Cruzei-me contigo numa estrada
Estreita, abafada e tempestuosa,
Que acabou ditando uma relação tóxica entre nós
E, nessa mesma estrada,
Acabei por te abandonar
Tu continuaste entrincheirada nesse covil que cconstruiste
Qual aracnídea latrodectus mactans
Tragando os homens que vais colecionando
Eu insidiei o passo
Volvi-me às terras seguras
Onde sempre me orientei
Vi-te, a primeira vez,
Nessa estranha estrada
Por mim nunca percorrida
Imóvel
Alva como a neve
Risonha
Atrevida, insinuante e corajosa
Lançaste os teus braços aos meus
Puxei-te para mim
E, naquele instante,
Ficamos ungidos pelos desejos
E tão cingidos ficamos
Como se fossemos um só corpo
Empolgaste-te e embriagaste-te nos meus lábios
E eu nos teus
Saboreei esses teus gemidos incontidos
Com que me presenteaste a noite toda
Parecias um felino a ronronar
Os teus olhos escuros
Sorriam cintilantes
Indubitavelmente lascivos
Obviamente devoradores
Por uns olhos clareados
De película esverdeada
A cobrir o teu olhar
Enchendo-te de pranto
O vazio, esse vazio, que mais de perto eu vi em ti
Nessa tua alma inquieta e desassossegada
Que não desiste de procurar a sua alma gémea
Numa das tuas mãos vi a marca
Que veio do ventre materno
A distinção deixada por uma velhaca mãe
Que apaziguava os demónios
Afogando e enterrando felinos
De mulher flibusteira, má e cruel
Que palavreava frases infindáveis e indecifráveis
Que não se rendia
Que lutava, lutava
Até se vingar!
E eu
Que parecia embebecido
Pelo teu doce ronronar
Abandonei-te naquela mesma estrada
Onde nos havíamos cruzado
Deixei-te na solidão
E na companhia dos fantasmas
Que pululam e resplandecem no teu ser
Essa estrada onde, amiúde, regresso
É já distante passado
De que não me arrependo
Mas volteio e vou rolando sem parar
Mas cruzar-me com a “Sibila”
Foi cumprir um ritual
A que a minha vida me tem proporcionado
Da literatura para a realidade
Mas rever-te, rever-te, outra vez
Desnuda
Rodeada daquela brancura cintilante
A escutar aquele insidioso e suave ronronar
Seria voltar à estrada
Onde te vi
Pela primeira vez
Ó serva de Belzebu
Mulher maligna
Que no que roças,
Nesse teu corpo extasiado e enérgico,
Acabas por reduzir a pó!
* Título de um dos livros da vasta obra de Agustina Bessa Luís
Vão-se os dedos
Ténues e discretos
Dilacerados, gretados
Compridos ou curtos
Delgados ou grossos
Dedos imprescindíveis
Ajudam-nos a somar
As parcelas das nossas vidas
Mas os dedos
Também se ajeitam
Também se equivocam
Também acertam
Também sinalizam
E podem servir
Para evocar o passado que não queremos esquecer
Ou, então, para não evocar o passado que tanto se quer esquecer
Enlevado
Pelo que sob os meus dedos perpassa
Alguns finos fragmentos de porcelana
Doirados fios de luz
Rugosas cavidades que me entristecem
Duras substâncias
Complexos conceitos
Água pura de nascente
Salina água do mar
Desse sal que anima a vida
Dedos que repõem energias
Que tanta falta nos fazem
Em certas ocasiões
Dedos que são casa
Alimento
Pasto dos nossos melhores sentimentos
Beijos ensurdecedores
Fragâncias exóticas
Madeiras do Oriente
Sabonete de Orixás
Candomblé retumbante
Fino vestido branco
Dançando, em transe, sem parar
Mas dedos tresloucados e imundos
Soam de outros mundos
Escurecidos e guisados
Carregados de filamentos de terra
Que nos apaziguam
Com os nossos heroicos finados
Que tantas vezes evocamos
Dedos que são o prolongamento
Dos nossos maiores desejos
Que se agarram a tantas quimeras
Que não se olvidam
Que são nossos
Como nossa é
Uma qualquer ínfima parte do nosso corpo
Mas,
Dedos,
Também podem ser o melhor de nós
Iluminando-nos o caminho
Nesta nossa curta passagem por esta vida
Dedos nossos
Dedos duros
Dedos empedernidos
Dedos guisados e escurecidos
Dedos que um dia
Gizarão perplexidades
E alguém se perguntar-se-á:
A quem pertenceram aqueles defuntos dedos?
Outra vez
Novamente
E já se preanuncia:
Regressaremos à solidão
Outra vez!
Ouvir os repetitivos batimentos
Dos nossos solitários corações
Discorrer, insuflar, definhar
As horas que passam ténues e infindavelmente
Sem sorrisos, sem enganos,
Mas cumprindo exclusivamente
O dever sanitário
Que se irá instaurar
Mais uma vez
E para não esmorecer
Mas vislumbrar prazer
Cá estarei, outra vez,
Longe do torpor
Indefetível no fulgor
À palavra
Fascinante, como sempre,
Contra ventos e marés
Que se vai anunciando ao mundo
Vivendo dentro de cada palavra
Que vou lendo
Impressa nos livros
Para sentir sentindo
Em cada uma delas
Aquilo que vou escrevendo
Naquele branco cenário
De uma solidão acompanhada pela tímida luz do candeeiro
Como se fosse um sonâmbulo a levitar
Ao encontro do âmago da sua alma!
Nestas frias noites de inverno
Busco todas as constelações no firmamento
Todas as razões inexpugnáveis
Que dando a razão
A uma vida dedicada
Com esmerada exigência
Às sílabas
Que tanto me surpreendem e fascinam,
Minhas e dos outros,
Onde aqueço esse meu olhar
Que penetra no olhar dos outros
Frio, insidioso e distante
Que, perdidos na imensidão do deserto,
Se deixam facilmente derrotar
Por uma qualquer tempestade que se anuncia
Leves e quentes são as horas
Na companhia de belas e profundas palavras
Vazias e malditas são as horas
Em que nos desesperamos por nada fazer
O ócio apropria-se de nós
E ficamos matéria amorfa e vácua
Melhor será morrer
Quando não poder estar
No lugar
Da palavra
Que é onde quero estar sempre!
As andorinhas preparam já a grande viagem
Tecem o seu cintilante fato negro
Exercitam-se em voos sob as falésias
Que se espraiam pelos mares do sul
Debaixo daquele inclemente vento
Que em certos dias nos atormentam a razão
Nesta doença coletiva em que todos nos encontramos a navegar
Primavera, sem andorinhas,
É como um texto sem palavras
Um mar sem ondulação
Uma vida sem equação
Um fervor sem paixão
Um inesgotável sofrimento
Que não se apazigua jamais
Nesta demencial e tormentosa
Viagem solitária
Neste oceano incomensurável
Que, parece, não ter mais fim!
Se de frente olhasse
A captar com o coração
Todos os indeléveis vestígios
Que se escondem debaixo daquelas águas
Podia ser muito mais do que feliz!
Se vislumbrasse,
Mesmo que fosse por um instante apenas,
O que as águas daquele pequeno lago
Arredondado e empedrado
Circundado por um fofo tecido verde
Podia ser muito mais do que feliz!
Mas se eu pudesse ver as rochas
A terra negra
Que jazem no fundo do lago,
Pasto cobiçado pelos vermes
Repasto excelente de tantas aves,
Podia ser muito mais que feliz!
Se eu pudesse ver o que se esconde
Para além das sombras que reluzem na água
Podia ser muito mais que feliz!
Se eu pudesse ver
As moedas que jazem no fundo do lago
Cada uma um desejo,
Então,
Arremessaria cada uma das nossas vontades,
Com a paixão de um sacristão
Que retesa a corda do sino
Para anunciar ao mundo as horas,
E podíamos, assim, ser muito mais do que felizes!
Mas se eu pudesse,
De mãos dadas,
Olhar a paisagem contigo
Ver refletida na água do lago
A realidade que é sempre mais bela
Então poderíamos ser, ambos, muito mais do que felizes!
Mas se os dois pudéssemos
Arremessar a mesma moeda em simultâneo
Facetada com os nossos rostos
Supreendendo o mundo
Ensinando-lhe:
Fácil é o amor
Quando imenso
É mútuo o desejo
Ficaríamos, pois, com as palavras
Testemunho dessa nossa paixão,
Como se fosse o amor do rouxinol pela liberdade!
Afinal, ama-me, como eu te amo,
Neste lago apalavrado que ambos construímos
Onde cada palavra é um desejo
E o poema o sentimento que não acaba jamais!
A solidão em que vives
Cala bem fundo no meu coração
Basta-me, comove-me!
Devo-te a imensa delicadeza:
Deslizar os teus dedos pelo meu corpo,
Ainda maiores
Pelas unhas de gel que envergas
Excitas a minha pele, destapas os meus poros
Cobrindo-me de carícias
Deleitando-me,
Por esse amor tão forte
Tão presente e tão obsessivo
Que no silêncio se enche de súplicas;
Como eu gosto de me roçar neste esbelto coqueiro:
Espaduado, elegante e brioso;
Acabo sempre por trepar pelo longo e enrugado tronco
É a árvore que se agita levemente
Despoja-se
Oferece-me a sua bela casca
E quando finalmente a envolvo num imenso beijo
Acabo por olvidar a malignidade que há no mundo!
Não me digas que não
Diz-me, antes, que sim
Ou até se calhar…
Olhei-te com esmero, dedicação e carinho
Chegada a um impasse
Acabaras por erguer um muro
Ludibriada e desgostosa pela vida
Fraquejavas a olhos vistos
De pé, sim, de pé,
Mas muito fragilizada
Esforçada, mourejada até,
Para me lançar um sorriso verdadeiro e sentido
Os teus olhos eclodiam em incontidas lágrimas
Semblante sério,
Acentuadamente desgostoso,
Convenceste-te que ele simplesmente
Te trocara por alguém mais jovem
Ao conheceres os pormenores da traição
Ao escarafunchares
Nas longas noites sem dormir
Desnuda na cama
Esmoreceste, ainda mais,
Como o sol de inverno
Mas com ele deitado
No mesmo leito em que dormias
Desejava-lo ainda mais
Com esse sentimento vigoroso
Da vontade que só a mulher sente
Pelo homem da sua vida
Mas, de cada vez que cedias e te deixavas seduzir pelos encantos dele,
Mostravas, no final, sério arrependimento
Tinhas receio de que tudo aquilo resultasse apenas do desejo carnal dele
De te possuir, apenas,
Mas dele escutavas simplesmente os seus silêncios
Quando, na verdade, o que tu querias ouvir
Eram as suas palavras, razões, pensamentos e projetos futuros
Mas ele continuava com aquele olhar silencioso
Com que olhamos para dentro
Intuíste que os pensamentos dele estavam na outra
Mais jovem e atraente
E sem te deixares cair
Projetaste o futuro só
Decidiste partir
Mas, de cada vez que pensavas em sair,
As pernas tremiam-te
As lágrimas corriam ainda mais pela tua face
Mas tímida e desconfortável
Escondias o teu pranto dele
Como os lobos fogem do afã predatório dos homens
Passaste a fugir das suas investidas noturnas
Antes, sempre tão suscetível,
Perante aquele corpo que tão bem conhecias
E que tanto desejo te infundia
Começavas a fraquejar, a definhar
Não eras mais a mulher segura de si
Mas um frágil ser que se atormentava
Com a simples ideia de uma separação
Mas viste um sol cintilante
Ouviste as palavras ternas e refletidas de um verdadeiro Amigo
E o que antes era a tua força
Essa ideia de te separares
Pela vil traição dele
Os incentivos do Amigo
Acabaram por te animar a questioná-lo
Conseguistes desassossegá-lo
Mostrastes-lhe vileza nas manifestações afetuosas
Até que uma profunda declaração de amor dele
Te fez regressar outra vez à mulher que foste outrora
E nessa noite desabrochaste outra vez
Voltaste a senti-lo todo no teu ventre
Apeteceu-te fundir o teu corpo com o dele
O teu coração incendiou-se
Pelas labaredas que irradiavam do coração dele
Pelas palavras densas e profundas
Que, a cada movimento, penetravam pelos teus olhos dentro
Viste-lhe o brilho, uma e outra vez, do seu olhar
A querer dizer-te o qunto te amava
E na hora em que ele explodiu dentro de ti
Viste uma luz intensa nos seus olhos
Como um vulcão a explodir!
Acabaste a projetar férias, viagens
Outra vez a tua vida cingida à dele
Repastos a dois na companhia de tímidas luzes
E confissões de amor
Como se fossem vozes a acompanhar o canto gregoriano
Terminaste por adormecer enlaçada nos braços dele
Nesse dia confessaste-me a tua conquista
E tão entusiasmada estavas
Que, de cada vez que falavas,
Tremiam-se-te as pernas
E as palavras saiam trémulas e oscilantes
Mas, naquele momento,
Voltei a ver a flor areada
Irradiando múltiplas cores
Prenhe de odores inebriantes
Voltaste a ser a terna miúda
Em busca desse pai desaparecido lá longe
E que, frequentemente,
Ainda se questiona se realmente ele pereceu!
Nas minhas mãos
E ao alcance dos meus olhos
O embrulho
Um embrulho
Civilizadamente embalado
Lá dentro uma caixa de expedição postal
Mas, surpreendente, e que me deixou perplexo
A caixa tinha a envolvê-la
Uma estola…
Sim, esse mesmo paramento litúrgico,
Que simbólico, desafiante e imprevisto
Parecia estar ali para dar um sentido de ritual
Ao que o interior da caixa continha
A estola era de um vermelho forte
E tinha a revesti-la
Umas cruzes bordadas a dourado
Que lhe acentuavam
Ainda mais
O mistério do que poderia estar dentro da caixa
Pensativo
Impus a mim próprio uma séria reflexão
Até de um ponto de vista teológico
Eu que não sou nada dado a religiosidades!
Dobrei a estola
E coloquei-a distante da encomenda
Temendo que ela
Próxima do conteúdo da caixa
Pudesse ter um efeito maligno
E me fulminasse logo ali
Suave e vagarosamente
Dei início à operação
Da abertura da caixa
Por fim, abri-a
E reparei que lá dentro
Estava um papel
Com um texto escrito na língua de Cervantes
E com uma assinatura que eu logo identifiquei
Do meu passado longínquo
Afinal, aquela mulher
Que se cruzou comigo
Quando ambos tínhamos os vinte e pouco anos
Havia expedido para mim uma encomenda
Que, além de outros objetos, continha uma carta!
A carta que me estava dirigida
Havia sido redigida a tinta azul
Numa caligrafia muito bem desenhada
Como costuma ser a letra das mulheres
E percebia-se tudo
Para além de que o espanhol não só não me assusta
Como domino como bastante fluência,
Graças à autora da carta
Que no passado me abriu os horizontes
Dando-me a conhecer os poetas e escritores espanhóis
Com a leitura
Fiquei a perceber certas coisas do passado
Que não haviam ficado bem esclarecidas
Designadamente, a sua súbita ausência
A carta concluía com a explicação do porquê
Para a estranha companhia do interior da caixa
De dois sacos em plástico transparente:
Um com umas “bragas”
E um outro com areia no seu interior
Afinal numa viagem a um país próximo a Espanha
E que disputou com ela durante anos uma parte do seu território
Na sua capital política
Naquelas vielas mais estreitas
Onde quase deixamos de avistar
O sol tão intenso e forte
Por aquelas paragens tão próximas ao Saara
Fora ludibriada, juntamente com duas amigas,
Por um pretenso guia
Que a troco de as levar a uma casa de chá mais tradicional
Acabou levando-as a um antro de homens
Que as acabaram por violar selvaticamente!
O conteúdo do interior da caixa tinha uma explicação:
A areia era do deserto do Saara
Que ela amava antes mesmo de o conhecer
E que tantas vezes me falara dele
E versejara poemas de amor
Como se os dois fossemos personagens
De uma narrativa das mil e uma noites
As “bragas” eram afinal aquelas que ela tinha vestidas
Quando foi violada pelos delinquentes
Que se encontravam no interior
Da pretensa casa de chá!
Da estola não explicava o porquê da sua presença ali
Eu que não sou nada dado a explicações do foro teológico
Mas ali naquele contexto tinha um forte cariz religioso
Sobretudo vindo de uma mulher natural de uma cidade
Às portas do Guadalquivir
E que tem na semana santa o auge
Do imenso fervor da sua natural religiosidade!
* “braga” em espanhol significa em português cueca, calcinha.
Dá-se com todos
E todos com ele
Por trás daquela mascara de insensível penitente,
Como um daqueles monstros
Que vive afoitado nas trevas das profundezas marinhas,
Percebe-se uma aparência frágil
Há nele uma singela humanidade
Mesclada como uma sobranceria
Mais dramática do que real
Que os gentis mais simples adoram
E, por isso, gostam de o ter sempre próximo
Para além do que se vislumbra do seu território
Onde medram árvores de fruto
E ele todos os dias mira até ao horizonte
Buscando a natureza mais excitante,
Esconde-se lá longe o mar
Pejado de brumas pegajosas
Que mais lhe acentuam dúvidas
De o ter ou não por perto
Mas é no mar onde mergulha
Com tamanha avidez
Como se as suas águas gélidas
Curassem todos os males que o afligem
Escutar os galináceos que, em coro, cantam
Será a boa e a melhor solução
Aquela que melhor lhe agrada
Sabendo que tem ali carne
Que, mastigada, se desfaz
Como a manteiga no pão quente
Ele é aquele que, tantas e tantas vezes, se assoma
Com um amontoado de dúvidas
E acaba mostrando apenas a parte visível do iceberg
Que vive dentro de si
Mas ocultando as profundezas da dimensão benigna
Que flutua imersa no oceano azulado e gélido
Com que se depara no dia-a-dia
E acaba mostrando os cristais
Que,
Dessa sua benignidade,
Emanam dele
Recusa-se, teimosamente, a ficar aterrado
Sobre uma certa imagem maligna
Que muitos creem que é o que ele é
E por isso, todos os dias,
Salta, escapulia-se, corre
Circula num corrupio
De um lado para outro
Mas haverá alguém que o assuste
Mais do que ele de si próprio?
Decanta o vinho
Que conserva em silêncio nas profundezas da sua alma
Como se fosse o guardião da garrafeira do próprio Baco
E não se esquece de, cuidadosamente,
Retirar aquela película exterior que envolve o gargalo da garrafa
E quando, com ostensivo cuidado, saca a rolha
Fareja o carimbo arroxeado do pedaço de cortiça acabado de extrair
E logo aí dá o seu liminar parecer, sobre o que ali possa estar armazenado
Recolhe um copo,
Averigua se nas suas paredes se escondem impressões digitais,
E depois de uma revista milimétrica,
Como se fosse um general a inspecionar as tropas na parada,
Coloca uma pequena porção no fundo do copo
Agita e emulsiona o vinho
Até que se emociona com as lágrimas
Que escorrem no interior do copo
Por fim, engole um dedal de vinho
Envolve-lo nas paredes da boca
Saboreia-lo, mastiga-lo
Até que o vai engolindo tímida e gradualmente
Por fim,
Abre as mãos,
Como se fosse um sacerdote a celebrar missa,
E exclama:
- Um espetáculo...este vinho!
A tua voz
Descobria-a
Num tranquilo passeio florestal
Em que,
Delicadamente,
Me perguntaste:
-Que horas são, por favor?
Ao ver-te, ao ouvir a tua voz
Descobri-te
Reavivas-te a memória que todos guardamos
De quando vivemos
Outros tempos
Outras jornadas
De quando fomos felizes
De quando brincávamos no verão
Debaixo da sombra tutelar de uma amora-silvestre
Onde expúnhamos os sentimentos
Naquela linguagem arrebatada de adolescente
E, desde essa altura, deixei de escutar essa voz
Não é que não me fizesse falta
(Um abraço faz sempre tanta falta)
Mas desisti de a procurar
Mas, ouvi-a agora
Vinda de ti
Nesse pranto suspirado
A que eu não podia ficar indiferente
De quando nos escondíamos dos outros
Debaixo da popular espécie
Que todos tratamos por “silva”
E que acabou por enxamear
A nomenclatura dos apelidos lusos
Quiçá, em homenagem a esses encontros
Nesse tempo
Não havia condicionalismos
Demoras
Acelerações
Ou fugacidade
Havia, sim, um claro compromisso
Com os sentimentos um do outro
Riamo-nos com verdadeiro prazer
Enquanto colhíamos amoras
E as dávamos a provar
Um ao outro
E ficávamos com os lábios arroxeados
De tanto comermos amoras!
Desse teu canto que escuto
Rodeado de tão ternas palavras
Vindo desse teu esparso coração
Que soçobrou a uma adolescência feliz e encantada
E se reinventou para se tornar algo mais duro
Mas nunca desistiu de mostrar os bons sentimentos
Que brotam como água de uma nascente
Cansada de ouvir juras
Mas que depressa se esfumaram como pó
Tornaste-te insolvente de afetos
Mas vens-me agora com essa harpa delicada
Perfumada dos odores de um campo florido de lavandas
Que se balançam sob um leve sopro de um vento suave
Que acabam por me despertar e me dar o sustento
Para os dias que aí virão neste agreste,
Como são todos,
Invernos da vida
Que tão mal fazem a pessoas como tu
Como eu
Que acabam definhando-nos
Deixando-nos como as árvores
Na maior parte dos dias de outono e de inverno
Desnudadas, com os ramos caídos,
Mostrando as nossas intrínsecas debilidades
Que acabam por nos fragilizar
Mas depressa, estes dois se encontram debaixo de uma qualquer árvore
Que os inspirará, outra vez,
Para a palavra
Para o clamor das emoções que ela sempre contém
Que os voltará a juntar
Numa qualquer sílaba, frase ou verso
Que, rodeado de uma intrincada teia de signos,
Nos ajudará a descobrir, ainda mais,
Quem foste tu?
Tal como eu em relação a mim!
Dispersos grãos de areia
Que formam uma fofa camada
Onde nos deitamos deliciados
A ver, emocionados, nesta praia que é só nossa
O rubro e desafogueado sol
De um fim de tarde de verão
Acabamos por evocar
O tempo em que nos sentávamos debaixo da provecta e inusitada “silva”
De quando disputávamos aos melros
As delicadas amoras
E as comíamos de forma inaudita!
Desde aí, nunca mais comi amoras
Mas, ao ouvir-te,
Voltei a sentir as minúsculas grainhas
E a saborear a polpa doce de uma amora-silvestre!
“Vai-se o agreste inverno com favónio e a grata primavera,
Carenas secas nos troncos já deslizam,
Nem o gado ao redil se acolhe já, nem o cavador ao fogo.
Não mais alvejam prados sob a geada…”
Extrato do poema “Vai-se o agreste inverno” de Horário, tradução de Vasco Graça Moura.
Gelam-se-me as palmas e os dedos das mãos
E os pensamentos?
Esses levam-me à melancolia
Como um astuto rio que se lança
Como um suicida
Do vazio de um declive
Até alcançar outra vez a água
Purificando-a
Vejo-te, pastor, lá pelos prados
De cajado suspenso no lombo
A remoer em prolongados monólogos
As agruras invernais
Quando vento inoportuno
Frio, agreste e desmancha-prazeres
Sopra sob as suas orelhas
Tento ver onde está favónio
Chamo por ele, pelo vento,
Mas ele não me responde
Está tão longe
Tão ausente
Acabo rendido
Ao calor da chama de uma fogueira
Ouço os badalos de uma ou outra ovelha
Que soa tremido naquele remanso pastoril
Em que agita a cabeça
Para esfacelar uma suculenta erva do solo
Que lhe dará o calor que ela necessita
Para vencer tão triste e azedo inverno
Suspiro pelos idos de março
Mesmo que César seja assassinado às mãos de um Brutus
Mas março significa, de vez, a presença do agradável favónio!
Nesta subida da encosta
Em que vou corando as minhas faces
Em que dedos arroxeados se recusam a ordenhar as vacas
Em que das tetas enregeladas não saí leite
Nem a água, nem o vinho, contentam já
Esta minha alma que, gélida, se arruma a um canto
E mesmo vislumbrando o sol a brilhar
Este não será o sol que me aquecerá as mãos
E muito menos a alma
Que se recusa a pactuar com este frio polar
Porque alma sem chama
É pão sem cereais
É vinho desnaturado
É leite azedado
Enredado
Que não me trará,
Mas adiar-me-á,
O caminho da salvação
E porque te olho
Poeta Horácio
Questionando-me sobre a tua tão grande eloquência
Quando falas tanto de Amor?
Tu que eras, afinal, um penitente amante do sangue de baco!
E a ti tradutor
Que tão belas traduções deixaste em vida
Que tornaste o irresolúvel em resolúvel
E que amaste como ninguém a poesia
Cuja tua verdadeira essência era ser poeta
Que tão belos versos versejastes no idioma de Camões
E que fugias do unanimismo
Como, certo poeta, das mulheres
Que acabou construindo um altar
A um amor espiritual
Mas ausente de amor carnal
Fingidor dos fingidos
Distante dos seus próprios sentimentos
Mas, pastor, que todos os dias sais com o gado
Deixa-me abalançar até essa tua contrição
Leva-me contigo
Aquece-me, como os lindos versos de Horário,
Nesse teu caminhar andante
Com que conduzes as reses
Aos pastos mais suculentos
Que a primavera logo virá
E meu corpo, antes solitário,
Encontrará
Esse sol e essa luz
Que me aquecerão as mãos
E a alma!