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Artimanhas do Diabo

Artimanhas do Diabo

A AREIA, A ESTOLA E AS BRAGAS *

Nas minhas mãos

E ao alcance dos meus olhos

O embrulho

Um embrulho

Civilizadamente embalado

 

Lá dentro uma caixa de expedição postal  

 

Mas, surpreendente, e que me deixou perplexo

A caixa tinha a envolvê-la

Uma estola…

Sim, esse mesmo paramento litúrgico,

Que simbólico, desafiante e imprevisto

Parecia estar ali para dar um sentido de ritual

Ao que o interior da caixa continha

 

A estola era de um vermelho forte

E tinha a revesti-la

Umas cruzes bordadas a dourado

Que lhe acentuavam

Ainda mais

O mistério do que poderia estar dentro da caixa

 

Pensativo

Impus a mim próprio uma séria reflexão

Até de um ponto de vista teológico

Eu que não sou nada dado a religiosidades!

 

Dobrei a estola

E coloquei-a distante da encomenda

Temendo que ela

Próxima do conteúdo da caixa

Pudesse ter um efeito maligno 

E me fulminasse logo ali

 

Suave e vagarosamente

Dei início à operação

Da abertura da caixa

 

Por fim, abri-a

E reparei que lá dentro

Estava um papel

Com um texto escrito na língua de Cervantes

E com uma assinatura que eu logo identifiquei

Do meu passado longínquo 

 

Afinal, aquela mulher

Que se cruzou comigo

Quando ambos tínhamos os vinte e pouco anos

Havia expedido para mim uma encomenda

Que, além de outros objetos, continha uma carta!

 

A carta que me estava dirigida

Havia sido redigida a tinta azul

Numa caligrafia muito bem desenhada

Como costuma ser a letra das mulheres

E percebia-se tudo

Para além de que o espanhol não só não me assusta

Como domino como bastante fluência,

Graças à autora da carta  

Que no passado me abriu os horizontes

Dando-me a conhecer os poetas e escritores espanhóis

 

Com a leitura

Fiquei a perceber certas coisas do passado

Que não haviam ficado bem esclarecidas

Designadamente, a sua súbita ausência

 

A carta concluía com a explicação do porquê

Para a estranha companhia do interior da caixa

De dois sacos em plástico transparente:

Um com umas “bragas”

E um outro com areia no seu interior

 

Afinal numa viagem a um país próximo a Espanha

E que disputou com ela durante anos uma parte do seu território

Na sua capital política

Naquelas vielas mais estreitas

Onde quase deixamos de avistar

O sol tão intenso e forte

Por aquelas paragens tão próximas ao Saara

Fora ludibriada, juntamente com duas amigas,

Por um pretenso guia

Que a troco de as levar a uma casa de chá mais tradicional

Acabou levando-as a um antro de homens

Que as acabaram por violar selvaticamente!

 

O conteúdo do interior da caixa tinha uma explicação:

A areia era do deserto do Saara

Que ela amava antes mesmo de o conhecer

E que tantas vezes me falara dele

E versejara poemas de amor

Como se os dois fossemos personagens

De uma narrativa das mil e uma noites

 

As “bragas” eram afinal aquelas que ela tinha vestidas

Quando foi violada pelos delinquentes

Que se encontravam no interior

Da pretensa casa de chá!

 

Da estola não explicava o porquê da sua presença ali

Eu que não sou nada dado a explicações do foro teológico

Mas ali naquele contexto tinha um forte cariz religioso

Sobretudo vindo de uma mulher natural de uma cidade

Às portas do Guadalquivir

E que tem na semana santa o auge

Do imenso fervor da sua natural religiosidade!

 

* “braga” em espanhol significa em português cueca, calcinha. 

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