Fazer ecoar a minha voz
Levando-a
Arrastando-a mesmo
Até esse manto incomensurável
Da densa neblina que se abate sob a costa
Para falar com os meus botões com o mar
Mas,
Sem o conseguir avistar
Ouvindo-o somente
Imagino-o
Nesse turbilhão contíguo à linha da costa
Onde a têmpera lhe ferve
Daquela linha esbranquiçada
Que é possível avistar ao longe
E é nessa água salgada
Que mensuro a força demoníaca
Contidas nas suas águas
Que tudo engolem e tudo tragam
Até do espesso leito de um rio
Que no seu trajeto
Da nascente até ao mar
Se revela tão relevante a sua ação
Nos vários teatros por onde vai passando
O mar faz
Desse rio adocicado
Sua água
De pura salinidade
Naquele efervescente caldo
Que arrasa
Quem se lhe atravessa na frente
O mar, este mar, é um titã
Ingénuo, naife,
Mas demolidor quando provocado
Venerar os meus gritos
Que ecoam
Por entre as brumas das serranias circundantes
Ou se atolam na planície trigueira
Mas,
Como me deleito no olhar que lanço
Que não esconde a minha proveniência
E não escolhe a sua preferência
Cidade?
Não, cidade não é o meu bem
Não lhe sinto
Reflexão
Não lhe vejo
Orgulho
Não lhe descortino
Entusiasmo
Não observo
Veneração
E muito menos
O orgasmo visual
Que só emerge
Quando avisto a natureza esplendorosa
Em toda a sua dimensão
Num simples olhar!
A cidade alberga pessoas
Que vivem em bancarrota afetiva
Na distância
Na frieza
Entre elas
Que as remete para a escrita
Que se vai revelando nos inúmeros murais
Que nos revelam as alvas cores dos ecrâs dos computadores
Nas cidades não há
O verde acetinado dos bosques
O castanho rubicundo do por do sol dos campos dos cereais
O azul resplandecente do mar que reflete o céu vigoroso e limpo
Aquela mistura de odores que nos remete para o ventre materno
No campo, no mar, enfim, na natureza,
Há uma colossal grandeza
Cheia de maturidade e carisma
Que se assume eterna
E é nela que guardamos
As nossas intermináveis pinturas
Que guarnecem a nossa memória
E só se apagam
Na hora da nossa morte…
Sentir o brilho dos teus olhos
Aproximar-me ainda mais
Visioná-los
Tão robustos e cintilantes
Descortinar as cores luminosas
Que deles cintilam
Como se fossem um lindo arco-íris
A beber água de um riacho próximo
Como me haviam dito em criança
Teu perfume intrigante
De mulher entorpecida
Hibernada
Ferida na sua alma
À deriva
Nesse mar encrespado de contraditórios sentimentos
Que, lentamente, se vai adensando sobre mim
Fragrância adocicada e permanente
Remetem-me para uma meticulosa construção
Como se fosse uma peça de fina porcelana
De mulher maviosa
De voz envolvente
Que se alimenta de carícias
E eu não me canso de a evocar
Mesmo que o tenha de fazer
Recorrendo às suas próprias palavras
Murmuradas numa espécie de confessionário
Aonde me confidenciou
Entre dentes e timidamente…
Mas, eu quero mesmo é imaginar-te
Nessa tua intimíssima massagem
De olhos cerrados e topete escanzelado
Na entrada da gruta
Com essa varinha de condão
A tatear moderada e cautelosamente
Essa caverna escura e seca
Mas que já foi o orgulho dele
Mas,
Experiente giesta
Dançarina voluptuosa
Que se maneia ao de leve
Sob o compasso do vento
Inebriada pelas quimeras
Enlevada pelas recordações
Tão vitais como únicas
Quedar-te-ás
A emulsionar a esbranquiçada água do mar
Que tanto desejas
Tão bem conheces
Te delicias
E tanto prazer te deu
Mas,
Coito subitamente interrompido
Quando o mar irrompeu medonho
Flibusteiro
Opaco e acinzentado
Querendo apenas penetrar-te
E sem querer escutar a tua voz
De raiva e de asco
Perante a traição!
Nessa Grandeza que anuncias ao mundo
Acabas inspirando-me
Com elegante sumptuosidade
Do imenso caleidoscópio
Que me vais dando a conhecer
Desse teu interior
Cada vez mais arrebatado
Humano
Imensamente emotivo
E sentimental
Paisagem que se exibe a nossos pés
Desde esse mamelão
Onde,
De mão dada,
Recuperamos o cansaço
Da íngreme subida
Que sabíamos nos conduziria
Ao jardim do Éden!
Silenciados pela excelência
Da vista de pássaro
Que nos é dado a contemplar
Desse leito verde que parece universal
Onde ambos nos deitamos
Deliciados
Naquele púlpito
Onde, aos poucos,
Vamos dizendo
Tudo o que sentimos
Um ao outro
As aves esvoaçando
Aparentemente sem sentido
Dão-nos o seu testemunho
As ervas mais ou menos daninhas
Que ouvem as nossas preces
São observadoras deste nosso Amor
Sentados nos penedos
Que ali são trono de realeza
Onde são recebidos estes dois príncipes do Amor
Que só ali se podem comunicar
Como dois amantes clandestinos
Mas,
O suposto diálogo
Afinal não passa de um sonho
Pois não conseguem dizer nada um ao outro
Acordam sobressaltados
E cada um deles já lá não está
E o sol
Desesperado que todos os dias
Ali vai recrudescendo
Nessa tímida luzinha longínqua
Que vai aumentando progressivamente
E acaba iluminando os rostos radiosos dos dois
Que ali montaram
Edificaram
Um monumento
À grandeza da nobre Paixão
Ambas criaturas boas
Nobres e sensíveis
Afastados longinquamente na vida real
Parecem ausentes um do outro
Mas ativamente espirituosos
E estimulados
Ao que um e outro vai produzindo
Mas tão perto
Na combinação das palavras
Para compor a dança das frases
Que se vão emoldurando
Em cada uma das páginas do Livro
Só eles,
Verdadeiramente,
Só mesmo cada um deles
Sabe o que uma simples vírgula atrevida
Pode significar
Mesmo que pareça
Errónea
Corrosiva
Cruel
Aterradora
Pode até, enfim, perecer
Numa escorreita leitura
Mas os dois saberão sempre
O que ali vai
Só os dois
E lembrar-se-ão,
Muitas vezes,
Da neblina
Que repousa nas montanhas circundantes
Do amanhecer que é sempre tão esperançoso
Mas o sol, o sol, cingir-se-á a nascer
Pendurar-se-á no céu
E acabará caindo sob a montanha
Antagónica à que o viu nascer
Mas que fofa vegetação
Onde poderíamos deitar a profundidade dos nossos sentimentos?
Não vês que era mesmo ali que o poderíamos fazer?
Não sentes que é ali que nos podíamos deitar
Naquele remanso eterno
A ouvir, mesmo que seja por breves instantes,
Os lamentos, que tanto gostas, do vento?
Mas essa tua fé
Nesse Deus monolítico
A que recorrentemente oras
Deixa-me circunspeto
E acabo tendo alguma inveja
Pois como gostaria de ter
Tão inabalável e virtuosa Fé
Como a que expões garbosa, assertiva e assaz orgulhosa
Nessas páginas do teu livro!
Ter-te
Só para mim
Avassaladora e penetrante
Imagem
Simplesmente imagem
Apenas isso
Olhar ao longe
Vislumbrar
Esse vestido
Em tons violetas
Que trajas
Ajustado ao corpo
A tua própria pele
Acoletada
De tons arroxeados
Indagar as tuas adiposidades
Reverenciar as linhas eróticas
Postular os sinais que pululam o teu corpo
Caminhar pelos bosques que te rodeiam
Dotados de ervas odoríficas
Mesclados de árvores frondosas
A cor e os odores que se misturam
Excedente que perpassa para os sentidos
À espera do canto solitário e único do cuco
Que soa esperançoso e penetrante
Vem de longe e anuncia a primavera
Perscrutar as reentrâncias e saliências que há em ti
Como se fosses a acidentada linha costeira
Fustigada pelos ventos
Corroída pela fúria do mar
Que guarda os segredos
Da partida das caravelas
Que ao mar se faziam
Para espalhar a fé e engordar o Reino
De belas e exóticas possessões
Que nos encherão de brilho nos séculos vindouros
Uma espécie de ereção coletiva
Que, inesperadamente,
Foi interrompida
E feneceu de modo trágico para alguns
Na segunda metade do século XX
Chamo-te
Ao mesmo tempo que apresso o meu passo
Procuro chegar-me a ti
Acompanhar-te nesse teu caminhar
Indolente
Livre
Sonhador
Fantasista
Erótico
Mas não sou capaz de te alcançar
Parece que quanto mais corro
Mais me distancio de ti
Acabo rendido ao vestido que trajas
Objeto do meu desejo
Transpirado
Faço uma paragem
Tento recuperar forças
Ouço a água que corre de um declive próximo
Aproximo-me
Colho gotículas de água
E salpico-as sobre o meu corpo
Retomo o olhar
E vejo a esfinge violeta imóvel
À mesma distância de quando me imobilizei
Deparo-me com a surpresa
Não consigo alcançar a imagem
Mesmo correndo
Fustigando-me
Vejo-a apenas como se fosse
Uma estrela a brilhar no firmamento
E no exato instante
Em que a quero agarrar
Já lá não está
Afinal, a cor violeta do vestido
Conduz-me à reflexão
Me atazana e confunde
Fico-me, enfim, pela sensação que nada sei
Acaba permanecendo a imagem
Silenciosa, brilhante e solitária
Pouco terrena
Nada real
Que dela emana
Antes,
Cobiça dos homens
Que a querem ter
Atraídos pelo brilho cintilante
Que erradia permanentemente
Mas não suportam o seu caráter fugidio e forte
Que repele quem não lhe quer bem
E os homens
Apenas querem o bem de si próprios!
Hoje
Amanhã
Estarás por aí?
Rosas azuis
Cães verdes
Momentos raiados de vermelho de paz
Alegria sorridente
Nos recônditos desertos polares
Paradoxos, enfim,
Que me torturam
Que ferem o meu coração
Mas que acabam por me ajudar a suportar
A tua inclemente e dolorosa ausência
Já não sinto os ventos a soprar
Carregados dessa tua maresia sedutora
Que me refrescavam as faces
Que me pacificavam esta alma judia
Que nem consigo próprio se reconcilia
Não me alongarei na brandura das dunas junto à praia
Não teimarei em te procurar
Pois vejo que estás ausente
Mas isso não significa que passarás sem me ler
Mesmo que o faças nessa visita tão madrugadora
E acabes por me ler
Em palavras grafadas na areia dura e húmida junto ao mar
Mas não ocultarás a tua presença em mim
Buscarás textos antigos
Meus e teus
Que para nós são mágicos
Pois só nós sabemos o seu real significado
O que ali simboliza e representa
Cada letra, cada palavra, cada frase e cada poema
Em escritos carregados de palavras
Que se vão vestindo
Em roupagens que vão girando nas asas de cada frase
E até a pontuação serve, por vezes,
Para dissimular a ideia que lhe está subjacente
Mas tu lá saberás, melhor que eu,
Quando e como regressarás ao convívio
Da minha parte, já decidi
Prefiro ter-te, mesmo que seja nesta sinecura online
Do que não te ter coisíssima nenhuma
E ficar condensada a tua presença
Aos meros textos que pertencem já ao passado
E não, não consigo esquecer
A primeira vez em que surgiste num turbilhão
Como se fosses um cometa no escuro da noite
Que me caiu em cima da cabeça
Desde esse dia
Cozo cada palavra, na manta que vou elaborando
E tudo para que te possa respingar
Nessas tuas vestes de poeta alada
Que nunca se dá por vencida
Que fala de coisas comuns da sua vida
E transforma-as em declarações de amor
Ao próximo
Ao ambiente
Ao mar celestial que em ti é recorrente e bem presente
E até o brilho das ondas
Que vais vislumbrando
Desde a janela da tua casa
Te permite enrolar os teus pensamentos
E acabar bem longe dali
Cismando nas palavras que virão por aí
Salteadas
Enfileiradas
Arroxeadas
Azuladas
Ou simplesmente palavras apenas
Que te trarão, outra vez,
A ouvir esse bansuri
Que piedoso, hindu
Que discorre letra a letra
Por ali adiante
Como se fosse uma escritura sagrada
Na companhia da envolvente tabla
Que simboliza a batida do teu coração!
Mourejado coração
Esmerado em conter-se
Acabo descobrindo esse teu íntimo fantasista
Engalanado pelo olhar
Atrevido
Enternecido
Orvalhado
Por onde vão rolando
Pequenas gotículas
Que darão cor e alento
Às flores circundantes
Que se misturam no mosaico ajardinado
Da erva rebelde que cresce sem destino
Ao musgo que cresce na íngreme encosta
Tufos de cabelo viçoso esverdeado
Afinal,
De que te queixas?
De que te lamentas?
Tu que pareces ter tudo para seres feliz?
Mas a felicidade não se constrói
Numa alma como a tua
Que se esconde
Como um iceberg
Submergido pelas águas frias do mar
Alma ferida
Dorida
Nostálgica
De um passado sem retorno
Mas,
Almejado desejo que se assoma
Nessa tua intimidade
Acaba se difundindo
Como se fosse voz propagada pelo eco
E passa a ser vontade:
Olhar as intimidades mais esconsas
Mas podias transpirar
Excitar-te na contemplação e na entrega
Podias, por fim, fazer zorrar essas tuas águas
Que matam a sede a esse jardim
Luxurioso e fofo de odores fortes e ácidos
Deixar que esse líquido fluísse livremente
Até que eu sentisse essa tua liberdade
Mas, felicidade efémera
Voltarias a suspirar
Por ele
Por mim
Por outro
Quem sabe por quem?
Porque se pensas que tens pátria
Não…não a tens
Não pertences a lado nenhum!
A tua pátria desmoronou-se
Há muitos anos atrás
No instante em que partiu
Aquele por quem continuas a suspirar
E esperas um dia reencontrá-lo
Essa é a tua condição
A tua consciência
Com que terás que viver!
Com os papéis desalinhados
Jazendo em cima da secretária
Alguns onde vou alinhavando algumas ideias
Reais ou fantasiosas
Aguardo que algo mágico
Me faça acender o interruptor da luz
Que me iluminará
A descobrir a passagem
Para a outra margem do rio
Sei que, mesmo naquela correnteza da água do rio,
Pisarei as pedras
Que emergem sob a superfície da água
E, sem me molhar,
Chegarei onde me propus chegar
À outra margem
Mas, uma vez chegado,
Ao outro lado
Não descansarei
Enquanto não me sentar
No dorso de um falcão
E, em voo picado,
Rasante e mirabolante,
Mirarei para o infinito
E vislumbrarei a paisagem de puro encantamento
Como ela se apresenta vista de cima
Mas impossível de capturar
Pela máquina fotográfica
Mas pela memória
Mas,
Vendo o falcão apenas preocupado com as suas presas
Passo, de imediato,
Para o dorso de uma cegonha
Mas esta não se atem demasiado
Ao regozijo de uma visão
Nem a ser montada por mim
Esta, preocupa-se com o tempo
Inquieta-se com a prole que terá que deixar
E por isso mira a altivez de uma velha chaminé
De uma antiga fábrica abandonada
Para contruir o seu ninho
Nessa planície deserta, silenciosa, calma e terna
Não muito distante de terrenos alagadiços
Onde poderá se alimentar facilmente
Acabo agitado na alma
Vendo a cegonha
Semanas e semanas sentado no ninho
Perene a contemplar
A largueza e o alcance
Que a vista da planície lhe concede
Mas eu sei que esse não é
Nem nunca será
O seu principal propósito
A cada instante
Volto-me para os papéis e questiono-os:
- Que fazem vocês aqui?
- Porque não dizem nada?
Mas eles não respondem
Também não questionam
Mudos como sempre estão
Sofridos e humedecidos
Estendidos e silenciosos
Com a aparência de um idoso
Atacado pelo reumático
Com a memória desvanecida
Eu decifro-os bem
Conheço-lhes as suas manhas
E o que cada palavra significa
Mas eles não me conseguem decifrar
Nem consegue ler o meu interior
Palavras escritas à mão
Restos de quimeras
Muitas ilusões e fantasias
Que me ajudam a sufragar
Este meu desejo de pintar quadros
Do que a realidade me apresenta
Dando-lhe um toque impressionista
Uma forma arrojada, empedernida ou empolgante
De olhar o mundo
Visto-me e saio dessa quietude
Dissipo essa vontade latente
Que me desassossega
Que me ilude
Que me convence
Que me estimula
E que não se contém encerrada
Na escuridão do interior da minha caixa craniana
A luz do candeeiro incide sobre as letras do meu teclado
Cada uma delas desponta perante o meu olhar
Mas, olhando-as individualmente,
Acabam por não me causar nenhum tipo de sentimento
Apenas, olhando-as ao longe, desde cima,
Dão-me uma dimensão estética impressionante
O de uma parada militar
Impecavelmente alinhada
As letras
Ali presentes afiguram-se imprescindíveis
Mas só por si não bastam
É preciso, é urgente, é imperioso ordená-las
Para que elas produzam
A força
O sentimento
A suavidade
A sonoridade
Da música
Saída do dedilhar
De uma simples guitarra!
Nesse entorno em que te moves
Podes causar a impressão mais entusiástica
O maior impacto estético
Podes simplesmente recolher
Milhares de “bem-haja”
Podes dormir nesse leito
Coroado de pétalas de rosas
Adocicado pelos sabores dos néctares
Das flores mais doces e coloridas
Aquelas a quem as borboletas não resistem
Beber desse vinho carregado de taninos
Compacto e complexo
Que o palato acaba por descortinar
Podes rolar o vinho na boca
Mastigá-lo até
Mas não podes sequer querer
Que eu seja esse pateta alegre
Que se contenta com a escrita
Autoelogiosa
Quero, pois, marcar o caminho
Mas que seja feito à minha maneira!
Subo e desço escadas
Procuro nos livros mais antigos e sábios
Aqueles onde a possível perfeição
Foi possível alcançar
Toda a sabedoria necessária
Para escrever o texto mais convincente
A frase mais empolgante
Que jamais te deixará livre
Desta minha desalinhada condição
De homem que escreve sobre as suas intimidades
Coisa rara de se ver
Assunto mais propenso de se assistir
Nas “frágeis” mulheres
Que frágeis são apelidas
Mas fortes na titularidade do conteúdo
Procuro diluir as manchas
Que importunam o meu sangue
Que me destroem as células
Que me envenenam os neurónios
Oblitero a mesquinhez
Reconsidero a ousadia
A minha e a dos outros
Rendo-me à palavra
Enorme e avassaladora
Saída de um poema
Que não se deixa jamais
Aprisionar numa vitrina de exposição
E vive solitária por aí
Dentro de cada um de nós
E quantos de nós não temos frases
Que recordamos, que repisamos, que consultamos
Que nos dão o alento para a pequenez do dia-a-dia
E, sem me diabolizar nunca,
Digo sempre que
Os deuses têm voz
Ou pelo menos há por aí uns arautos
Que não se cansam nunca de a dar a conhecer
Mas do diabo, perdoe-se a redundância,
Que diabo,
Acaso
Conheces alguém que o divulgue
Através da palavra
Como fazem com os deuses?
Desde o início que o diabo teve sempre essa peculiar caraterística
De ser agressivo, insinuante, perniciosamente mau, castigador e impostor
Mas, como um pecado original,
O diabo costuma ser a nossa primeira tentação
Mas depressa soçobra
Transformando-se numa imensa repressão
Castração mesmo
Que vigora até hoje
E causadora das maiores perturbações
Ondas gigantes de um mar encrespado
Carregadas de energia desaproveitada
E a praia continua deserta
A areia insana não se deixa apanhar
E alarde vocalizações aglutinadoras inenarráveis
Conchas e moluscos escapam das nossas mãos
Como escorregadias e sinuosas enguias
As imagens apresentam-se deterioradas
Mas não deixam de ser belas e de impressionar
Todas se apresentam exageradamente alongadas
Como se fossem hipérboles literárias
E gelatinosas
Como as caravelas-portuguesas
Mas perante o meu olhar cedem, acabam caindo
E dengosas e moles as imagens
Deixam-me a impressão:
De compulsão
De esquecimento
De neurose
Tão difíceis de barrar, de aniquilar
E soçobra a magma ideia
Do esquecimento,
Do trauma
Da infância
Da sexualidade
Mas o diabo
Esse irremediável malandro
Mesmo sem um pregador cerimonioso de serviço
Vai continuar por aí
Pelo menos
Nas nossas cabeças!
Veneranda vastidão
A enxergar, a contemplar
A infindável planície
Plantas amofinadas
Terra seca acinzentada
Que parece tisnada
Magna planície
Aqui e ali suavizada
Por majestosos chaparros
Que por estas paragens são monarcas!
Para ti cantando sempre
Nessa polifonia de vozes
Em que intervêm
O ponto
O alto
E, invariavelmente, o coro
Que interpreta
O cante que simboliza a estrutura coletiva
Que contraria o individualismo
Única maneira para combater
Tamanha dureza de vida
Roupas negras trajando
Rolam pela calçada
O cante que lhes saí da alma
Que soa pelas potentes gargantas
De homens sérios e honrados
Envoltos nesse olhar terno
Respeitoso
Já quase sem esperança
Perfilados
Marchando sincopadamente
Como se fosse uma suposta frente
Evoluindo na planície
À procura do seu íntimo legado
Cordas vocais afinadas
Em que perpassam
Estruturas musicais muçulmanas
Ritmos gregorianos
Ou simplesmente
A alma genuína desse povo
Que foi sabendo resistir às sucessivas secas
Ao isolamento
Enganando a fome
Com o multifacetado pão
O abençoado azeite
E as ervas que sempre crescem na planície
Alimentadas pelas chuvas que vão caindo no inverno
Sem rogar nada a ninguém
Vivem na sua altivez estrutural
Apenas a mão direita
Se assume submissa
Colhendo o chapéu
Executando a vénia
A quem por eles passa
Que nos demanda
Tamanha ousadia
Alentejo
Grandeza portuguesa
Que se vê do firmamento
De linhas retilíneas
Alentejo
Que vai evoluindo
Vai crescendo
Para o destino desértico
Que se assume como profético
Mas Alentejo
Puro
De forte odor a terra
Árido, selvagem
Alentejo
Em paz
A multiculturalidade portuguesa
Desaparecerá
Se fenecer de vez
O Alentejo!
Choram as fragas eruptivas
Flamejam as faces rosadas do Eduardo
Lamentam-se os choupos
Predizem as falas profundas do Lourenço
Debata-se a terra negra e árdua
Vizinha, tão vizinha, desses penhascos altivos
Num exercício frontal
E tudo para receber esses ossos cansados
Que descansarão no eterno
Das letras com que pejaste vida tão cheia
E, em vão,
O vento soprará agreste e subversivo
Sobre as tuas palavras
Gizará caminhos novos para novos filosofares
Pois,
Portugal precisa tanto de ti
Vestem-se as cabras com o seu traje de gala
Tocam os sinos a rebate
Elogiosos, declamativos
Naquelas palavras com que tu costuravas sempre a frase
Para anunciar o dia em que resolveste desistir
De ti e dos outros
Do vazio que não se define em palavras
Expressam as flores as suas máximas condolências
Agora que já cá não te têm para as cheirares
E levitam já no ar lamentando a tua ausência
Ouço na longínqua memória
Essas tuas palavras prenhes e sibilantes
Que assinalam a rudeza da tua origem
Mas como elas se assumem cada vez mais sábias
Afinal, o saber, o conhecimento, vem da serra
Das fraldas das serranias que anunciam a muralha lusitana
Mas os teus pensamentos
Vêm de muito longe
De terras distantes e maduras
Eles são a voz pura da portugalidade
Desde Pessoa que não se ouvia voz
Tão resoluta
Afirmativa
Sábia
Erudita
Sobre Portugal, os portugueses
E a sua incessante busca identitária
Nas ervas crescerá essa tua essência
E como já sinto esse odor místico das tuas palavras
Até as flores já se lamentam da tua partida
Até os famintos lobos uivam
Saudosos já da tua ausência
Os faunos que se passeiam pelos bosques
Tocam flauta
Tentam olvidar a tua desistência
Até o seco Viriato se lamenta da tua partida
Portugal só sobreviverá
Com o legado imenso que deixaste atrás de ti
Mas…Eduardo…chegou a hora da despedida
E eu não vejo a hora, nem as palavras exatas
De apropriadamente, me despedir de ti
Por isso, dá-me essa tua face rosada
Deixa-me beijar a genuína sabedoria
Portugal ficará
Imensamente mais pobre
Com a tua partida
Para essa terra, como dizias,
De nada
Nem de ninguém!
Com a devida vénia, curvo-me perante tal figura!