ORVALHO
Seios rociados
Trespassados por finas gotas de água
Por onde passa esse estreito aluvião
Que interage com o umbigo
E se estende até ao declive da cascata
Por onde jorra
Essa água esbranquiçada
Que caí no desfiladeiro
Resta-nos ficarmos por ali a admirar a queda de água
Inertes e inebriados
A observar tamanha beleza
Não valorizo
Menosprezo até
Aquilo que possa ser a ordem
Da caminhada naquele pequeno desfiladeiro
Que podia ser aquele mesmo percurso
Mas feito de forma inversa
Cascata
Umbigo
Seio
Não ignoro
Que é um trilho exigente
Feito de vontade, de desejo
Testa a nossa experiência
Para saber lidar com os perigos
E é preciso paciência e querer
Para chegar ao fim da viagem
Em alguns dias
Em que estamos mais ensimesmados
Essa caminhada parece tão chata e repetitiva
Quiçá, possa até haver lugar
A uma espécie de condicionalismo, obrigação
Ou até mesmo a um constrangimento
Coação mesmo
Da ténue linha traçada
Que divide a consideração, a estima, o respeito pela vontade do outro
Não me lançaria, decerto, numa aventura dessas
Se não conhecesse a fauna que por ali circula
E a terra senhores
Com o seu cheiro forte
O sabor das ervas que vou mastigando, chupando mesmo
E das outras que na terra se maneiam respeitosas
Quando por elas passo
E olhar as papoilas que me sorriem
Nos campos primaveris
Encantos que não esqueço
Honrando os mortos
E as dificuldades passadas
Nesta guerra pandémica
De que não esquecemos jamais
Sobretudo dessa cor vermelha sanguínea
Atiça-se o entusiasmo
Vangloria-se essa voz que vem do âmago
Lá onde reina essa energia chamada de líbido
Desvia-se o rumo da cascata
Vence a descompostura
Acabo rendido aos ínfimos sentidos
Perco-me nesse trajeto que tanto deleite me dá
Agora não sei mais onde me esconder
Para estar contigo nesse remanso
Onde só nós os dois
Devemos e queremos estar
Soltam-se as amarras
Vocifero e tu imitas-me
E eu imito-te e vocifero
Mas para quê tamanho cerimonial?
Se tanto nos amamos
Se tanto nos queremos
Amor
Deixa-me ver essas tuas palavras
Inscritas nessa tua alma de poeta
Deixa-me decidir por mim
Por ti
Pois eu sei
Que tu queres o mesmo que eu
Tanto caminho para quê?
Se o caminho é meramente circunstancial
Deixa-me inalar
Esse odor a citrinos
Que a tua pele parece sempre exalar
Deixa-me ser quem sou
Que deixar-te-ei ser
Essa alma sensível como tu
Tanto gostas de te apresentar!