ESPECIALISTAS!
Deito-me, esparramado, no sofá onde habitualmente disfruto das sestas que costumo praticar quando não tenho responsabilidades profissionais ou de outra índole no período após o almoço ou, como se expressam os italianos naquela bela palavra: “pomeriggio”!
E, nessa viagem rodeado de brumas, e com a vã, ou aluviana, glória de permeio que me diminua ou ufane, descanso com a nobreza possível, fixando o meu olhar no sobe e desce da minha pequena embarcação que parece um naufrago a lutar, desesperado, para não ser engolido pelo mar acinzentado, escutando-lhe o seu arfar, os ruídos do seu estômago que submergem à superfície daquele manto imenso de água que de vez em quando desponta à superfície sob a forma de pequenas gotas, procurando estugar o meu processo de adormecimento.
Estou dividido, siderado até, pela dúvida que me assola naquela viagem solitária! Dormindo ou acordado, já nem sei bem se viajo acordado ou se viajo dormindo, a verdade é que não sei para onde vou, não tenho cartas de navegação, telefone satélite ou aparelho de telecomunicação que me permita enviar um pedido de ajuda. Vou-me por ali navegando à bolina, contando apenas com um vento favorável que empurre a minha embarcação até terra; já agora, e o que me desconcerta, desconheço como fui parar àquela minúscula embarcação que navega no meio do mar. Mas porquê no mar e não num rio? Eu que nem sou nem lobo, nem ovelha do mar, nem velho, nem novo marinheiro, o mar para mim só me é agradável o seu avistamento ou então para dar umas braçadas, no verão, nas águas que circundam as praias.
Enquanto divago sobre a minha condição solitária naquele barco, sem saber o que fazer, cada vez mais resignado mas, de alguma forma, esperançado também, pois com tanta literatura de viagens, romances históricos, fantasiados ou até narrativas absurdas consumidas por mim e que estão sempre presentes na minha cabeça laivos de episódios aí descritos que acabam por me iluminar para os perigos que possam estar à espreita em qualquer viagem que empreendo, nem me dei conta que, entretanto, um cagarro se aproximara e acabou plantando-se numa pequena elevação da proa do meu barco. E, sem que eu lhe desse oportunidade para ele piar, berrar ou o que quer que fosse na sua forma própria de expressão, até porque as aves não esperam de nós muito, aliás, não esperam mesmo nada, a ave com aquelas patas de hidroavião, de cor pedrês cinzento-acastanhado e de extenso e vigoroso bico amarelado, espreguiçou-se, pareceu pigarrear e exclamou:
- Olá marinheiro de permeio, indubitável Terráqueo, o que fazes navegando por estas águas?
E eu respondi de imediato até porque estava mesmo a precisar de uma boa conversa com alguém, fatigado de falar com os meus botões!
- Olha…também não sei muito bem o que faço aqui…sinto-me como aquela letra de uma canção muito importante no meu país que diz “Quis saber quem sou/O que faço aqui/Quem me abandonou “ e, por mais que matute, por mais que me esforce, não consigo chegar a nenhuma conclusão! Continuo sem saber o que faço aqui? Quem me abandonou? E também quem sou? E não consigo, não consigo…
- Então, meu amigo, vocês humanos não têm a mania dos “especialistas”? Metem-nos em tudo; para observar as fezes destas pobres aves patudas, para nos anilhar, para nos capturar, medir o nosso tamanho, enfim, até para ver como são as nossas maternidades e creches intrometem-se na intimidade dos nossos ninhos e fotografam, fotografam sem se preocuparem com os direitos de personalidade dos nossos petizes. E o mais interessante é que vocês chamam-lhes de “especialistas” e estão sempre a metê-los nas conversas e, para qualquer coisa, é “especialistas” disto ou daquilo. Alguns há até que se especializam em firmar os seus argumentos com a autoridade dos “especialistas” e acabam por repetir a expressão: “os especialistas dizem…” e usam-nos para fundamentar as decisões que querem tomar ou para afirmar a sua douta razão! Mas eu gostava de saber quem são afinal os “especialistas”? Os nomes, a sua proveniência, origem e, o mais importante, o seu curriculum pois não basta dizer que são “especialistas”, mas sim o que fizeram até hoje? Em que é que se especializaram? E qual o seu grau de rigor científico? Sabe, nós cagarros, passamos uma parte importante do nosso tempo entre dois continentes e temos a sorte de já ter ido à América e de ter primos americanos, e esse contato dá-nos uma outra perspetiva do que são realmente os “especialistas” na América nas várias áreas que dominam. Ali, sabe, os especialistas têm um nome, um rosto, e um prestígio universitário, vocês têm a mania, aliás, as vossas televisões e os jornalistas têm a mania que eles, os jornalistas, é que são a elite da sociedade e por isso são eles que decidem quem deve ir ou não às televisões e chamam pessoas que só porque são representantes de um grupo específico de “especialistas” numa determinada área da medicina, são médicos com uma especialidade, não especialistas cientistas, que é disso que se deve falar quando se metem os ditos “especialistas” nas conversas para fundamentar um raciocínio, e não sindicalistas ou até um que é mais sindicalista do que chefe de uma suposta Ordem e são esses que andam sempre de um lado para o outro a informar ou a deformar a opinião pública porque eles vão às televisão mas não são especialistas cientistas, mas passam a vida a dizer os “especialistas dizem…acham” não é verdade? Ora bem, se é para quem vai às televisões citar os ditos “especialistas”, então por é que os vossos jornalistas não chamam mesmos os tais especialistas cientistas?
Esta conversa sobre “especialistas” perguntar-se-á o meu amigo o que tem a ver comigo? Ora, tem e não tem; eu não sou “especialista”, mas apenas um curioso e um observador que fala a linguagem e conhece bem o mundo dos cagarros, sou como aquele vosso candidato que é calceteiro de profissão e que fala e conhece bem o sentir do povo, mas do que o meu amigo se deve questionar é o que é que eu fiz para estar aqui? E pois na minha modesta observação empírica o que eu acho que aconteceu é que o meu amigo almoçou bem, e bebeu ainda melhor, e resolveu adormecer naquele sofá com a barriga cheia e suturado de álcool que é o que o tem feito delirar de um lado para o outro, de um tema para o outro, e sem encontrar respostas. Por isso, deite-se e adormeça no barco que eu próprio o guiarei a porto seguro...ande vá…confie em mim.
Deitei-me e passado uns momentos estava a acordar do sono profundo que me aprisionara ao sofá.
Mas as palavras do intrometido cagarro continuavam bem presentes na minha cabeça!