Debaixo do viaduto Alcântara Machado, no Mooca, situado na Avenida Alcântara Machado, zona bem central da cidade de São Paulo, há uma comunidade de moradores de rua.
Ali também existe uma escala social gradativa: os que conseguiram erguer umas barracas em madeira e ali vivem com relativo conforto, sobretudo nos dias mais frios, e São Paulo não tem propriamente o clima do Rio, e não é obviamente caraterizada pelo eterno bom tempo tropical por exemplo do nordeste; e os restantes que vivem em tendas, muitas delas improvisadas, feitas com plásticos que vão sendo colocados por cima de umas tábuas que suportam os plásticos.
Ali ermita, desde há uns meses, naquela comunidade sem lei, sem escrúpulos e que vive numa autêntica selva urbana, Ismael dos olhares dos paulistas que passam assoberbados nas viaturas a velocidades vertiginosas a caminho, sabe-se lá de onde! E muitos daqueles que ali vivem, é verdade, que há ali caras que são pessoas honestas, de ocupações laborais temporárias, muitos deles indocumentados, são o que o sistema brasileiro chama de desbancarizados, situação que a pandemia veio pôr a nu pois foi necessário que o governo federal acorresse para evitar uma catástrofe humana gigantesca, mas a maioria, como Ismael, não tem qualquer ocupação e o que faz mesmo é dedicar-se ao consumo de drogas, mais ou menos ligeiras, dependendo da grana que tenham no momento, e alimentam o vício de pequenos furtos e pedindo nas ruas, muitos deles concentram-se na praça da catedral, ali bem perto da chique e rica Avenida Paulista!
Muitos dos paulistas que passam nas suas viaturas em velocidades vertiginosas pelo viaduto, e pelas dezenas de viadutos em que a cidade é fértil, fazem-no com espírito maligno quanto aos moradores de rua, sobretudo desde que o atual inquilino do Palácio do Planalto passou a ali despachar, e opinam que esta gente que mora na rua, pura e simplesmente, não quer trabalhar, são mandriões, pilantras, vagabundos sem vergonha, como apelidam os ideólogos próximos das bancadas senatoriais ou congressistas ligados à bancada evangélica, ruralista ou da bala, todos eles entusiastas apoiantes de Bolsonaro.
Ismael chegou ao Brasil pela mão do irmão que, farto de o ver nas ruas de uma pequena cidade portuguesa, com problemas sérios com as autoridades policiais e judiciais, e vivendo sabe-se lá onde, em casas abandonadas sobretudo, e já com problema de dependência de drogas, resolveu financiar a viagem do irmão para o Brasil para casa de uns amigos que vivem no chamado ABC paulista, na cidade de São Caetano. Estes rapidamente se aperceberam que Ismael não só não queria trabalhar como a Polícia Militar já andava em cima dele por causa de uns furtos e como não queriam ter problemas com as autoridades pois os lusodescendentes têm fama e o proveito de serem pessoas, que até podem ser alvo das piadas mais jocosas e pouco abonatórias de inteligência, sérias e não querem problemas com a polícia. Certo dia Ismael fugiu para o centro de São Paulo e foi viver para o viaduto com uma nordestina que ali vivia, viciada em crack e que acabou por morrer de overdose. Ismael passou a viver debaixo do viaduto acoletado sob umas lonas e uns plásticos entrelaçados e costurados uns nos outros que davam um aspeto de cabana improvisada. No exterior e nas imediações do seu abrigo acumulavam-se uma multitude de peças de lixo, desde sacos carregados de entulho, garrafas vazias de bebidas alcoólicas que parecem plantadas a esmo no solo, papéis e objetos metálicos variados igualmente espalhados pelo chão, que davam um aspeto caótico, imundo e nojento a todo o envolvente que se observa nas várias dezenas de barracas improvisadas que por ali se erguem aproveitando a proteção do aqueduto. Ali tem vivido, de facto, Ismael, ele próprio já perdeu a noção do tempo em que ali vive. Mas Ismael, como não lida com o conforto de uma casa feita em tijolos e cimento há uns anos, estranharia se de repente fosse morar para uma habitação normal, e nem precisaria de ser uma habitação sofisticada, uma simples casa em tijolos, sem vidros e com umas portas bem rudimentares, dessas que abundam nas periferias faveladas das grandes cidades brasileiras, rejeitá-la-ia sem demora…
A vida de Ismael teve aquele destino no Brasil porque se encrencou em Portugal. Chegou a ser condenado por violência sob a sua companheira de então, também toxicodependente, que teve que receber tratamento hospitalar e acabou por confessar que foi o seu namorado o autor.
O irmão de Ismael, perante a situação por que passava este e porque também já há uns tempos que sentia vergonha do irmão, que deambulava pela cidade na maioria dos dias debaixo de substâncias químicas, e dos múltiplos recados e receios da mulher, cujos filhos viam no tio um empecilho a uma certa ascensão social, resolveu tomar uma decisão e conseguiu aliciar o irmão a partir para São Paulo.
No dia 24 de dezembro em São Paulo vive-se a chegada do verão, temperaturas altas, humidade abundante e chuvas copiosas. Esse natal, para Ismael, parecia ser mais um como nos últimos tempos, debaixo do efeito de substâncias psicotrópicas, cola de sapatos incluída, que o deixava prostrado no interior da cabana improvisada a maior parte do dia e noite, e só saía praticamente para fazer as necessidades fisiológicas, quando ainda tinha algum discernimento, pois muitas vezes fazia-o no interior da tenda improvisada.
Nessa manhã do dia 24 de dezembro, algo de extraordinário aconteceu na vida de Ismael. Por volta das doze horas da manhã foi acordado pela voz de Seu Jorge que tocaria numa rádio ali bem perto, e viu uma áurea de uma luz forte e luzidia que penetrava a sua cabana e que o iluminava intensamente. Uma voz dolente, macia e suave, invadiu os seus ouvidos e perguntou-lhe se não queria ver as pessoas que ele conheceu ao longo da vida? Ismael, atónito, agitou afirmativamente com a cabeça e começou a visionar os pais, os dois irmãos, os sobrinhos e todos os que conheceu em Portugal, as ruas da cidade por onde deambulou desde criança, até se lembrou do rosto da juiz que o condenou a uma pena de prisão suspensa na sua execução debaixo de certas condições, uma senhora magríssima, que falava muito depressa vestida de uma capa negra que lhe realçava a sua tez clara e os olhos azuis, e Ismael até viu o sangue a escorrer pela face da sua namorada responsável pela sua ida para o Brasil, os gritos alucinantes desta a tentar limpar o sangue da face. E o curioso é que só tinha recordações de Portugal e praticamente do Brasil não era atacado por nenhuma imagem, parecia que tudo se desvanecera neste país.
Por fim, agitou o braço, esticou-se e caiu de rompante perante o que se anunciava ser uma apoplexia maligna e fatal.
No dia seguinte Seninho, foi à barraca improvisada para pedir um cigarro e deparou-se com o cadáver de Ismael.
Veio a polícia, vieram os serviços de tanatologia municipal, levaram o corpo e enterraram-no numa vala comum, sem honra nem glória, como se fosse um invisível cidadão que veio ao mundo para ser sepultado em lugar tão longínquo e incógnito; melhor seria na sua cidade natal em Portugal, junto aos seus.
Realmente a única glória que se poderia dizer que Ismael teve nesta vida foi ter perecido no dia de natal, no que de significativo e simbólico possa isso ter!
Se cintilam em garantir que não são escritores, poetas ou declamadores
Nem estão interessados em escrever
Nem muito nem pouco
Nem tão pouco perdem tempo com ninharias ou vacuidades
Exibem uma costela serrana
De bons pastores
Sobreviventes nas altaneiras serranias
De rigorosa e fria exigência
Hábeis no maneio dos ventos mais untuosos
Que sopram, em certos dias,
Nas areias movediças das dunas junto ao mar
Essa gente sempre extraí uma declaração
Um ditame
Uma frase
Um verso
Ou um poema inteiro
Dedicado ao autoelogio
Esse sim tão assumidamente vácuo
Que o melhor mesmo
Era fazer como se faz ao gado transumante
Mudá-lo de uma paisagem para outra
Para que ele pudesse encontrar pasto sempre viçoso
E palco que resplandecesse com tamanha originalidade
Do nosso amofinado poeta, reluzente escritor ou talentoso performer
Que diz “NÂO” a qualquer rótulo
A qualquer qualificação
A qualquer tentativa de lhe comprar a atenção
Mas depois cede ao engulho
À mínima vaidade dos que o elogiam
Logo se entrincheira no gabanço
Na blasfémia coquete, afetada,
Que tanto vê nos outros
E quando nos acercamos ao seu lar
O que vemos?
Dizeres pintados nas paredes do próprio
Que se assume tão original
Que até usa um pseudónimo
Mas acaba logo por sucumbir ao imediato
Assumindo que o que usa é pseudónimo
O que significa que tem um outro nome e vida
E está mortinho por dizer quem é
Mas mantém-se imóvel
Como esse peixe-ogro
Que aguarda pelas presas imóvel no fundo do mar
E quando capta a presa na sua caixa do correio
Afunda-a, isso sim, com vacuidades
Confessa no seu mural,
Que o que gosta mesmo é de escrever, de contar,
E de ver tanta gente que o visita a elogiá-lo
- Que gosto…que talento…que ousadia…que performance tem o nosso autor!
E como exemplo da sua grande cultura
Se põe ali a dissertar sobre política
- Ó como ele sabe de geopolítica…
Como ele é erudito em arquitetura
Até se mune de projetos escritos
E de complexas formulas matemáticas
Como ele conhece os ditames do mar
Como ele sabe como Eólo se expressa
Como ele convence uma plateia de céticos
Como ele consegue reunir uma manada
E sorridente parte
Montando, ora numa, ora noutra,
Vaca
Esse rei que tanto pode ser
Dos pacíficos gaibéus
Como dos extenuados ratinhos
Como dos sofridos pescadores
Que vivem agressivamente instáveis, inseguros e perdidos
No epicentro do rebentamento daquelas vagas
Que, em certos dias se fazem sentir,
Por ação direta do Canhão da Nazaré!
Viverei apartado dele
Sim
Viverei
Longe desse monumento ao endeusamento
À altivez
Às comendas
Que tocam nas cordas da guitarra
No restolho dos dias
Em que, implicitamente,
Passa os dias a falar sobre si próprio
Mas garante
- É sóbrio, é simples, é discreto
E também não se atafulha com grandes imagens
Quando a jactante divindade se expressa no seu mural!
Ah…e como ele gosta de se assumir afastado dos demais
Diz-se até que é uma espécie de anacoreta
Que logo provoca um “ah…”nos demais
Mas se apresenta soez, como um faroleiro de província,
De pseudónimo pendurado ao peito
Mas que espera que o trespassem na sua morada eletrónica!
Shalom amigo(a)
Como se diz no meu linguajar,
Mas longe, bem longe, de mim!
O poema do Camilo Castelo Branco de sua dignidade dada à estampa sob os prolegómenos de “Os amigos” decerto iluminará o meu fadado asceta, a quem recomendo a leitura!
Naquele tempo a sua pequena aldeia ficava encravada numa vilória transmontana, isolada do resto do mundo. Bragança, embora ficasse a cerca de meia centena de quilómetros, mas desse longínquo período uma viagem entre as duas localidades parecia uma eternidade!
O rapaz cresceu na miríade onírica de que um dia seria alguém, sairia daquela aldeia e nunca mais ali voltaria.
E de facto assim foi; rumou a Lisboa, onde levava na mala esse livro tão diferente e até algo estranho para aquilo que foi a obra Camilo Castelo Branco: “A queda de um anjo”. Via nele uma advertência para aquilo que poderiam ser as malignas tentações lisboetas, pois embora nessa época já não era como a de Camilo, mas viviam-se os tempos da Segunda Guerra Mundial e embora Portugal se tivesse conseguido manter neutral, mas essa neutralidade era paga bem cara ao país que tinha que agradar a gregos e a troianos, ou seja, aos alemães e aos aliados o que, como se imaginará, era um exercício tão difícil e até quase impossível de conseguir, só possível com grandes recursos financeiros canalizados para esse efeito.
A sua grande paixão sempre foram os animais! Pelo que não podia ser outra coisa na vida que não fosse tirar um curso ligado a esta temática. Mas queria sobretudo ter uma profissão que lhe desse o reconhecimento social e económico, quando se trata de alguém que descende de pessoas ligadas ao comércio de peles, uma grande maioria deles, como se sabe, que lhe corre sangue judeu nas veias.
Lembrava-se ainda das vezes que o Dr. Isaías, um veterinário que se deslocava de Bragança até à sua aldeia, para atender às necessidades das pessoas e, consequentemente, ao seu bendito gado, e a forma como era recebido por todas as almas, havia até uma imagem que nunca o abandonou e acompanhou-o ao longo da sua vida, o veterinário a lavar as mãos ensanguentadas num alguidar, as toalhas de impecável linho que lhe eram postas à sua disposição para que ele as lavasse, mas lembrava-se ainda do veterinário sentado à mesa da casa dos pais a comer normalmente o que melhor havia naquela casa. É que mesmo não havendo dinheiro para pagar ao veterinário, ao menos havia sempre boas alheiras, ótimo presunto, excelentes enchidos, sem esquecer o botelo, esse enchido feito de ossos, e o excelente pão que se cozia todos os dias que deixavam o Dr. Isaías rubicundo e extasiado com o que sempre lhe punham no prato…
O rapaz, aos poucos, transformou-se num homem bonito, charmoso e encantador. E até aquela rudeza que lhe advinha das suas origens e do convívio com os da sua criação foi desaparecendo para dar lugar a salamaleques, a frases muito bem estudadas, com o ênfase colocado em algumas palavras que lhe permitiam criar impacto sobretudo no público feminino.
Conheceu e acabou por casar com uma alfacinha, de sangue espanhol, cheia de salero e muito zelosa do seu marido e da sua prole.
Uma vida inteira dedicada a cuidar dos animais, que histórias não teria ele para contar sobre os nascimentos, a sobrevivência e as mortes de tantos animais que lhe passaram pelas mãos e em que ele foi testemunha privilegiada? E, já naquela época, havia gente que se importava mais com os animais do que com as pessoas, por isso é que o veterinário sempre foi alguém tão importante como o médico, sobretudo em certos meios onde a importância dos animais tem uma enorme preponderância.
Ao fim de noventa e cinco anos de vida, toda ela dedicada à sua profissão e à família, amando sempre a esposa e cuidando das três filhas, incutindo-lhes o respeito pelos mais humildes, mas também que o trabalho valoriza as pessoas, e a busca de um sentido na vida, na procura da manutenção de uma ética inabalável pelos valores judaico-cristãos, acabou definhando por essas horríveis bactérias que vivem nos hospitais, chamadas de multirresistentes, e já nem sequer se conseguiu despedir com dignidade das filhas. Elas ainda puderam despedir-se dele, e numa segunda-feira, dia tão improvável, se é que há dias prováveis para a morte ou dias especiais, cessou de vez de respirar, desligaram a máquina e foi-se deste mundo.
As filhas inconsoláveis acreditam que o pai partiu por sua própria decisão porque ele dizia, frequentemente e com alguma graça, que a mulher, lá onde se encontrava, há muito se debatia com uma profunda solidão e que muitas vezes, em sonhos, ouvia-a chamar por ele!
Esta é a história de mais um guerreiro que passou todas as tormentas, dobrou o Cabo da Boa Esperança, aguentou-se firme na navegação e quando navegava no tranquilo Índico uma pequena vaga e uma distração fizeram com que a sua embarcação fosse derrubada e acabou engolida pelo mar de tons de forte coloração azul.
O corpo perdeu-se nesse imenso oceano e nunca foi encontrado; mas a alma, dizem os que puderam assistir ao náufrago, essa foi vista em velocidade de cruzeiro a caminho do firmamento e desapareceu num ápice. Hoje, quando se olham as estrelas no céu, vemos duas muito juntinhas que brilham sem cessar; as três filhas dizem sempre quando as observam: são os pais que ali estão!
À venerável árvore, de seu nome, Alcino do Fundo Lopes! Uma vida dedicada aos animais, centrada na família, um resistente, um otimista, a minha homenagem sincera e que é, ao mesmo tempo, um tributo aos homens e mulheres desta geração tão sofrida.