RUMO A BIZÂNCIO
Este país não é para velhos. Jovens Abraçados, pássaros que nas árvores cantam – Essas gerações moribundas – Cascatas de salmões, mares de cavalas, Peixe, carne, ave, celebrando ao longo do Verão Tudo quanto se engendra, nasce e morre. Prisioneiros de tão sensual música todos abandonam Os monumentos de intemporal saber…
W.B. Yeats
O que te posso dizer?
Se já não fazes parte da minha vida…
Podes querer, fazer, executar, empreender
Entrar, sub-reptícia,
Para indagar o que eu faço
Penetrar no que eu penso
Tentar confundir-me
E reentrar na minha vida
Mas não vês que eu mudei?
Mudei tanto que para mim
Tu és agora uma impetrante
Que desafia
E desfia
O passado
E eu, como sempre,
A pensar no futuro!
Não basta dizeres, exclamares
Ou norteares-te
Por palavras fortes
Um tom dramático
Acentuado e pujante de sentimentos
Com aquele ardor
Dos aficionados da Festa Brava
Ou como um romance que respira
Pelos seus múltiplos poros
Para destilar a dimensão trágica
Da narrativa
Esse teu manto imperial que envergas
Ajustado às tuas formas corporais
Donde sobressai esse teu erotismo flamejante
Que se assemelha ao roupão
Que os poetas envergavam no século XIX
Parece-me uma catedral gótica:
Que nos exalta
Quando a contemplamos por fora
Que nos entorpece os sentidos
Quando a vemos por dentro
E remete-nos ao silêncio
À contemporização
A sorver todas aquelas linhas
E acaba por nos demandar:
Absolvendo todos os pecados da humanidade
Quando vemos essa tua inimputável loucura!
Os teus excessos
As tuas venturas
Esse teu sentir na intimidade
A tua audácia
A tua pertinácia
De quem
Tudo quer
E não,
O pouco fracionado,
Esse teu sentir
Único e tão avassalador
É como o desespero do náufrago
É como o vigor da palmeira
Que cresce até no meio das areias longínquas
E foi essa força
Tão animalesca
Que me acabou afastando em definitivo de ti
De repente, e sem que nada o fizesse prever,
Mas tu, sempre foste tão imprevisível,
Quer no amor, quer no ódio,
Encetaste uma tímida tentativa
Como se fosse mero gesto involuntário
E então, suave e subtil,
Almejas reincidir
Entrar na minha vida
Com aquele teu jeito titubeante
Mas só na aparência
Porque em ti nada é oscilante
Quero apenas de ti
Conservar as memórias
Que me bastam para me afastar de ti
Cardo
Como sempre assumiste ser
Capaz de resistir em qualquer latitude
Na terra mais pobre
No clima mas impetuoso
No meio de uma fresta nas rochas
Cardo
Mesmo na solidão
Mostra-se exuberante
Nos seus tons lilás, brancos, azulados ou amarelados
Mesmo rodeado de espinhos
Mas há sempre uma abelha
Que contempla o Cardo
E que sorve, amena e voluptuosa,
Os seus néctares
E naquele instante
Uma abelha acaba pousando no Cardo
Deleitada naquele seu leito real
Protegida pela sua guarda pretoriana:
Os espinhos…
Que são o que de ti guardo
Como a memória mais viva!
SEGREDO
Não contes do meu
Vestido
Que tiro pela cabeça
Nem que corro os
Cortinados
Para uma sombra mais espessa
Deixa que feche o
Anel
Em redor do teu pescoço
Com as minhas longas
Pernas
E a sombra do meu poço
Não contes do meu
Novelo
Nem da roca de fiar
Nem o que faço
Com eles
A fim de te ouvir gritar
Maria Teresa Horta
Nesse coxim onde repousa
A tua alcochoada e esbelta cabeleira,
Eu por cima e tu por baixo,
Percorro astutamente
As traves do teu corpo
E alcanço as sombras esquecidas
Das mãos que por ali passaram
Deixo-me enlevar pelos teus lábios
Sedosos, húmidos e dourados na noite,
Reflexos da lua a incidir
No remanso das águas calmas do lago
Que me fazem sentir um anfíbio
Roço as minhas mãos
Pelos teus seios
Que se entumecem endurecidos
Lanço a minha língua
Ao de leve
Ondulando, bailando mesmo,
Acabando
por chupar o néctar das tuas rosas
A minha mão direita acaba
Por se esquecer do esquecimento
E lança-se sôfrega na direção da tua vulva
Afagando o teu clitóris que se ri
Do meu arrojo
E tu nesse carpir de odalisca
Gritas
Acabas
Ensopando as pontas dos meus dedos
E é nesse instante que me empurras
Te açambarcas do meu corpo
Esfregas as tuas mãos na minha pele eriçada
E palmilhas vagarosa
Até que alcanças terreno desejado
Pôs as tuas mãos bem posicionadas
Em cima do meu pénis
Que se sente tão atraído neste jogo de sedução
Como o jogador pelas cartas
Agita-lo para cima e para baixo
Até que te colocas em cima de mim
Abres as tuas longas pernas
Endureces as tuas coxas
E, como por mágica,
Fazes desaparecer o meu pénis
Leves movimentos
Em cima de mim
Que depressa te fazem aguçar o entusiasmo
E te fazem agitar,
Sem parar,
Os movimentos acentuadamente
Para cima e para baixo
Trejeitos do teu rosto
Fazem-me perceber
Como curtes o prazer
Eu
Em posição de supina
Sigo com o olhar
Todas as tuas interjeições de prazer!
E tu,
Como caudal de rio que não cessa,
Vais-te sucedendo em múltiplas consumações
Que me vão fazendo cravar
Ainda mais
Nas profundezas
Até que alcanço a plenitude do teu ventre
E é aí
Nesse reencontro com a sombra do teu poço
Que faço derramar todo o meu esperma
Que não cessa jamais
E que acaba tingindo
A brancura desse teu rio interior
Que me recebeu…
E um último e longo beijo
Nos acode
Ao cansaço que sobrevém
Que é enorme
E único
E é nesse remanso
A dormitar e a saborear
O sexo
Que cerramos os olhos
Para restabelecermos as nossas forças
E voltamos outra vez
A cavalgar
Eu por cima
E tu por baixo
Ou tu por cima
E eu por baixo
Para voltarmos a ser felizes
E eu, fixando-me nessas tuas longas pernas
Que se penduram nos meus ombros
E tu, desejando as minhas fragâncias,
Procurando com avidez esse meu prolongamento
Que ora se exibe garboso, ora se entristece e se esconde,
Roço-me no teu musgo
Onde me deito
Evoco-o saudoso
Sempre que penso em ti!
Balada para as três mulheres do sabonete Araxá
As três mulheres do sabonete Araxá me invocam, me bouleversam, me hipnotizam.
Oh, as três mulheres do sabonete Araxá às 4 horas da tarde!
O meu reino pelas três mulheres do sabonete Araxá!
Que outros, não eu, a pedra cortem
Para brutais vos adorarem,
Ó brancaranas azedas,
Mulatas cor da lua vem saindo cor de prata
Ou celestes africanas:
Que eu vivo, padeço e morro só pelas três mulheres do sabonete Araxá!
São amigas, são irmãs, são amantes as três mulheres do sabonete Araxá?
São prostitutas, são declamadoras, são acrobatas?
São as três Marias?
Meu Deus, serão as três Marias?
A mais nua é doirada borboleta.
Se a segunda casasse, eu ficava safado da vida, dava pra beber e nunca mais telefonava.
Mas se a terceira morresse… Oh, então, nunca mais a minha vida outrora teria sido um festim!
Se me perguntassem: queres ser estrela? Queres ser rei? Queres
Uma ilha no Pacífico? Um bangalô em Copacabana?
Eu responderia: Não quero nada disso, tetrarca. Eu só quero as três mulheres do sabonete Araxá:
O meu reino pelas três mulheres do sabonete Araxá!
Manuel Bandeira
Sofro,
Sofro,
Por ti
Por mim
As tuas mãos
Tremem
Suam
Agitam-se
Só de o evocares
Agita-se o teu coração
Macerado na evocação da saudade
Desse amor incomensurável
Que ficou ateado,
Algures lá atrás,
Que te vai perseguindo
Como a obsessão de um viciado
Na clareza dos dias de sol
Nos pardos dias de neblinas
No fusco da noite interminável
Quando não consegues dormir
Esse,
A quem persegues,
Ou pelo menos a ideia dele,
Foi o único homem
Que não era um
Mas,
Como as Marias,
Três em simultâneo
Ficou paralisado, endeusado
Como se fosse uma montra
Retido
Nos três planos
Como o sabonete
Dessa caixa
Que apregoava ao mundo
As qualidades do grande sabonete
Que eram também os predicados das três Marias
Nessa cidade com nome meio indígena: Araxá
Sofro,
Sofro,
Por ti
Por mim
Sofro por todos aqueles que sofrem
Pelas três mulheres
Homenageadas pelo poeta
Sofro pelos homens e mulheres que sofrem
Mas sofro muitíssimo
Pelo homem que se esfumou da tua vida
Mas rejubilo pelo homem
Que se mantém inatacável na tua memória
E que, recorrentemente, o evocas
Como esfinge desafiante
Para te entender
Entendendo-me
Mas Araxá,
Essa longínqua cidade
Em que os tupi guaranis
Dizem que é onde se avista o sol,
Pergunto pelas três Marias
E Dizem-me
Que não as conhecem
Nem nunca ouviram falar do sabonete
Ah… poeta como te enganas,
(será?)
E como enganas os outros!
Fazes das figuras reais
Fantasias
E das fantasias
Homens e mulheres mais que reais!
NEM TENHO PAZ NEM COMO FAZER GUERRA
Nem tenho paz nem como fazer guerra,
Espero e temo e a arder gelo me faço,
Voo acima do céu e jazo em terra,
E nada agarro e todo o mundo abraço.
Tem-me em prisão quem ma não abre ou cerra,
Nem por seu me retém nem solta o laço,
E não me mata Amor, nem me desferra,
Nem me quer vivo ou fora de embaraço.
Vejo sem olhos, sem ter língua grito,
Anseio por morrer, peço socorro,
Amo outrem e a mim tenho um ódio atroz,
Nutro-me em dor, rio a chorar aflito,
Despraz-me por igual se vivo ou morro.
Neste estado, Senhora, estou por vós.
Francesco Petrarca
Sem querer saber quem és
Mas, rendido a essa tua força,
Que transparece no vigor das tuas palavras,
Vejo-te aparentemente imóvel
Mas com o coração aberto e arfante
A dizer ao mundo
O que te vai na alma!
Rendilhado e assombrado
Pelas tuas palavras ousadas e fortes
Que ora são confissões das tuas fraquezas
Ora são manifestações desse teu caráter granítico
Trazes essa intimidade mais recôndita
Nesse sufoco tão bem guardado
Que se faz ouvir sempre que chega a Primavera
São imagens de rosas que se atravessam no olhar
Odores florais que percorrem os sentidos
Caminho árduo e solitário
Que te impuseste a ti própria
Um ermo erguido numa colina
Que íngreme se eleva
Trilho estreito, empedrado e difícil,
Foi assim que quiseste conceber o teu mundo
Mas tens o pulsar telúrico dentro de ti
O passado, a história,
A tua história,
Que não te abandona
As bátegas de água que se ouvem
Caídas da cascata
O fio condutor dos canais feitos em granito
Onde se faz ouvir um indelével som
Quase silencioso e muito suave
Da água pura e gélida
A percorrer todos os cantos da tua infância
Tens esses mitos celtas
Esse gosto pela natureza
Árvores verdes enormes
Que não te deixam nunca
E as aves que parecem voar até ao paraíso
Salmões que sobem os rios
Para prosseguir o seu ciclo de vida
E tu, sacerdotisa,
Dessa divindade que é a Natureza
Enlevas-te com esse teu manto real
E andas de castelo em castelo
À espera de encontrar esse rei destemido
Sem terra e sem reino
Que vive por entre
As frias neblinas
Guardiãs de todos os lagos
Mas nesse caráter sanguinário
Sempre pronta a assumir guerras
Até contigo própria
Esconde-se a tua fragilidade
Que não te dá descanso
E por isso,
Ora te dás ao mundo entusiasmada,
Ora te escondes nesse casulo que construíste
E tudo não passa de um subterfúgio
Para se escapares à força dos afetos;
Mas, como sabes,
Vive-se ou morre-se
Dos afetos
Mas quero-te, apesar de tudo, mesmo assim como és
Mergulhada nesse mar tempestuoso e encrespado
Onde crias as fantasias
Te envolves nesses teus mistérios
Que te dão a força dessa tua existência
Que ora se mostra volúvel
Ou ávida por um simples tatear da pele
Que logo se eriça
Mas, logo de seguida,
Explode esse vulcão
Que vive na intimidade do teu algar
Que não deixa ninguém tocar-te!
Mas podes dizer tudo,
Mas tudo mesmo;
Ninguém espera
Que saia desse teu interior em ebulição
Anjos e querubins, nem mesmo diabos,
Tu que mostras a tua alma
(Ora é fria, ora é quente,
Sempre excessiva
E a que a ninguém é indiferente)
Sabes que tudo o que de ti emerge
Te será perdoado!
PARECE TÃO GENTIL, TÃO RECATADA,
Minha senhora quando alguém saúda,
Que toda a língua treme e fica muda
E olhá-la até seria ideia ousada.
Quando ela passa, ouvindo-se louvada,
Benignamente a humildade a escuda,
Tal uma cousa que do céu acuda
À terra, por milagre revelada.
Tal graça ao coração de quem na mira
Está pelos olhos uma doçura a pôr
Que não pode entender quem a não prove;
E dos lábios parece que se move
Um espírito suave e só de amor
Que vai dizendo à alma assim: Suspira.
Dante Alighieri
Pudesse eu ter-te dentro de mim
Para me assombrar pela tua luz
Que vai fulminando os espaços vazios
Onde a escuridão se esconde
Semeias ideias desassombradas
Que nestes instantes de vida que vivemos
São a esperança do regresso das andorinhas na Primavera
E não me canso de pensar em ti
De te admirar
De exclamar
De sentir a pele eriçada
Quando leio a soltura dessas sílabas
Do cuidado que pões nas tuas palavras tão arrumadas
E na fé inabalável que vive dentro de ti
Esse titã que é o teu Deus protetor
Nesse manto de cetim
Amanheces,
Envolta na alvura dessa tua mente,
E sonhas, ainda, porque os teus sonhos são imensos e retemperadores
É com os sonhos que os milagres em ti se realizam
E é pensando neles que segues sempre em frente
Porque mesmo os impossíveis
Depois de sonhados
Podem ser vividos com empolgamento!
Eu na minha suavidade e doçura
Aparto-me das multidões panegíricas
Que esfuziam frases laudatórias
Como os velhos amantes moldavam palavras nos troncos das árvores
Porque assim sentem a sua importância
Acham que contribuem para o nascimento de uma Estrela
Mas a estrela, a existir, está dentro de ti, está dentro de mim,
E não nos buracos negros de umas palavras de circunstância!
A pior solidão
É aquela que sentimos
Quando estamos rodeados de uma turba
Que profere exclamações encomiásticas
E que nunca nos dizem a verdade
Sentimo-nos como os velhos monarcas
Ou os saudosos imperadores romanos
Que viviam rodeados de luxos
Mas longe da realidade
Mas a luz que me iluminou
Cegou-me
Nesta caminhada onde acompanhei
Os teus passos sincopados
Ouvi o som da tua flauta
As palavras ditas,
Cada uma delas,
Como se cada uma delas
Representasse aquele apelo dramático
Da sirene de um farol
Em dias de intenso nevoeiro
Dirigida aos barcos lá longe
Que navegam perdidos
Chicoteados pela força das ondas
Mas um dia ousarei
E ousado serei
Para que a minha ousadia
Ouse alcançar o atrevimento
Nesse dia serei outra vez o feixe de luz
E tu voltarás a ser a energia que me sustenta!
Só o Verão acalma o meu coração,
Por vezes agitado, por vezes calmo,
Por vezes lasso, por vezes folgado,
Que necessita de um desfibrilhador
Só a ideia do verão
Acalma a fúria que sinto
Pelo luto interminável
Longe ainda o Verão
Que sucederá a este Inverno trágico
Sinto-me como um eunuco
No interior de um harém
Repleto de mulheres
Só a ideia do Verão me faz aplainar o voo
Que, pelo meio da tempestade,
Me parece interminável,
E acabe me conduzindo até a uma altitude
Onde consiga, por fim, vislumbrar o sol
Mas devaneio-me no meio do trivialismo
Antes que o meu coração ceda à pulsação mais histriónica
E me faça falar do que não devo
E mastigar e engolir do que devo falar
Querem-me fazer engolir as mais doces iguarias
As misturas mais exóticas de sabores
Os vegetais mais tenros que “parecem” carne
Como os perseguidos “frades”
Colhidos debaixo dos imponentes carvalhos e castanheiros
Mas, a “monte” ando eu, andas tu, andamos todos,
Ansiosos à espera da chegada do dia D
Que nos libertará dos terrores que estamos a viver
Que nos fazem sentir tão pequeninos e assaz frágeis
Mas onde poderei encontrar-te Verão?
Se de ti vejo apenas folhas rendilhadas de um calendário
Imagens de um sol radioso que me ajuda a estimular os neurónios
Ou lamentos do meu passado
Onde ouço os ecos dos miúdos
Que nadavam nas águas do velho rio
E à hora dos lanches da praia
Onde, por momentos, se viam apenas a caminhar no areal
Os que não nada tinham para comer
E as horas do banho que nunca mais chegavam
Primeiro após o almoço
Depois após o lanche
E nós petizes sem entendermos
Estes “caprichos” dos mais velhos
Lá nos contentávamos com a frugal molha de pés…
E, por vezes, a onda nos surpreendia
Traiçoeira e galopante
Acabava, quase, nos engolindo
E molhava os nossos maillots
Mas foi num desses dias de um dos verões
Onde pela primeira vez
Te desejei tanto
Foi nesse Verão que me confessei
E elaborei tantos poemas de amor
Que me exultei tanto
Que acabei arrebatado
E ainda hoje
Recordo-me dos tremores que senti
Quando te dirigi a palavra
Pela primeira vez!
Mas deixaste-me
E eu deixei-te
Porque um amor assim
Não é real
Um amor assim
É um sonho interminável
Que não acaba jamais
E eu prefiro viver na eternidade do sonho
Do que viver na fugaz realidade
De um amor que,
Mais uma vez,
Se escapa célere
Por entre os dedos das mãos!
Vê
Olha em frente
Ao lado
Para atrás
E mesmo que só amanhã olhes,
Para ver com atenção,
Não te resumas ao óbvio
Fixa-te bem por uma única vez
Como se fosse a última
Para que nada te esqueça
Rir para quê?
Para te enganares a ti próprio?
Para te deixares aparelhar pela boçalidade?
Ou para não te esqueceres que rir
É mesmo o melhor remédio…
Por isso ri
Porque quando ris
Quebras o gelo
Sulcas a terra mais dura
Adubas o solo mais difícil
Levas água ao deserto
Deixas a terra bafienta e insuportável
Recolhes a âncora
E fazes-te ao mar
Navegas nas águas salgadas
Que te dão a verdadeira dimensão da vida
Enquanto ris
Espantas a semiótica mais enfadonha
Enquanto ris
Atreves-te a fugir à morte
Olhar o mar do promontório mais longínquo
Lamber o sal das rochas
Engolir as algas
Que te apagarão a sede
O peixe estremecido que rebola
E exibe seus lombos prateados
Que não me canso de contemplar
Sentir o iodo presente
No ar que respiro
Que parece libertar-se
Naquelas bátegas do mar
Que chocam com violência no paredão
Sentir os odores de um lanche de Verão na praia
Reviver de olhar saudoso
Todos os verões da minha inocência
Sentir que o sol me queimava
Enquanto olhava pelas serranias circundantes
De quando andava de calções
E tinha tantas ambições
Pela vida que se estiraçava à minha frente
Mas, apesar de tudo,
Não me abandones
Não me deixes só
Recordações juvenis
Que me arribam
Quando a chuva e o frio me assola
Remetendo-me prostrado a um canto
No esplendor do Alto da Galafura
Cravo este meu olhar no rio oleado
De tons esverdeados
Sabores acinzentados
Que desliza irrepreensível e silencioso
Pelo meio de uma fenda
Aberta entre duas formosas colinas
Deixo-me enfeitiçar
Pelas palavras do poeta
Que ali teve uma epifania
De arrebatamento
Ali descreveu uma esplendorosa visão do paraíso:
“Um poema geológico”
Descrevendo o trabalho árduo do homem
Que gizou o sonho
E plantou tanta vinha ao correr das serras
E acabou transformando aquela paisagem
Em “Beleza Absoluta”!
A mão que, ufana, busca
O crepúsculo das palavras
Enfileiradas
Como se fossem soldadinhos de chumbo
De um desfile militar enegrecido
Assinalado por minúsculas esferas
Que parecem estrelas a brilhar no firmamento
Mas as palavras buscam adormecer-me
Embalado pela chuva que cai em frente à tua casa
Aos melros e rolas que disputam os mesmos lugares
Aos lamentos que saem dentro de ti
Nesse primeiro café da manhã
Orbito, sem nada fazer,
Sem nada tentar,
Esvoaço por ali adiante
À espera de te ver
De alcançar esse teu coração
Guardado para mim
Desses dois seres que há séculos
Tão bem se conhecem
Que embalam junto às suas janelas
Há procura um do outro
Mas chove
E a mão elegante se encolhe
Pontuada por pequenos cabelos entrincheirados
Que já foram alourados
E aquele minúsculo sinal
Que é como a minha marca
O meu diamante que me enfeita a minha mão
E onde estiveres, essa mão seguir-te-á,
Na praceta, nos campos de ervas,
Ou junto às flores que balançam solitárias no meu jardim
Titãs que não se conhecem
Mas que se amam
E o vento que sopra suave na manhã
O café que saboreias devagar
E a saudade que grita
Pela mão que embala as letras
E os dedos longos que são
De cada uma das letras
E diz-me que regressas
Mas regressas mesmo
Para o leito seguro
Mas não queres tu
Cambiar o seguro pelo inseguro
Não queres tu orbitar
Junto a uma luz que te guie?
Essa fé indomável que tens
É a mesma fé que te faz acreditar
No amor das palavras
Nessa crença que, todas as manhãs,
Lá estarei eu
Lá estarás tu
A sorver cada novo canteiro
Que todos os dias
Cada um de nós planta?
Por mais manhãs que se desenrolem lá fora
Por mais pássaros que adejem
Por mais corvos que avistes
Nessa, ou noutra manhã,
Desejarás avistar-me nesse céu
Em trânsito
Onde nos conhecemos
E eu silenciado
Saro as minhas feridas
Nesse meu orgulho
Que é tanto de heroico
Como de demencial!
Afinal, desperta ou a dormir
Tu és a outra mão
Que falta naquele corpo
Que se esconde e que completa
Cada uma das nossas vidas
É possível, é possível
Amar as palavras
Desejar as mãos
Que se escondem
Por trás das sílabas?
Vão-se as pétalas
Acabam caindo as folhas
Fica a flor
Despida
Cintilante, alegre e perspicaz!
Ninguém lhe tira
O brilho intenso de um simples olhar
A abelha esvoaça em círculos
Observando todas as lindas flores
Que se abrem ao mundo
Acaba pousando
Naquela linda flor que escolheu
Para extrair o néctar
Com que fará o mel mais puro
As abelhas
Que, como eu, vivem
Radiosas, empolgadas e apaixonadas pelo que fazem;
Mas eu, ao contrário,
É na solidão que saro as minhas feridas
E é aí que acabo evocando gratas recordações:
Espanha,
De muito bom vento…
Casamento?
Não cheguei a provar…
ORAÇÃO LITÂNICA
A manhã já nasceu.
Assobé afasta de nós todas as dores,
Todos os males,
Todas as desgraças.
Assobé, faz com que cheguemos a casa, felizes.
PIGMEUS - ÁFRICA EQUATORIAL
Néscio campo de ervas
Que crescem espontâneas
Cães maduros que farejam o odor da carne
Borboletas peregrinas
Que esvoaçam ao encontro dos néctares
Que elas intuem como os mais saborosos
Que se escondem nas flores mais coloridas
Homens que aguardam pelo favónio
Que lhes dará a indelével raça
Dos deuses
Uma ficção que não esmorece nem se atormenta
E mostra-se tão real como a saudade
A paz imperial tarda em voltar
Nem os cavalos regressam
Ao reino de Ricardo III
Nem as três mulheres
Do sabonete de Araxá
Me hipnotizam já
O reino despido
Árvores nuas e feridas
Ramos que roçam uns nos outros
Não sei se mais alguma vez verei luz
Do azul que abria os meus horizontes
Do verde que me animava
Do laranja do sol ao deitar
Agora vejo tudo negro avermelhado
Já nem os azuis sardões
Poderei admirá-los
Quando o sol vier
Apenas as víboras
Aguardam por esse verão que, todavia, não chega
E as águias imperiais
Lá do alto
Que guardam os céus
Atraem os olhares
Das gentes que ali vão para as ver
Das apavoradas aves
Que não sabem o que dizer
Porque já nem os homens as protegem
Mas algo me diz
Que não poderás atormentar-te eternamente
E virá o dia
Em que voltarás a ouvir os melros
Com as suas flautas mágicas
Escutarás os rouxinóis
Em incansáveis melodias
A chamar por ti
Como os sinos chamam as almas
E os rios pululados
Por aqueles odores
Adocicados, anisados
Entrarão numa luzidia manhã
Carregados de bogas e de trutas
E encher-te-ão
A mesa de iguarias
E o vinho tinto a escorrer pelas gargantas
O desejo, outra vez, que o verão não acabe jamais
E não vejo a hora que esse tempo chegue
Ouve-me
Ouve-me apenas
Por enquanto...