AS PALAVRAS QUE AMO
Com os papéis desalinhados
Jazendo em cima da secretária
Alguns onde vou alinhavando algumas ideias
Reais ou fantasiosas
Aguardo que algo mágico
Me faça acender o interruptor da luz
Que me iluminará
A descobrir a passagem
Para a outra margem do rio
Sei que, mesmo naquela correnteza da água do rio,
Pisarei as pedras
Que emergem sob a superfície da água
E, sem me molhar,
Chegarei onde me propus chegar
À outra margem
Mas, uma vez chegado,
Ao outro lado
Não descansarei
Enquanto não me sentar
No dorso de um falcão
E, em voo picado,
Rasante e mirabolante,
Mirarei para o infinito
E vislumbrarei a paisagem de puro encantamento
Como ela se apresenta vista de cima
Mas impossível de capturar
Pela máquina fotográfica
Mas pela memória
Mas,
Vendo o falcão apenas preocupado com as suas presas
Passo, de imediato,
Para o dorso de uma cegonha
Mas esta não se atem demasiado
Ao regozijo de uma visão
Nem a ser montada por mim
Esta, preocupa-se com o tempo
Inquieta-se com a prole que terá que deixar
E por isso mira a altivez de uma velha chaminé
De uma antiga fábrica abandonada
Para contruir o seu ninho
Nessa planície deserta, silenciosa, calma e terna
Não muito distante de terrenos alagadiços
Onde poderá se alimentar facilmente
Acabo agitado na alma
Vendo a cegonha
Semanas e semanas sentado no ninho
Perene a contemplar
A largueza e o alcance
Que a vista da planície lhe concede
Mas eu sei que esse não é
Nem nunca será
O seu principal propósito
A cada instante
Volto-me para os papéis e questiono-os:
- Que fazem vocês aqui?
- Porque não dizem nada?
Mas eles não respondem
Também não questionam
Mudos como sempre estão
Sofridos e humedecidos
Estendidos e silenciosos
Com a aparência de um idoso
Atacado pelo reumático
Com a memória desvanecida
Eu decifro-os bem
Conheço-lhes as suas manhas
E o que cada palavra significa
Mas eles não me conseguem decifrar
Nem consegue ler o meu interior
Palavras escritas à mão
Restos de quimeras
Muitas ilusões e fantasias
Que me ajudam a sufragar
Este meu desejo de pintar quadros
Do que a realidade me apresenta
Dando-lhe um toque impressionista
Uma forma arrojada, empedernida ou empolgante
De olhar o mundo
Visto-me e saio dessa quietude
Dissipo essa vontade latente
Que me desassossega
Que me ilude
Que me convence
Que me estimula
E que não se contém encerrada
Na escuridão do interior da minha caixa craniana
A luz do candeeiro incide sobre as letras do meu teclado
Cada uma delas desponta perante o meu olhar
Mas, olhando-as individualmente,
Acabam por não me causar nenhum tipo de sentimento
Apenas, olhando-as ao longe, desde cima,
Dão-me uma dimensão estética impressionante
O de uma parada militar
Impecavelmente alinhada
As letras
Ali presentes afiguram-se imprescindíveis
Mas só por si não bastam
É preciso, é urgente, é imperioso ordená-las
Para que elas produzam
A força
O sentimento
A suavidade
A sonoridade
Da música
Saída do dedilhar
De uma simples guitarra!