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Artimanhas do Diabo

Artimanhas do Diabo

LAS PAMPAS

Inclino-me  

Firmo-me

Fundo-me

No equídeo em que vou montado

Agarro-lhe na crina

E cavalgo siderado

Por estas paragens a sul

 

Tento acalmar o meu fogoso rapaz

Falo-lhe o idioma em que eu raciocino    

Mas ignoro se ele o entenderá

Melhor seria falar-lhe

Em espanhol

Em inglês

Em guarani

 

Cavalo Pampa

De pelo escurecido

Matizado de manchas esbranquiçadas

Galga

Para encurtar a distância

Na planície sem fim   

Que me desafia

E inquieta   

 

Pela manhã

Cedinho

Ainda o silêncio impera

E é sepulcral  

Bebo,

Debaixo daquela névoa que a planície alberga

E que parece atraída pela paixão

Do pulsar das terras mais a sul,   

Uma dose de mate esverdado

Que tem tanto de mágico:

Dar-me-á

A paixão de um argentino

Os olhos de um gaúcho

O coração de um guarani

 

O meu corcel

Me mira com desconfiança  

Mas inflexível e orgulhoso

Não cede às minhas tentações

Nem equacionará as minha dúvidas

Decepará furioso a erva

Nos sucessivos descansos

Que fará

Nesta cavalgada sob o este manto verde

Que se espraia à minha frente   

Que parece ter sido rendilhado

Por puras mãos de mestre

Nesta planície onde cresce

De forma viçosa e esfuziante

 

Ao longe avisto uma multidão

Los reys de las Pampas:

El ganado vacum

Que aceitam este seu destino

  Para poderem desfrutar desta paisagem

Deste céu aberto e rasgado

Sem fim

Coroado de estrelas cintilantes

E do odor permanente a erva fresca:

O seu mate!     

 

Nesta liberdade

Escassos são

Os que dela conseguem desfrutar  

E ter-te

Ó liberdade

Ali na palma da minha mão  

É um privilégio

Uma bênção

E galopar, galopar, sem fim

Ou, subitamente,

Deter o passo

Para admirar de perto

A flor amarelada

Que interrompe a imensidão esverdeada

Que inunda, pletórica, a planície

Como se fosse o Atole de Mururoa

Na celestial Polinésia!

EPIFANIA O´NEILLIANA

Destemida senhora

Iintrometida madame 

Respeitável lady 

 

Não se penetra na casa de alguém à bomba!

Destrói as paredes   

Sem penetrar no interior de quem lá vive 

 

Não se imiscua na minha vida 

Não queira ingressar

À força

No meu interior

No meu sacro mundo

 

Não é à força, à bruta,

Que lerei o que me vai mandando

 

Sinalizo a sua incompreensão

Identifico esses seus desasjustados padrões

Desafortunadamente

Não são virgens neste mundo  

E que revelam a podridão de caráter

A intolerância

A ausência do respeito pelo outro

Que grassa por aí

 

Da sua parte

E porque é uma lady

E eu sou um homem

Revela misandria

 

Se acha que os homens se agitam

Se acomodam

Se acovardam

Se silenciam

Quando vêm uma mulher

Que ao sentar-se

Maliciosa

Cruza as pernas

Exibindo o indomável vigor das suas coxas

E assim me silencia

Cala a minha voz

Está muito enganada a meu respeito! 

 

Por isso

Afaste-se

Se não quer ser afastada

Deixe de me incomodar

 

Se consigo falei

Cinco minutos

Foi muito…

 

Vá ligeira até outra porta

Experimenta outro batente

Vislumbre outra esfera armilar

Para que se consciencialize  

Onde se situa o seu novo mundo

E onde está o meu velho continente

 

Nessa terra em que aportou

E se camaleou num ápice 

Há procura que ela lhe desse

O que os penedos e serranias não lhe deram

Viva feliz e aculturada a esses ínvios padrões

Que adotou  

 

Eu viverei feliz nos princípios em que fui educado  

Nas leituras de muitos livros que li até hoje    

E no meio desta gente

Que vive neste velho mundo

Que sabe que um homem ou uma mulher

Sós 

Sentados numa mesa de um café

Não estão necessariamente à procura de companhia

 

Tem assuntos a tratar comigo lady?

Tem algo a dizer-me de interessante

De importante

De verdadeiramente premente?

Não?

Então deixe de me mandar

Piadolas

De evidente vulgaridade

Que eu não as aprecio de todo

 

Acabe de vez com esses tiros de morteiro

Para apanhar pardais

 

Cesse com mensagens para a minha caixa de correio

Até pode pensar que será outra pessoa

Julgando que está a fazer uma grande coisa

 Mas este é mesmo um aviso

 

Posso não ter “as dólares”  

Nem querer saber

De que coloração as notas são revestidas

Que esfinges constam nos seus rostos   

Mas tenho a minha dignidade

Que essa,

Não tenha dúvida,

É da dimensão do território de um país como o seu

Mas que é tão insosso:

Se perguntar em Portugal

A alguém sobre o que sabe desse seu país

Apenas que na bandeira consta lá uma folha de bordo!  

NATAL AZUL

 

Céu azul rasgado, perentório e quente dos trópicos 

Céu azul levemente toldado por um odor a enxofre

Céu azul das auroras boreais

Azul fantasmagórico dos que não têm Natal para celebrar

Azul escurecido dos bosques cerrados

Azul, sim, azul, dos odores adocicados das árvores 

Das gotículas minúsculas de gelo

Que se soltam do arvoredo extenso esvoaçando no ar

Pinhas acentuadamente enrugadas que eriçam as mãos ao tato  

Cavalos alados possantes e jubilosos  

Renas discretas teimosamente silenciosas 

Carregam as oferendas dos pequenotes

Na longa noite de Natal!

Verso a verso

Construo, a pulso firme e indomável, a minha vida

Nesse edifício onde reside o poema

De onde saem os sentimentos em laivos abrilhantados

Como estrelas no firmamento  

Natal

Profundamente gelado

Mágico, único

Natal que vem e que vai

Um tempo, porém, em que não haverá mais Natal

A chama azulada expelida desde o solo para a atmosfera  

Fogos-fátuos

Que saem para o ar quente de uma noite de verão

Que parecem fogos-de-artifício dispostos a celebrar a libertação 

Dos gases acumulados ao longo da vida  

Jorrando-os em definitivo para a atmosfera

Que é onde eles verdadeiramente pertencem! 

Etan Cohen

 

Publicado no livro “coletânea sobre lugares e palavras de Natal” em 2020 pelo Lugar da Palavra Editora.  

O ÚLTIMO NATAL

          Debaixo do viaduto Alcântara Machado, no Mooca, situado na Avenida Alcântara Machado, zona bem central da cidade de São Paulo, há uma comunidade de moradores de rua.

Ali também existe uma escala social gradativa: os que conseguiram erguer umas barracas em madeira e ali vivem com relativo conforto, sobretudo nos dias mais frios, e São Paulo não tem propriamente o clima do Rio, e não é obviamente caraterizada pelo eterno bom tempo tropical por exemplo do nordeste; e os restantes que vivem em tendas, muitas delas improvisadas, feitas com plásticos que vão sendo colocados por cima de umas tábuas que suportam os plásticos.  

          Ali ermita, desde há uns meses, naquela comunidade sem lei, sem escrúpulos e que vive numa autêntica selva urbana, Ismael dos olhares dos paulistas que passam assoberbados nas viaturas a velocidades vertiginosas a caminho, sabe-se lá de onde! E muitos daqueles que ali vivem, é verdade, que há ali caras que são pessoas honestas, de ocupações laborais temporárias, muitos deles indocumentados, são o que o sistema brasileiro chama de desbancarizados, situação que a pandemia veio pôr a nu pois foi necessário que o governo federal acorresse para evitar uma catástrofe humana gigantesca, mas a maioria, como Ismael, não tem qualquer ocupação e o que faz mesmo é dedicar-se ao consumo de drogas, mais ou menos ligeiras, dependendo da grana que tenham no momento, e alimentam o vício de pequenos furtos e pedindo nas ruas, muitos deles concentram-se na praça da catedral, ali bem perto da chique e rica Avenida Paulista!  

          Muitos dos paulistas que passam nas suas viaturas em velocidades vertiginosas pelo viaduto, e pelas dezenas de viadutos em que a cidade é fértil, fazem-no com espírito maligno quanto aos moradores de rua, sobretudo desde que o atual inquilino do Palácio do Planalto passou a ali despachar, e opinam que esta gente que mora na rua, pura e simplesmente, não quer trabalhar, são mandriões, pilantras, vagabundos sem vergonha, como apelidam os ideólogos próximos das bancadas senatoriais ou congressistas ligados à bancada evangélica, ruralista ou da bala, todos eles entusiastas apoiantes de Bolsonaro.    

          Ismael chegou ao Brasil pela mão do irmão que, farto de o ver nas ruas de uma pequena cidade portuguesa, com problemas sérios com as autoridades policiais e judiciais, e vivendo sabe-se lá onde, em casas abandonadas sobretudo, e já com problema de dependência de drogas, resolveu financiar a viagem do irmão para o Brasil para casa de uns amigos que vivem no chamado ABC paulista, na cidade de São Caetano. Estes rapidamente se aperceberam que Ismael não só não queria trabalhar como a Polícia Militar já andava em cima dele por causa de uns furtos e como não queriam ter problemas com as autoridades pois os lusodescendentes têm fama e o proveito de serem pessoas, que até podem ser alvo das piadas mais jocosas e pouco abonatórias de inteligência, sérias e não querem problemas com a polícia. Certo dia Ismael fugiu para o centro de São Paulo e foi viver para o viaduto com uma nordestina que ali vivia, viciada em crack e que acabou por morrer de overdose. Ismael passou a viver debaixo do viaduto acoletado sob umas lonas e uns plásticos entrelaçados e costurados uns nos outros que davam um aspeto de cabana improvisada. No exterior e nas imediações do seu abrigo acumulavam-se uma multitude de peças de lixo, desde sacos carregados de entulho, garrafas vazias de bebidas alcoólicas que parecem plantadas a esmo no solo, papéis e objetos metálicos variados igualmente espalhados pelo chão, que davam um aspeto caótico, imundo e nojento a todo o envolvente que se observa nas várias dezenas de barracas improvisadas que por ali se erguem aproveitando a proteção do aqueduto. Ali tem vivido, de facto, Ismael, ele próprio já perdeu a noção do tempo em que ali vive. Mas Ismael, como não lida com o conforto de uma casa feita em tijolos e cimento há uns anos, estranharia se de repente fosse morar para uma habitação normal, e nem precisaria de ser uma habitação sofisticada, uma simples casa em tijolos, sem vidros e com umas portas bem rudimentares, dessas que abundam nas periferias faveladas das grandes cidades brasileiras, rejeitá-la-ia sem demora…

          A vida de Ismael teve aquele destino no Brasil porque se encrencou em Portugal. Chegou a ser condenado por violência sob a sua companheira de então, também toxicodependente, que teve que receber tratamento hospitalar e acabou por confessar que foi o seu namorado o autor.

O irmão de Ismael, perante a situação por que passava este e porque também já há uns tempos que sentia vergonha do irmão, que deambulava pela cidade na maioria dos dias debaixo de substâncias químicas, e dos múltiplos recados e receios da mulher, cujos filhos viam no tio um empecilho a uma certa ascensão social, resolveu tomar uma decisão e conseguiu aliciar o irmão a partir para São Paulo.

          No dia 24 de dezembro em São Paulo vive-se a chegada do verão, temperaturas altas, humidade abundante e chuvas copiosas. Esse natal, para Ismael, parecia ser mais um como nos últimos tempos, debaixo do efeito de substâncias psicotrópicas, cola de sapatos incluída, que o deixava prostrado no interior da cabana improvisada a maior parte do dia e noite, e só saía praticamente para fazer as necessidades fisiológicas, quando ainda tinha algum discernimento, pois muitas vezes fazia-o no interior da tenda improvisada.

          Nessa manhã do dia 24 de dezembro, algo de extraordinário aconteceu na vida de Ismael. Por volta das doze horas da manhã foi acordado pela voz de Seu Jorge que tocaria numa rádio ali bem perto, e viu uma áurea de uma luz forte e luzidia que penetrava a sua cabana e que o iluminava intensamente. Uma voz dolente, macia e suave, invadiu os seus ouvidos e perguntou-lhe se não queria ver as pessoas que ele conheceu ao longo da vida? Ismael, atónito, agitou afirmativamente com a cabeça e começou a visionar os pais, os dois irmãos, os sobrinhos e todos os que conheceu em Portugal, as ruas da cidade por onde deambulou desde criança, até se lembrou do rosto da juiz que o condenou a uma pena de prisão suspensa na sua execução debaixo de certas condições, uma senhora magríssima, que falava muito depressa vestida de uma capa negra que lhe realçava a sua tez clara e os olhos azuis, e Ismael até viu o sangue a escorrer pela face da sua namorada responsável pela sua ida para o Brasil, os gritos alucinantes desta a tentar limpar o sangue da face. E o curioso é que só tinha recordações de Portugal e praticamente do Brasil não era atacado por nenhuma imagem, parecia que tudo se desvanecera neste país.  

          Por fim, agitou o braço, esticou-se e caiu de rompante perante o que se anunciava ser uma apoplexia maligna e fatal.

          No dia seguinte Seninho, foi à barraca improvisada para pedir um cigarro e deparou-se com o cadáver de Ismael.

          Veio a polícia, vieram os serviços de tanatologia municipal, levaram o corpo e enterraram-no numa vala comum, sem honra nem glória, como se fosse um invisível cidadão que veio ao mundo para ser sepultado em lugar tão longínquo e incógnito; melhor seria na sua cidade natal em Portugal, junto aos seus.

          Realmente a única glória que se poderia dizer que Ismael teve nesta vida foi ter perecido no dia de natal, no que de significativo e simbólico possa isso ter!

            

SILÊNCIO DE PEDRA

Espaço aberto

De linhas retangulares

Murado 

Onde impera um silêncio saudoso e gélido 

 

Redoma de sossego

Memória venerada

Um dia também ali estarei

Não sei se alguém me irá reverenciar?

 

Ali

Permanecem a memória dos que já não podem falar

E é neste terno silêncio que parecem aguardar a redenção

 

Campas, jazigos, mausoléus

Erguidos em mármore, granito

Nas suas várias cambiantes

Mas também,

Modestas campas em terra batida

Com aquela ligeira elevação

Tudo em nome do ritual da morte  

 

Cruzes

Anjinhos 

Múltiplos bustos

Lápides com rostos gravados

Preenchidas por palavras sentidas 

 Mistérios

Que até neste lugar nos interpelam

Sobre o culto das palavras

Algumas com longas dissertações

Outras com frases curtas e tantas vezes repetidas    

Para os eternizar

 

E flores, muitas flores,

Por todo o lado

A intermediar a fria e monolítica pedra

A deixar no ar aquele odor floral

Que nos ajuda a amenizar

A podridão que grassa no subsolo

Que vai consumindo os cadáveres

 

Cedros altaneiros

Que evocam o culto católico de orar

Com as mãos estendidas para o céu

 

Pássaros que o sobrevoam

Debandam pelos cedros que oram  

Ignoram o que o lugar simboliza  

Chilreiam

Esmiúçam-se em encontrar um sítio apropriado

Para erguer os seus ninhos   

 

Pessoas vestidas de negro

Andam de um lado para o outro

De balde na mão

Lançando água sobre as campas

Esfregam-nas

E tudo feito com uma paciência

Que me deixa com alguma inveja

Naqueles movimentos cerimoniosos

Imbuídos de um venerando respeito

Para fazer cumprir  

O que consta nas inúmeras lápides  

“Descansa em paz”!

 

Lugar mais próximo do fim

Uma linha ténue

A última fronteira

Que separa a vida da morte

Fascinação que experimento  

De cada vez que ali me desloco

O silêncio do lugar

Um tónico que me ajuda a superar as agruras da vida  

 

Ali ouço os queixumes do vento

O canto dos pássaros

Que voam jubilosos de um lado para outro

 

Junto à campa do meu progenitor

Converso com ele

Como dois grandes amigos

Em silêncio para não perturbar a ordem do lugar

E, em murmúrio, explico-lhe eu e os outros

 

Apetecia-me deixar umas pedras em alguns túmulos

Romper com a tradição do catolicismo

Que só tolera flores

Odoríficas mas que são perecíveis

Perante os que amei ou gostei

Para poder lembrar-me de cada um deles

Mantendo sua memória preservada

Para que as almas ali permaneçam

Onde devem estar

Pedras que, duradoiras,

Serviriam para eternizar as memórias

Dos que verdadeiramente amamos e gostamos!

  

ORVALHO

Seios rociados

Trespassados por finas gotas de água 

Por onde passa esse estreito aluvião

Que interage com o umbigo

E se estende até ao declive da cascata

Por onde jorra

Essa água esbranquiçada  

Que caí no desfiladeiro

 

Resta-nos ficarmos por ali a admirar a queda de água

Inertes e inebriados

A observar tamanha beleza

 

Não valorizo

Menosprezo até

Aquilo que possa ser a ordem

Da caminhada naquele pequeno desfiladeiro  

Que podia ser aquele mesmo percurso

Mas feito de forma inversa  

Cascata

Umbigo

Seio

 

Não ignoro

Que é um trilho exigente

Feito de vontade, de desejo

Testa a nossa experiência  

Para saber lidar com os perigos

E é preciso paciência e querer

Para chegar ao fim da viagem 

 

Em alguns dias

Em que estamos mais ensimesmados

Essa caminhada parece tão chata e repetitiva

Quiçá, possa até haver lugar

A uma espécie de condicionalismo, obrigação

Ou até mesmo a um constrangimento

Coação mesmo

Da ténue linha traçada

Que divide a consideração, a estima, o respeito pela vontade do outro

 

Não me lançaria, decerto, numa aventura dessas

Se não conhecesse a fauna que por ali circula

E a terra senhores

Com o seu cheiro forte

O sabor das ervas que vou mastigando, chupando mesmo  

E das outras que na terra se maneiam respeitosas

Quando por elas passo

E olhar as papoilas que me sorriem  

Nos campos primaveris 

Encantos que não esqueço

Honrando os mortos

E as dificuldades passadas

Nesta guerra pandémica  

De que não esquecemos jamais

Sobretudo dessa cor vermelha sanguínea

 

Atiça-se o entusiasmo

Vangloria-se essa voz que vem do âmago

Lá onde reina essa energia chamada de líbido

Desvia-se o rumo da cascata

Vence a descompostura

Acabo rendido aos ínfimos sentidos

Perco-me nesse trajeto que tanto deleite me dá

Agora não sei mais onde me esconder

Para estar contigo nesse remanso

Onde só nós os dois

Devemos e queremos estar 

 

Soltam-se as amarras

Vocifero e tu imitas-me

E eu imito-te e vocifero

 

Mas para quê tamanho cerimonial?

Se tanto nos amamos

Se tanto nos queremos

Amor

Deixa-me ver essas tuas palavras

Inscritas nessa tua alma de poeta

Deixa-me decidir por mim

Por ti

Pois eu sei

Que tu queres o mesmo que eu

 

Tanto caminho para quê?

Se o caminho é meramente circunstancial

Deixa-me inalar

Esse odor a citrinos

Que a tua pele parece sempre exalar

Deixa-me ser quem sou

Que deixar-te-ei ser

Essa alma sensível como tu

Tanto gostas de te apresentar!  

 

 

LONGE DE MIM

Não quero os ditames

Dos que, a troco de falsas modéstias,

E dos que, enfim, dizem nada saber 

Se cintilam em garantir que não são escritores, poetas ou declamadores

Nem estão interessados em escrever

Nem muito nem pouco

Nem tão pouco perdem tempo com ninharias ou vacuidades

 

Exibem uma costela serrana

De bons pastores

Sobreviventes nas altaneiras serranias

De rigorosa e fria exigência

 

Hábeis no maneio dos ventos mais untuosos

Que sopram, em certos dias,

Nas areias movediças das dunas junto ao mar

 

Essa gente sempre extraí uma declaração

Um ditame

Uma frase

Um verso

Ou um poema inteiro

Dedicado ao autoelogio

Esse sim tão assumidamente vácuo

Que o melhor mesmo

Era fazer como se faz ao gado transumante

Mudá-lo de uma paisagem para outra

Para que ele pudesse encontrar pasto sempre viçoso

E palco que resplandecesse com tamanha originalidade

Do nosso amofinado poeta, reluzente escritor ou talentoso performer

Que diz “NÂO” a qualquer rótulo

A qualquer qualificação

A qualquer tentativa de lhe comprar a atenção

Mas depois cede ao engulho

À mínima vaidade dos que o elogiam

Logo se entrincheira no gabanço

Na blasfémia coquete, afetada,

Que tanto vê nos outros

E quando nos acercamos ao seu lar

O que vemos?

Dizeres pintados nas paredes do próprio

Que se assume tão original

Que até usa um pseudónimo

 

Mas acaba logo por sucumbir ao imediato

Assumindo que o que usa é pseudónimo

O que significa que tem um outro nome e vida

E está mortinho por dizer quem é

Mas mantém-se imóvel

Como esse peixe-ogro

Que aguarda pelas presas imóvel no fundo do mar

E quando capta a presa na sua caixa do correio

Afunda-a, isso sim, com vacuidades

 

Confessa no seu mural,

Que o que gosta mesmo é de escrever, de contar,

E de ver tanta gente que o visita a elogiá-lo

- Que gosto…que talento…que ousadia…que performance tem o nosso autor!

E como exemplo da sua grande cultura

Se põe ali a dissertar sobre política

- Ó como ele sabe de geopolítica…

Como ele é erudito em arquitetura

Até se mune de projetos escritos  

E de complexas formulas matemáticas

Como ele conhece os ditames do mar

Como ele sabe como Eólo se expressa

Como ele convence uma plateia de céticos

Como ele consegue reunir uma manada

E sorridente parte

Montando, ora numa, ora noutra,

Vaca

 

Esse rei que tanto pode ser

Dos pacíficos gaibéus

Como dos extenuados ratinhos

Como dos sofridos pescadores

Que vivem agressivamente instáveis, inseguros e perdidos 

No epicentro do rebentamento daquelas vagas

Que, em certos dias se fazem sentir,

Por ação direta do Canhão da Nazaré!

 

Viverei apartado dele

Sim

Viverei

Longe desse monumento ao endeusamento

À altivez

Às comendas

Que tocam nas cordas da guitarra 

No restolho dos dias

Em que, implicitamente,

Passa os dias a falar sobre si próprio

Mas garante

- É sóbrio, é simples, é discreto

E também não se atafulha com grandes imagens

Quando a jactante divindade se expressa no seu mural!

Ah…e como ele gosta de se assumir afastado dos demais

Diz-se até que é uma espécie de anacoreta

Que logo provoca um “ah…”nos demais

Mas se apresenta soez, como um faroleiro de província,

De pseudónimo pendurado ao peito

Mas que espera que o trespassem na sua morada eletrónica!

 

Shalom amigo(a)

Como se diz no meu linguajar,

Mas longe, bem longe, de mim!    

 

O poema do Camilo Castelo Branco de sua dignidade dada à estampa sob os prolegómenos de “Os amigos” decerto iluminará o meu fadado asceta, a quem recomendo a leitura!

  

 

        

 

GUARDEM-ME ESSAS FRONTEIRAS, MAS COM CUIDADO!

Ponho-me a esmiuçar

Os espasmos

Que, em certos dias,

Me chegam desde a minha memória

 

Acabam por me convocar e interpelar

Mas sem uma razão aparente

 

Fantasias

Quimeras

Ou mesmo resquícios de sonhos 

Mas também

A realidade vivida

 

E lá atrás

Bem na confluência

Do términus da escola primária

Olho para a preocupação paterna

Dar a conhecer os monumentos históricos 

Estudar-lhes os finos traços

As reentrâncias trabalhadas

À mão do maçon

E a simbologia que,

A cada um,

Lhe estava implícita

Isto há cinquenta atrás! 

 

E, de repente,

Abre-se-me a mente

Agigantam-se os meus olhos

Vejo-a aqui ao lado

A grandiosa Espanha

Tão perto e tão diferente

Repleta de História

E de monumentos com história  

E nesse passado

Acabo rendido à nostalgia dos caramelos vaquinha  

Ao doce sabor dos chocolates

Que em Portugal atingiam preços proibitivos

O bacalao…

Em Espanha muito discretamente no prato

E em Portugal indispensável

As calças de ganga

Consideradas subversivas cá no burgo civilizacional!

 

E ali, na raia,

Tudo era tão generosamente fácil de adquirir  

Pela fartura e preços acessíveis

 

Mas de repente,

Enquanto me vanglorio

Com essas pequenas histórias

Vem-me à memória

Essa gentalha que vivia na fronteira

Piores, muito piores que os contrabandistas,

Esses funcionários a quem lhe era dada casa, mesa e roupa lavada!

 

E permissão para,

Naquela chusma de fardas acinzentadas

Que tanto ódio provocavam nos portugas

Que entravam em Portugal,  

Poderem ser tão prepotentes

Tão autoritários

Que presenteavam com um Chega para lá

A quem ousasse protestar

Ou sequer dizer algo

 

Esses odiados homens

Arrancavam de supetão as gangas das mãos dos adolescentes

Limpavam as malas dos carros

Lançavam as compras dos pobres visitantes a Espanha 

Para uma sala apinhada de haveres

Que depois era distribuída pela comandita

Que viviam como javardos

Que comandavam como generais arrogantes

Instituídos de um poder ilimitado!

 

Como é que num país com umas fronteiras com este passado 

Se podia achar que era fácil instituir uma polícia das fronteiras  

Com um historial tão peçonhento e tão tenebroso?

Não se imaginaria que uma instituição assim

Com este lastro tão negativo 

com alguns atuais elementos descendentes dos velhos guardas

Outros que passaram da velha guarda-fiscal

Para o novo serviço, entretanto, criado

Soubesse estar à altura?

Não são as formaturas académicas

Que formam as consciências cívicas

É o berço, é a procura da realização da cidadania plena

Em suma, os direitos humanos que devem ser sempre observados

E realçados em qualquer situação

Seja em quem acabou de perpretar um crime horroroso

Seja num ladrão do tipo de um pilhas galinhas

Seja num indocumentado

Num ilegal

Ou em quem vem procurar uma oportunidade no nosso país

Numa terra onde tantos dos seus nacionais

Se arrojaram na procura de novos mundos 

Uns que ganharam a aposta

E outros assim-assim!

 

É claro, é evidente

Que este novo serviço,

Quando foi criado,

Iria dar raia!

BENEVOLENTE DÚVIDA

Abro-a ou não?

Questão dicotómica  

Que me convoca

E se instala em mim

 

Acaba intensificando-se

Atravessa-me e vai ao meu âmago  

Impõe-se àquilo que é a minha própria vontade

 

Isto no dia em que, finalmente, a consegui ter à minha frente

 

Encaro-a

Estudo-a

Ponho-me a admirar

As formas acentuadamente arredondadas

Naquela mística anca

Que robustece o interesse nela    

Na fulgurante bunda

Que silencia quem a mira demoradamente  

E mirifica o desejo de possuir aquilo

Que os meus olhos

Os meus desejos

A minha fulgurante excitação

Me pedem com tanto vigor

 

Paulatinamente,

Vou-me distraindo  

E acabo fixando-me no seu rótulo

De cores azuladas e de ar nobre

Snobe

De aspeto centenário

Credível

E apetecido

 

Quantos homens foram necessários

Para produzir o que eu agora

Em escassos minutos

Poderei desfazer?

 

Eu, esse zé-ninguém sem vintém,

Que facilmente poderá usufruir

Dos laudatórios predicados de que tanto se fala!

 

Mas,

Continuo nessa observação minuciosa

Que, antes mesmo de a dar por finda,

Me deixa exaurido

Depauperado

Confinado na minha trincheira

 

Por fim, regresso ao rótulo

E é aí que me concentro nas caraterísticas  

Que os criadores descrevem ao pormenor  

 

Desde logo,

Os taninos fortes e bem presentes

Que definem as suas caraterísticas

 

E falam

Em aveludado

Em sabores a baunilha e frutos silvestres…

 

Ah que vontade tenho de possuí-la?

Assim, num ápice,

Que toda ela me invada

Me boxeie

Me boulevard  

E possa fazer parte de mim

 

Penetre no meu porto de abrigo  

Desatravanque as minhas defesas

Liberte a minha língua

Aligeire-a

Acabe enrolando-a

Os olhos húmidos e brilhantes

Em que a íris esverdeada

Acabe impactante

Como as folhas no início das colheitas 

 

Mas continuo muito interessado em abri-la

Atiro-me à procura da peça que a abrirá

E me permita provar daquela faustosa bebida

Para uns, digna do Baco

Para outros, digna de Vénus!

 

Encho-me de coragem

E vou por ali adiante

Sou consequente

E teimoso, claro…

 

Acabo de copo de vinho tinto na mão

A minha paixão

E ela, claro, a meu lado

Pedindo um beijo dos meus

 

A minha vida por ela

A minha glória ao lado dela

 

E vós que tendes sílabas soltinhas

Ou que, em silêncios,

Vos dais a conhecer ao mundo

Vinde para junto de mim

Juntemo-nos nessa comunidade

Que vive

Dessa erva

Desse aroma

Dessa paixão

Que é a escrita

Na bela companhia

De um copo de vinho tinto na mão

E vão ver que o paraíso

Que teólogos das várias confissões

À milénios nos andam a acenar  

Está bem perto de nós

Não acham?

ÁRVORE CENTENÁRIA

Naquele tempo a sua pequena aldeia ficava encravada numa vilória transmontana, isolada do resto do mundo. Bragança, embora ficasse a cerca de meia centena de quilómetros, mas desse longínquo período uma viagem entre as duas localidades parecia uma eternidade!

O rapaz cresceu na miríade onírica de que um dia seria alguém, sairia daquela aldeia e nunca mais ali voltaria.

E de facto assim foi; rumou a Lisboa, onde levava na mala esse livro tão diferente e até algo estranho para aquilo que foi a obra Camilo Castelo Branco: “A queda de um anjo”. Via nele uma advertência para aquilo que poderiam ser as malignas tentações lisboetas, pois embora nessa época já não era como a de Camilo, mas viviam-se os tempos da Segunda Guerra Mundial e embora Portugal se tivesse conseguido manter neutral, mas essa neutralidade era paga bem cara ao país que tinha que agradar a gregos e a troianos, ou seja, aos alemães e aos aliados o que, como se imaginará, era um exercício tão difícil e até quase impossível de conseguir, só possível com grandes recursos financeiros canalizados para esse efeito.

A sua grande paixão sempre foram os animais! Pelo que não podia ser outra coisa na vida que não fosse tirar um curso ligado a esta temática. Mas queria sobretudo ter uma profissão que lhe desse o reconhecimento social e económico, quando se trata de alguém que descende de pessoas ligadas ao comércio de peles, uma grande maioria deles, como se sabe, que lhe corre sangue judeu nas veias.

 Lembrava-se ainda das vezes que o Dr. Isaías, um veterinário que se deslocava de Bragança até à sua aldeia, para atender às necessidades das pessoas e, consequentemente, ao seu bendito gado, e a forma como era recebido por todas as almas, havia até uma imagem que nunca o abandonou e acompanhou-o ao longo da sua vida, o veterinário a lavar as mãos ensanguentadas num alguidar, as toalhas de impecável linho que lhe eram postas à sua disposição para que ele as lavasse, mas lembrava-se ainda do veterinário sentado à mesa da casa dos pais a comer normalmente o que melhor havia naquela casa. É que mesmo não havendo dinheiro para pagar ao veterinário, ao menos havia sempre boas alheiras, ótimo presunto, excelentes enchidos, sem esquecer o botelo, esse enchido feito de ossos, e o excelente pão que se cozia todos os dias que deixavam o Dr. Isaías rubicundo e extasiado com o que sempre lhe punham no prato…

O rapaz, aos poucos, transformou-se num homem bonito, charmoso e encantador. E até aquela rudeza que lhe advinha das suas origens e do convívio com os da sua criação foi desaparecendo para dar lugar a salamaleques, a frases muito bem estudadas, com o ênfase colocado em algumas palavras que lhe permitiam criar impacto sobretudo no público feminino.

Conheceu e acabou por casar com uma alfacinha, de sangue espanhol, cheia de salero e muito zelosa do seu marido e da sua prole.

Uma vida inteira dedicada a cuidar dos animais, que histórias não teria ele para contar sobre os nascimentos, a sobrevivência e as mortes de tantos animais que lhe passaram pelas mãos e em que ele foi testemunha privilegiada? E, já naquela época, havia gente que se importava mais com os animais do que com as pessoas, por isso é que o veterinário sempre foi alguém tão importante como o médico, sobretudo em certos meios onde a importância dos animais tem uma enorme preponderância.

Ao fim de noventa e cinco anos de vida, toda ela dedicada à sua profissão e à família, amando sempre a esposa e cuidando das três filhas, incutindo-lhes o respeito pelos mais humildes, mas também que o trabalho valoriza as pessoas, e a busca de um sentido na vida, na procura da manutenção de uma ética inabalável pelos valores judaico-cristãos, acabou definhando por essas horríveis bactérias que vivem nos hospitais, chamadas de multirresistentes, e já nem sequer se conseguiu despedir com dignidade das filhas. Elas ainda puderam despedir-se dele, e numa segunda-feira, dia tão improvável, se é que há dias prováveis para a morte ou dias especiais, cessou de vez de respirar, desligaram a máquina e foi-se deste mundo.

As filhas inconsoláveis acreditam que o pai partiu por sua própria decisão porque ele dizia, frequentemente e com alguma graça, que a mulher, lá onde se encontrava, há muito se debatia com uma profunda solidão e que muitas vezes, em sonhos, ouvia-a chamar por ele!

Esta é a história de mais um guerreiro que passou todas as tormentas, dobrou o Cabo da Boa Esperança, aguentou-se firme na navegação e quando navegava no tranquilo Índico uma pequena vaga e uma distração fizeram com que a sua embarcação fosse derrubada e acabou engolida pelo mar de tons de forte coloração azul.   

O corpo perdeu-se nesse imenso oceano e nunca foi encontrado; mas a alma, dizem os que puderam assistir ao náufrago, essa foi vista em velocidade de cruzeiro a caminho do firmamento e desapareceu num ápice. Hoje, quando se olham as estrelas no céu, vemos duas muito juntinhas que brilham sem cessar; as três filhas dizem sempre quando as observam: são os pais que ali estão!    

À venerável árvore, de seu nome, Alcino do Fundo Lopes! Uma vida dedicada aos animais, centrada na família, um resistente, um otimista, a minha homenagem sincera e que é, ao mesmo tempo, um tributo aos homens e mulheres desta geração tão sofrida.      

      

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