que, desta vez,
Deixa o vento de pele eriçada
E sem palavras:
“S. Leonardo de Galafura, 8 de Abril de 1977
O Doiro sublimado. O prodígio de uma paisagem que deixa de o ser à força de se desmedir. Não é um panorama que os olhos contemplam: é um excesso de natureza. Socalcos que são passados de homens titânicos a subir as encostas, volumes, cores e modulações que nenhum escultor pintou ou músico podem traduzir, horizontes dilatados para além dos limiares plausíveis de visão. Um universo virginal, como se tivesse acabado de nascer, e já eterno pela harmonia, pela serenidade, pelo silêncio que nem o rio se atreve a quebrar, ora a sumir-se furtivo por detrás dos montes, ora pasmado lá no fundo a refletir o seu próprio assombro. Um poema geológico. A beleza absoluta».
Miguel Torga In “Diário XII”
Nessa irmandade de letras
Podias escrever tu
Podia escrever eu
Podias responder tu
Podia responder eu
Assim deveria ser
Mas tu
Mãe sofrida
Consumida de saudades
Da tua prole distante
Mulher esforçada
E arrebatada pela paixão
Que se foi derretendo com um glaciar
De olhar distante
Frio
Cortante
Não consegues já sorrir com entusiasmo
Não me escreves
Não me contestas
Porque não me escreves?
Não respondes?
Não contestas?
às minha súplicas?
Não devolves os afetos que nutro por ti?
Temes-me?
Ou temes-te?
Em cada Natal
Alegras-te
Animas-te
A esperança recrudesce dentro de ti
Voltas a ser a menina
Mimada pelo pai em criança
Mas o pai
Já não é capaz de te mimar
E é então
Que te fixas
Com esses teus olhos húmidos e saudosos
Na tua árvore de Natal
Miras as bolas coloridas
Que pendem dessa árvore
Cintilantes e mágicas
E que, todavia, tanto te atraem e fascinam
Silencias-te
Acabas fascinada
Pelo que cada uma das bolas
Te consegue fazer sonhar
Como se visses
Ainda
Um sonho
Por mais estranho e bizarro
Que pudesse ser
Concretizável
E comerás
De ávida paixão
Cada figura prateada
Feita de chocolate
Que se acoberta
Nos finos troncos da árvore
Como se cada uma delas
Fosse uma ave
Que não se olvida de regressar
Onde nasceu e foi feliz!
A valsa tocava mansinha
Ao de leve
Como se fosse uma sesta de meio da tarde
E não o dormir profundo da noite
No salão da coletividade
A madame
Só e dançando algo desamparada e desconexa
Ensaiava uns passos de dança na pista
Deambulando de um lado para o outro
Dois homens
Divertiam-se como duas crianças
Ignorando e parecendo abominar
O esforço da mulher
Para os atrair para a pista
Cansada de esperar que,
Particularmente um dos homens,
Lhe fizesse companhia na pista
Acabou atraida
Por um outro homem que,
Ao longe,
Lhe começou a acenar:
Sorrindo
Gesticulando
Enviando beijos
E a mulher
Embebecida
Não conseguiu esconder a emoção
O ventre apertou-lhe
O coração agigantou-se
A saliva espessa dificultava-lhe o simples e ngolir
Acabou por se sentar numa cadeira
Na mais profunda solidão
Olhou atentamente
Para os dois homens
Que falava esfuziantes
Um deles de contrato firmado de constituição de família com ela
Esse homem
Há muitos anos atrás
Abandonou a postura de outrora
Amputou, de vez, a paixão juvenil
Passou a gostar apenas
De tê-la na cama
Sempre ao seu dispor
E, cada vez com mais frequência,
Mesmo sem o querer dolosamente,
Mas, antes, o que parecia ser da sua própria natureza de conquistador
E para agradar à sua querida mãezinha
Começou paulatinamente a humilhar a mulher
Que ainda não há muito tempo
Dançava na pista e procurava
Ávida, um par,
Indagando no meio daqueles homens
Qual deles poderia acolher aquele seu peito
Lastimoso, ferido
Sedento e saudoso de colo
De um singelo aperto
Firme e decidido
E, sobretudo,
Daquelas palavras
Que as mulheres,
E ela também,
Adoram que lhes dirijam:
- Querida
Teve a esperança
Enquanto ensaiava uns passos na pista
Que o homem do contrato consigo
Vendo-a ali sozinha a dançar
Acabaria por dar um passo
Para assumir o contrato firmado
Agarrando-a, em público, dançando com ela
Mas o homem
Que na cama se mostrava tão fogoso
Parecia mesmo decidido
Em ignorá-la em público
Como era sua prátuca há alguns anos
Com aquele ardiloso sentido do macho alfa
No homem de barba rija
Onde a sensibilidade e as palavras bonitas
Servem apenas para atrair outras
E a mulher
Cansada de ser ignorada
Sentindo-se unicamente especial no leito
Olhou para o homem que lhe acenava
Que lhe mandava beijos
Que lhe parecia dirigir palavras bonitas
Como o seu porto seguro
A sua salvação
Aquele a quem ela queria e poderia dar
Toda a sua gentileza
Toda a sua atenção
Todo o seu corpo
Mas também
Que a confrontava com a distância e a atitude
Do homem que tinha contrato firmado consigo
A mulher desesperada
E sem que a conquistassem
Nos vários palcos da sua vida
Sentindo a sua sensualidade desperdiçada
Acabou por descobrir
Um hobby que passou a adorar:
Desenha, pinta, esboça retratos
Adora pintar corpos nus
Sente necessidade de dar
Todas as suas curvas
Todo o seu erotismo
A um homem
Que demonstre que a ame de verdade
Até se sente capaz
De deixar que este homem a penetre
Na sua gruta húmida
Desde que este lhe dê carinho e atenção
Que tanta falta lhe fazem
Se aquele homem lhe der
O que o homem que firmou contrato consigo
Há muito não lhe dá,
Por incapacidade
Por estupidez
Por ignorância
Por puro machismo
Pelo ignóbil marialva que demonstra,
Está disposta a dar-lhe tudo
Ao homem que lhe acena
Aquela mulher tem um nome
Mas prefere que a identifiquem como
A mulher que só queria valsar
O homem continua a cirandar
Por aí vazio e ingenuamente
À procura
Sabe-se lá do quê!
Diz-se que descobriu um amor…
Essas três mulheres
Alvas
Volumosas
Arredondadas
Nuas
E formosas
Unidas pelo ténue véu
Que as vai atravessando
E que acaba roçando os desejos
Ou as Graças
Que seus corpos parecem querer experimentar
Tocam-se com as mãos
A do meio
Parece ser a mais adorada das três
Olhá-la
De costas voltadas para nós
Fica-se com impressão que sua Graça
Está acima das duas que a circundam
Ela se exibe
De braço direito estendido
No ombro da mulher
Que está à sua direita
De rosto fixo
Parece querer esmiuçar e indagar o braço
Da mulher que está à sua esquerda
As duas mulheres dos flancos
Parecem estar ali apenas
A cobrir a parte frontal
Do corpo da mulher do meio
Que surge com ar soberbo
Olhando, com ligeira inclinação, à esquerda
Concentrada no flácido braço
Dessa sorridente mulher
Que está à sua esquerda
Numa frondosa árvore
Pendurado num dos seus ramos
Se aninha um tecido
Que parece pura seda
Que se vai estendendo
Em véu
Pela árvore abaixo
Que acaba envolvendo a mulher do meio
Às três mulheres
Rodeiam-nas arcanjos
Que jorram água cristalina de um cântaro
Purificando as três Graças
Que descontraídas
Parecem estar no paraíso
À guarda dos nossos olhos
Que intermedeiam os sentidos
Veados que pastoreiam lá atrás
Desassoreados de preocupações
Flores que se exibem
Jubilosas
Nos troncos da árvore
E que se entremeiam
Suaves
Pelos pés das Graças
E tudo isto
Acaba por me dar a dimensão
Arrebatada
Do paraíso
E até nesse paraíso que alcanço
Das três Graças reunidas
Há lugar para os excessos
Que são a minha imagem do paraíso
Mas cada uma das três mulheres
Me afrontam e defrontam-me
Com o meu fermente desejo
De me envolver com cada uma delas
Cobrindo, de leve, o meu corpo
Com o fino tecido que as envolve!
* Pintura de Peter Paul Rubens