AGRESTE INVERNO
“Vai-se o agreste inverno com favónio e a grata primavera,
Carenas secas nos troncos já deslizam,
Nem o gado ao redil se acolhe já, nem o cavador ao fogo.
Não mais alvejam prados sob a geada…”
Extrato do poema “Vai-se o agreste inverno” de Horário, tradução de Vasco Graça Moura.
Gelam-se-me as palmas e os dedos das mãos
E os pensamentos?
Esses levam-me à melancolia
Como um astuto rio que se lança
Como um suicida
Do vazio de um declive
Até alcançar outra vez a água
Purificando-a
Vejo-te, pastor, lá pelos prados
De cajado suspenso no lombo
A remoer em prolongados monólogos
As agruras invernais
Quando vento inoportuno
Frio, agreste e desmancha-prazeres
Sopra sob as suas orelhas
Tento ver onde está favónio
Chamo por ele, pelo vento,
Mas ele não me responde
Está tão longe
Tão ausente
Acabo rendido
Ao calor da chama de uma fogueira
Ouço os badalos de uma ou outra ovelha
Que soa tremido naquele remanso pastoril
Em que agita a cabeça
Para esfacelar uma suculenta erva do solo
Que lhe dará o calor que ela necessita
Para vencer tão triste e azedo inverno
Suspiro pelos idos de março
Mesmo que César seja assassinado às mãos de um Brutus
Mas março significa, de vez, a presença do agradável favónio!
Nesta subida da encosta
Em que vou corando as minhas faces
Em que dedos arroxeados se recusam a ordenhar as vacas
Em que das tetas enregeladas não saí leite
Nem a água, nem o vinho, contentam já
Esta minha alma que, gélida, se arruma a um canto
E mesmo vislumbrando o sol a brilhar
Este não será o sol que me aquecerá as mãos
E muito menos a alma
Que se recusa a pactuar com este frio polar
Porque alma sem chama
É pão sem cereais
É vinho desnaturado
É leite azedado
Enredado
Que não me trará,
Mas adiar-me-á,
O caminho da salvação
E porque te olho
Poeta Horácio
Questionando-me sobre a tua tão grande eloquência
Quando falas tanto de Amor?
Tu que eras, afinal, um penitente amante do sangue de baco!
E a ti tradutor
Que tão belas traduções deixaste em vida
Que tornaste o irresolúvel em resolúvel
E que amaste como ninguém a poesia
Cuja tua verdadeira essência era ser poeta
Que tão belos versos versejastes no idioma de Camões
E que fugias do unanimismo
Como, certo poeta, das mulheres
Que acabou construindo um altar
A um amor espiritual
Mas ausente de amor carnal
Fingidor dos fingidos
Distante dos seus próprios sentimentos
Mas, pastor, que todos os dias sais com o gado
Deixa-me abalançar até essa tua contrição
Leva-me contigo
Aquece-me, como os lindos versos de Horário,
Nesse teu caminhar andante
Com que conduzes as reses
Aos pastos mais suculentos
Que a primavera logo virá
E meu corpo, antes solitário,
Encontrará
Esse sol e essa luz
Que me aquecerão as mãos
E a alma!