ELE
Dá-se com todos
E todos com ele
Por trás daquela mascara de insensível penitente,
Como um daqueles monstros
Que vive afoitado nas trevas das profundezas marinhas,
Percebe-se uma aparência frágil
Há nele uma singela humanidade
Mesclada como uma sobranceria
Mais dramática do que real
Que os gentis mais simples adoram
E, por isso, gostam de o ter sempre próximo
Para além do que se vislumbra do seu território
Onde medram árvores de fruto
E ele todos os dias mira até ao horizonte
Buscando a natureza mais excitante,
Esconde-se lá longe o mar
Pejado de brumas pegajosas
Que mais lhe acentuam dúvidas
De o ter ou não por perto
Mas é no mar onde mergulha
Com tamanha avidez
Como se as suas águas gélidas
Curassem todos os males que o afligem
Escutar os galináceos que, em coro, cantam
Será a boa e a melhor solução
Aquela que melhor lhe agrada
Sabendo que tem ali carne
Que, mastigada, se desfaz
Como a manteiga no pão quente
Ele é aquele que, tantas e tantas vezes, se assoma
Com um amontoado de dúvidas
E acaba mostrando apenas a parte visível do iceberg
Que vive dentro de si
Mas ocultando as profundezas da dimensão benigna
Que flutua imersa no oceano azulado e gélido
Com que se depara no dia-a-dia
E acaba mostrando os cristais
Que,
Dessa sua benignidade,
Emanam dele
Recusa-se, teimosamente, a ficar aterrado
Sobre uma certa imagem maligna
Que muitos creem que é o que ele é
E por isso, todos os dias,
Salta, escapulia-se, corre
Circula num corrupio
De um lado para outro
Mas haverá alguém que o assuste
Mais do que ele de si próprio?
Decanta o vinho
Que conserva em silêncio nas profundezas da sua alma
Como se fosse o guardião da garrafeira do próprio Baco
E não se esquece de, cuidadosamente,
Retirar aquela película exterior que envolve o gargalo da garrafa
E quando, com ostensivo cuidado, saca a rolha
Fareja o carimbo arroxeado do pedaço de cortiça acabado de extrair
E logo aí dá o seu liminar parecer, sobre o que ali possa estar armazenado
Recolhe um copo,
Averigua se nas suas paredes se escondem impressões digitais,
E depois de uma revista milimétrica,
Como se fosse um general a inspecionar as tropas na parada,
Coloca uma pequena porção no fundo do copo
Agita e emulsiona o vinho
Até que se emociona com as lágrimas
Que escorrem no interior do copo
Por fim, engole um dedal de vinho
Envolve-lo nas paredes da boca
Saboreia-lo, mastiga-lo
Até que o vai engolindo tímida e gradualmente
Por fim,
Abre as mãos,
Como se fosse um sacerdote a celebrar missa,
E exclama:
- Um espetáculo...este vinho!