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Artimanhas do Diabo

Artimanhas do Diabo

A SIBILA *

Cruzei-me contigo numa estrada

Estreita, abafada e tempestuosa,  

Que acabou ditando uma relação tóxica entre nós  

E, nessa mesma estrada,

Acabei por te abandonar

 

Tu continuaste entrincheirada nesse covil que cconstruiste 

Qual aracnídea latrodectus mactans

Tragando os homens que vais colecionando

 

Eu insidiei o passo

Volvi-me às terras seguras

Onde sempre me orientei  

 

Vi-te, a primeira vez,

Nessa estranha estrada

Por mim nunca percorrida  

Imóvel

Alva como a neve

Risonha

Atrevida, insinuante e corajosa   

Lançaste os teus braços aos meus

Puxei-te para mim

E, naquele instante,

Ficamos ungidos pelos desejos

E tão cingidos ficamos

Como se fossemos um só corpo

 

Empolgaste-te e embriagaste-te nos meus lábios

E eu nos teus

Saboreei esses teus gemidos incontidos

Com que me presenteaste a noite toda

Parecias um felino a ronronar

 

Os teus olhos escuros

Sorriam cintilantes

Indubitavelmente lascivos

Obviamente devoradores

Por uns olhos clareados

De película esverdeada   

A cobrir o teu olhar

Enchendo-te de pranto

O vazio, esse vazio, que mais de perto eu vi em ti

Nessa tua alma inquieta e desassossegada

Que não desiste de procurar a sua alma gémea

 

Numa das tuas mãos vi a marca

Que veio do ventre materno

A distinção deixada por uma velhaca mãe

Que apaziguava os demónios

Afogando e enterrando felinos

De mulher flibusteira, má e cruel

Que palavreava frases infindáveis e indecifráveis

Que não se rendia

Que lutava, lutava

Até se vingar!

 

E eu

Que parecia embebecido

Pelo teu doce ronronar

Abandonei-te naquela mesma estrada

Onde nos havíamos cruzado

Deixei-te na solidão

E na companhia dos fantasmas

Que pululam e resplandecem no teu ser  

 

Essa estrada onde, amiúde, regresso

É já distante passado

De que não me arrependo

Mas volteio e vou rolando sem parar 

 

Mas cruzar-me com a “Sibila”  

Foi cumprir um ritual

A que a minha vida me tem proporcionado 

Da literatura para a realidade

 

Mas rever-te, rever-te, outra vez

Desnuda

Rodeada daquela brancura cintilante

A escutar aquele insidioso e suave ronronar

Seria voltar à estrada

Onde te vi

Pela primeira vez

Ó serva de Belzebu

 

Mulher maligna 

Que no que roças,

Nesse teu corpo extasiado e enérgico,

Acabas por reduzir a pó! 

* Título de um dos livros da vasta obra de Agustina Bessa Luís

OS DEDOS

Vão-se os dedos

Ténues e discretos

Dilacerados, gretados

Compridos ou curtos

Delgados ou grossos

 

Dedos imprescindíveis

Ajudam-nos a somar

As parcelas das nossas vidas

 

Mas os dedos

Também se ajeitam

Também se equivocam

Também acertam

Também sinalizam

E podem servir

Para evocar o passado que não queremos esquecer

Ou, então, para não evocar o passado que tanto se quer esquecer

 

Enlevado

Pelo que sob os meus dedos perpassa

Alguns finos fragmentos de porcelana

Doirados fios de luz

Rugosas cavidades que me entristecem  

Duras substâncias

Complexos conceitos

Água pura de nascente

Salina água do mar

Desse sal que anima a vida

 

Dedos que repõem energias

Que tanta falta nos fazem

Em certas ocasiões

 

Dedos que são casa

Alimento

Pasto dos nossos melhores sentimentos

Beijos ensurdecedores

Fragâncias exóticas

Madeiras do Oriente

Sabonete de Orixás

Candomblé retumbante

Fino vestido branco

Dançando, em transe, sem parar  

 

Mas dedos tresloucados e imundos

Soam de outros mundos

Escurecidos e guisados

Carregados de filamentos de terra

Que nos apaziguam

Com os nossos heroicos finados

Que tantas vezes evocamos

 

Dedos que são o prolongamento

Dos nossos maiores desejos

Que se agarram a tantas quimeras

Que não se olvidam

Que são nossos

Como nossa é

Uma qualquer ínfima parte do nosso corpo

 

Mas,

Dedos,

Também podem ser o melhor de nós

Iluminando-nos o caminho

Nesta nossa curta passagem por esta vida

 

Dedos nossos

Dedos duros

Dedos empedernidos

Dedos guisados e escurecidos

 

Dedos que um dia  

Gizarão perplexidades

E alguém se perguntar-se-á:

A quem pertenceram aqueles defuntos dedos?

 

      

 

 

OUTRA VEZ ESTAREMOS SÓS

Outra vez

Novamente

E já se preanuncia:

Regressaremos à solidão

Outra vez!  

 

Ouvir os repetitivos batimentos  

Dos nossos solitários corações

Discorrer, insuflar, definhar 

 

As horas que passam ténues e infindavelmente  

Sem sorrisos, sem enganos,

Mas cumprindo exclusivamente

O dever sanitário

Que se irá instaurar  

Mais uma vez 

 

E para não esmorecer

Mas vislumbrar prazer

Cá estarei, outra vez,

Longe do torpor

Indefetível no fulgor

À palavra

Fascinante, como sempre,  

Contra ventos e marés

Que se vai anunciando ao mundo

 

Vivendo dentro de cada palavra

Que vou lendo

Impressa nos livros

Para sentir sentindo   

Em cada uma delas

Aquilo que vou escrevendo

Naquele branco cenário

De uma solidão acompanhada pela tímida luz do candeeiro

Como se fosse um sonâmbulo a levitar

Ao encontro do âmago da sua alma!     

 

Nestas frias noites de inverno

Busco todas as constelações no firmamento

Todas as razões inexpugnáveis

Que dando a razão

A uma vida dedicada

Com esmerada exigência

Às sílabas

Que tanto me surpreendem e fascinam,

Minhas e dos outros,

Onde aqueço esse meu olhar

Que penetra no olhar dos outros

Frio, insidioso e distante

Que, perdidos na imensidão do deserto,

Se deixam facilmente derrotar

Por uma qualquer tempestade que se anuncia

 

Leves e quentes são as horas

Na companhia de belas e profundas palavras

 

Vazias e malditas são as horas  

Em que nos desesperamos por nada fazer

O ócio apropria-se de nós

E ficamos matéria amorfa e vácua

 

Melhor será morrer 

Quando não poder estar

No lugar

Da palavra

Que é onde quero estar sempre!   

 

As andorinhas preparam já a grande viagem

Tecem o seu cintilante fato negro

Exercitam-se em voos sob as falésias

Que se espraiam pelos mares do sul

Debaixo daquele inclemente vento

 Que em certos dias nos atormentam a razão

Nesta doença coletiva em que todos nos encontramos a navegar

 

Primavera, sem andorinhas,

É como um texto sem palavras

Um mar sem ondulação

Uma vida sem equação

Um fervor sem paixão

Um inesgotável sofrimento

Que não se apazigua jamais

Nesta demencial e tormentosa

Viagem solitária

Neste oceano incomensurável

Que, parece, não ter mais fim!

O LAGO

Se de frente olhasse  

A captar com o coração

Todos os indeléveis vestígios   

Que se escondem debaixo daquelas águas

Podia ser muito mais do que feliz!

 

Se vislumbrasse,  

Mesmo que fosse por um instante apenas,  

O que as águas daquele pequeno lago

Arredondado e empedrado

Circundado por um fofo tecido verde

Podia ser muito mais do que feliz!

 

Mas se eu pudesse ver as rochas

A terra negra

Que jazem no fundo do lago, 

Pasto cobiçado pelos vermes

Repasto excelente de tantas aves, 

Podia ser muito mais que feliz!

 

Se eu pudesse ver o que se esconde

Para além das sombras que reluzem na água

Podia ser muito mais que feliz!

 

Se eu pudesse ver

As moedas que jazem no fundo do lago

Cada uma um desejo,

Então,

Arremessaria cada uma das nossas vontades,

Com a paixão de um sacristão

Que retesa a corda do sino

Para anunciar ao mundo as horas,

E podíamos, assim, ser muito mais do que felizes!

 

Mas se eu pudesse,

De mãos dadas,

Olhar a paisagem contigo

Ver refletida na água do lago

A realidade que é sempre mais bela

Então poderíamos ser, ambos, muito mais do que felizes!

 

Mas se os dois pudéssemos

Arremessar a mesma moeda em simultâneo

Facetada com os nossos rostos

Supreendendo o mundo

Ensinando-lhe:

Fácil é o amor

Quando imenso

É mútuo o desejo

 

Ficaríamos, pois, com as palavras

Testemunho dessa nossa paixão,

Como se fosse o amor do rouxinol pela liberdade!

 

Afinal, ama-me, como eu te amo,

Neste lago apalavrado que ambos construímos

Onde cada palavra é um desejo

E o poema o sentimento que não acaba jamais!

 

MURMÚRIO

 

A solidão em que vives

Cala bem fundo no meu coração

Basta-me, comove-me!

Devo-te a imensa delicadeza:

Deslizar os teus dedos pelo meu corpo,

Ainda maiores 

Pelas unhas de gel que envergas 

Excitas a minha pele, destapas os meus poros

Cobrindo-me de carícias

Deleitando-me,

Por esse amor tão forte

Tão presente e tão obsessivo

Que no silêncio se enche de súplicas;

Como eu gosto de me roçar neste esbelto coqueiro:

Espaduado, elegante e brioso;

Acabo sempre por trepar pelo longo e enrugado tronco  

É a árvore que se agita levemente

Despoja-se

Oferece-me a sua bela casca

E quando finalmente a envolvo num imenso beijo

Acabo por olvidar a malignidade que há no mundo!

AREIA FRÁGIL

Não me digas que não

Diz-me, antes, que sim

Ou até se calhar…

 

Olhei-te com esmero, dedicação e carinho

Chegada a um impasse

Acabaras por erguer um muro

 

Ludibriada e desgostosa pela vida

Fraquejavas a olhos vistos   

De pé, sim, de pé,

Mas muito fragilizada

Esforçada, mourejada até,

Para me lançar um sorriso verdadeiro e sentido

 

Os teus olhos eclodiam em incontidas lágrimas

Semblante sério,

Acentuadamente desgostoso,  

Convenceste-te que ele simplesmente

Te trocara por alguém mais jovem

 

Ao conheceres os pormenores da traição

Ao escarafunchares

Nas longas noites sem dormir

Desnuda na cama

Esmoreceste, ainda mais,  

Como o sol de inverno

 

Mas com ele deitado

No mesmo leito em que dormias

Desejava-lo ainda mais

Com esse sentimento vigoroso

Da vontade que só a mulher sente

Pelo homem da sua vida    

 

Mas, de cada vez que cedias e te deixavas seduzir pelos encantos dele,

Mostravas, no final, sério arrependimento  

Tinhas receio de que tudo aquilo resultasse apenas do desejo carnal dele

De te possuir, apenas,

 

Mas dele escutavas simplesmente os seus silêncios

Quando, na verdade, o que tu querias ouvir

Eram as suas palavras, razões, pensamentos e projetos futuros

Mas ele continuava com aquele olhar silencioso

Com que olhamos para dentro

Intuíste que os pensamentos dele estavam na outra

Mais jovem e atraente

 

E sem te deixares cair

Projetaste o futuro só

Decidiste partir

Mas, de cada vez que pensavas em sair,

As pernas tremiam-te

As lágrimas corriam ainda mais pela tua face

Mas tímida e desconfortável

Escondias o teu pranto dele

Como os lobos fogem do afã predatório dos homens

 

Passaste a fugir das suas investidas noturnas

Antes, sempre tão suscetível,  

Perante aquele corpo que tão bem conhecias  

E que tanto desejo te infundia

 

Começavas a fraquejar, a definhar

Não eras mais a mulher segura de si

Mas um frágil ser que se atormentava

Com a simples ideia de uma separação

 

Mas viste um sol cintilante

Ouviste as palavras ternas e refletidas de um verdadeiro Amigo

E o que antes era a tua força

Essa ideia de te separares

Pela vil traição dele

Os incentivos do Amigo

Acabaram por te animar a questioná-lo  

Conseguistes desassossegá-lo

Mostrastes-lhe vileza nas manifestações afetuosas

 Até que uma profunda declaração de amor dele

Te fez regressar outra vez à mulher que foste outrora

 

E nessa noite desabrochaste outra vez

Voltaste a senti-lo todo no teu ventre

Apeteceu-te fundir o teu corpo com o dele

O teu coração incendiou-se

Pelas labaredas que irradiavam do coração dele

Pelas palavras densas e profundas

Que, a cada movimento, penetravam pelos teus olhos dentro

Viste-lhe o brilho, uma e outra vez, do seu olhar 

A querer dizer-te o qunto te amava

E na hora em que ele explodiu dentro de ti

Viste uma luz intensa nos seus olhos

Como um vulcão a explodir!

 

Acabaste a projetar férias, viagens

Outra vez a tua vida cingida à dele

Repastos a dois na companhia de tímidas luzes

E confissões de amor

Como se fossem vozes a acompanhar o canto gregoriano

Terminaste por adormecer enlaçada nos braços dele

 

 

Nesse dia confessaste-me a tua conquista

E tão entusiasmada estavas

Que, de cada vez que falavas,  

Tremiam-se-te as pernas

 E as palavras saiam trémulas e oscilantes

Mas, naquele momento,

Voltei a ver a flor areada

Irradiando múltiplas cores

Prenhe de odores inebriantes  

Voltaste a ser a terna miúda

Em busca desse pai desaparecido lá longe

E que, frequentemente,

Ainda se questiona se realmente ele pereceu!

 

A AREIA, A ESTOLA E AS BRAGAS *

Nas minhas mãos

E ao alcance dos meus olhos

O embrulho

Um embrulho

Civilizadamente embalado

 

Lá dentro uma caixa de expedição postal  

 

Mas, surpreendente, e que me deixou perplexo

A caixa tinha a envolvê-la

Uma estola…

Sim, esse mesmo paramento litúrgico,

Que simbólico, desafiante e imprevisto

Parecia estar ali para dar um sentido de ritual

Ao que o interior da caixa continha

 

A estola era de um vermelho forte

E tinha a revesti-la

Umas cruzes bordadas a dourado

Que lhe acentuavam

Ainda mais

O mistério do que poderia estar dentro da caixa

 

Pensativo

Impus a mim próprio uma séria reflexão

Até de um ponto de vista teológico

Eu que não sou nada dado a religiosidades!

 

Dobrei a estola

E coloquei-a distante da encomenda

Temendo que ela

Próxima do conteúdo da caixa

Pudesse ter um efeito maligno 

E me fulminasse logo ali

 

Suave e vagarosamente

Dei início à operação

Da abertura da caixa

 

Por fim, abri-a

E reparei que lá dentro

Estava um papel

Com um texto escrito na língua de Cervantes

E com uma assinatura que eu logo identifiquei

Do meu passado longínquo 

 

Afinal, aquela mulher

Que se cruzou comigo

Quando ambos tínhamos os vinte e pouco anos

Havia expedido para mim uma encomenda

Que, além de outros objetos, continha uma carta!

 

A carta que me estava dirigida

Havia sido redigida a tinta azul

Numa caligrafia muito bem desenhada

Como costuma ser a letra das mulheres

E percebia-se tudo

Para além de que o espanhol não só não me assusta

Como domino como bastante fluência,

Graças à autora da carta  

Que no passado me abriu os horizontes

Dando-me a conhecer os poetas e escritores espanhóis

 

Com a leitura

Fiquei a perceber certas coisas do passado

Que não haviam ficado bem esclarecidas

Designadamente, a sua súbita ausência

 

A carta concluía com a explicação do porquê

Para a estranha companhia do interior da caixa

De dois sacos em plástico transparente:

Um com umas “bragas”

E um outro com areia no seu interior

 

Afinal numa viagem a um país próximo a Espanha

E que disputou com ela durante anos uma parte do seu território

Na sua capital política

Naquelas vielas mais estreitas

Onde quase deixamos de avistar

O sol tão intenso e forte

Por aquelas paragens tão próximas ao Saara

Fora ludibriada, juntamente com duas amigas,

Por um pretenso guia

Que a troco de as levar a uma casa de chá mais tradicional

Acabou levando-as a um antro de homens

Que as acabaram por violar selvaticamente!

 

O conteúdo do interior da caixa tinha uma explicação:

A areia era do deserto do Saara

Que ela amava antes mesmo de o conhecer

E que tantas vezes me falara dele

E versejara poemas de amor

Como se os dois fossemos personagens

De uma narrativa das mil e uma noites

 

As “bragas” eram afinal aquelas que ela tinha vestidas

Quando foi violada pelos delinquentes

Que se encontravam no interior

Da pretensa casa de chá!

 

Da estola não explicava o porquê da sua presença ali

Eu que não sou nada dado a explicações do foro teológico

Mas ali naquele contexto tinha um forte cariz religioso

Sobretudo vindo de uma mulher natural de uma cidade

Às portas do Guadalquivir

E que tem na semana santa o auge

Do imenso fervor da sua natural religiosidade!

 

* “braga” em espanhol significa em português cueca, calcinha. 

ELE

Dá-se com todos

E todos com ele

 

Por trás daquela mascara de insensível penitente,

Como um daqueles monstros

Que vive afoitado nas trevas das profundezas marinhas,

Percebe-se uma aparência frágil

 

Há nele uma singela humanidade

Mesclada como uma sobranceria

Mais dramática do que real 

Que os gentis mais simples adoram

E, por isso, gostam de o ter sempre próximo

 

Para além do que se vislumbra do seu território

Onde medram árvores de fruto

E ele todos os dias mira até ao horizonte

Buscando a natureza mais excitante,

Esconde-se lá longe o mar

Pejado de brumas pegajosas

Que mais lhe acentuam dúvidas

De o ter ou não por perto

 

Mas é no mar onde mergulha

Com tamanha avidez

Como se as suas águas gélidas

Curassem todos os males que o afligem

 

Escutar os galináceos que, em coro, cantam

Será a boa e a melhor solução

Aquela que melhor lhe agrada

Sabendo que tem ali carne

Que, mastigada, se desfaz

Como a manteiga no pão quente

 

Ele é aquele que, tantas e tantas vezes, se assoma

Com um amontoado de dúvidas 

E acaba mostrando apenas a parte visível do iceberg

Que vive dentro de si

Mas ocultando as profundezas da dimensão benigna

Que flutua imersa no oceano azulado e gélido

Com que se depara no dia-a-dia  

E acaba mostrando os cristais

Que,

Dessa sua benignidade,

Emanam dele

 

Recusa-se, teimosamente, a ficar aterrado

Sobre uma certa imagem maligna   

Que muitos creem que é o que ele é 

 

E por isso, todos os dias,

Salta, escapulia-se, corre

Circula num corrupio

De um lado para outro

 

Mas haverá alguém que o assuste

Mais do que ele de si próprio?

 

Decanta o vinho

Que conserva em silêncio nas profundezas da sua alma 

Como se fosse o guardião da garrafeira do próprio Baco 

E não se esquece de, cuidadosamente,

Retirar aquela película exterior que envolve o gargalo da garrafa 

E quando, com ostensivo cuidado, saca a rolha

Fareja o carimbo arroxeado do pedaço de cortiça acabado de extrair

E logo aí dá o seu liminar parecer, sobre o que ali possa estar armazenado

 

Recolhe um copo,

Averigua se nas suas paredes se escondem impressões digitais,

E depois de uma revista milimétrica,

Como se fosse um general a inspecionar as tropas na parada,

Coloca uma pequena porção no fundo do copo

Agita e emulsiona o vinho

Até que se emociona com as lágrimas

Que escorrem no interior do copo

 

Por fim, engole um dedal de vinho

Envolve-lo nas paredes da boca

Saboreia-lo, mastiga-lo

Até que o vai engolindo tímida e gradualmente  

 

Por fim,

Abre as mãos,

Como se fosse um sacerdote a celebrar missa,

E exclama:

- Um espetáculo...este vinho!

 

DESSE TEU ENCANTO DE CETIM

A tua voz

Descobria-a

Num tranquilo passeio florestal

Em que,

Delicadamente,

Me perguntaste:

-Que horas são, por favor?

 

Ao ver-te, ao ouvir a tua voz

Descobri-te

Reavivas-te a memória que todos guardamos

De quando vivemos

Outros tempos

Outras jornadas

De quando fomos felizes

De quando brincávamos no verão

Debaixo da sombra tutelar de uma amora-silvestre

Onde expúnhamos os sentimentos

Naquela linguagem arrebatada de adolescente

 

E, desde essa altura, deixei de escutar essa voz

Não é que não me fizesse falta

(Um abraço faz sempre tanta falta)

Mas desisti de a procurar

 

Mas, ouvi-a agora

Vinda de ti

Nesse pranto suspirado

A que eu não podia ficar indiferente

 

De quando nos escondíamos dos outros

Debaixo da popular espécie

Que todos tratamos por “silva”

E que acabou por enxamear

A nomenclatura dos apelidos lusos

Quiçá, em homenagem a esses encontros

 

Nesse tempo

Não havia condicionalismos

Demoras

Acelerações

Ou fugacidade

 

Havia, sim, um claro compromisso

Com os sentimentos um do outro

Riamo-nos com verdadeiro prazer

Enquanto colhíamos amoras

E as dávamos a provar

Um ao outro

E ficávamos com os lábios arroxeados

De tanto comermos amoras!  

 

Desse teu canto que escuto

Rodeado de tão ternas palavras

Vindo desse teu esparso coração

Que soçobrou a uma adolescência feliz e encantada

E se reinventou para se tornar algo mais duro

Mas nunca desistiu de mostrar os bons sentimentos

Que brotam como água de uma nascente 

 

Cansada de ouvir juras

Mas que depressa se esfumaram como pó  

Tornaste-te insolvente de afetos 

 

Mas vens-me agora com essa harpa delicada  

Perfumada dos odores de um campo florido de lavandas 

Que se balançam sob um leve sopro de um vento suave

Que acabam por me despertar e me dar o sustento

Para os dias que aí virão neste agreste,

Como são todos,

Invernos da vida

Que tão mal fazem a pessoas como tu

Como eu

Que acabam definhando-nos

Deixando-nos como as árvores

Na maior parte dos dias de outono e de inverno

Desnudadas, com os ramos caídos,

Mostrando as nossas intrínsecas debilidades

Que acabam por nos fragilizar

 

Mas depressa, estes dois se encontram debaixo de uma qualquer árvore

Que os inspirará, outra vez,

Para a palavra

Para o clamor das emoções que ela sempre contém  

Que os voltará a juntar

Numa qualquer sílaba, frase ou verso

Que, rodeado de uma intrincada teia de signos,

Nos ajudará a descobrir, ainda mais,

Quem foste tu?

Tal como eu em relação a mim!

 

Dispersos grãos de areia

Que formam uma fofa camada

Onde nos deitamos deliciados

A ver, emocionados, nesta praia que é só nossa

O rubro e desafogueado sol

De um fim de tarde de verão

 

Acabamos por evocar

O tempo em que nos sentávamos debaixo da provecta e inusitada “silva”

De quando disputávamos aos melros

As delicadas amoras

E as comíamos de forma inaudita!

 

Desde aí, nunca mais comi amoras

Mas, ao ouvir-te,

Voltei a sentir as minúsculas grainhas

E a saborear a polpa doce de uma amora-silvestre!

 

 

 

 

AGRESTE INVERNO

Vai-se o agreste inverno com favónio e a grata primavera,

Carenas secas nos troncos já deslizam,

Nem o gado ao redil se acolhe já, nem o cavador ao fogo.

Não mais alvejam prados sob a geada…”

Extrato do poema “Vai-se o agreste inverno” de Horário, tradução de Vasco Graça Moura.

 

 

Gelam-se-me as palmas e os dedos das mãos

 

E os pensamentos?

Esses levam-me à melancolia

Como um astuto rio que se lança

Como um suicida

Do vazio de um declive  

Até alcançar outra vez a água

Purificando-a

 

Vejo-te, pastor, lá pelos prados

De cajado suspenso no lombo

A remoer em prolongados monólogos

As agruras invernais

Quando vento inoportuno

Frio, agreste e desmancha-prazeres

Sopra sob as suas orelhas  

 

Tento ver onde está favónio

Chamo por ele, pelo vento,

Mas ele não me responde

Está tão longe

Tão ausente

Acabo rendido

Ao calor da chama de uma fogueira

 

Ouço os badalos de uma ou outra ovelha

Que soa tremido naquele remanso pastoril

Em que agita a cabeça

Para esfacelar uma suculenta erva do solo

Que lhe dará o calor que ela necessita

Para vencer tão triste e azedo inverno

 

Suspiro pelos idos de março

Mesmo que César seja assassinado às mãos de um Brutus   

Mas março significa, de vez, a presença do agradável favónio!

 

Nesta subida da encosta

Em que vou corando as minhas faces

Em que dedos arroxeados se recusam a ordenhar as vacas

Em que das tetas enregeladas não saí leite

Nem a água, nem o vinho, contentam já

Esta minha alma que, gélida, se arruma a um canto

E mesmo vislumbrando o sol a brilhar

Este não será o sol que me aquecerá as mãos

E muito menos a alma

Que se recusa a pactuar com este frio polar

Porque alma sem chama

É pão sem cereais

É vinho desnaturado

É leite azedado

Enredado

Que não me trará, 

Mas adiar-me-á,

O caminho da salvação

 

E porque te olho

Poeta Horácio

Questionando-me sobre a tua tão grande eloquência

Quando falas tanto de Amor?

Tu que eras, afinal, um penitente amante do sangue de baco!

E a ti tradutor

Que tão belas traduções deixaste em vida

Que tornaste o irresolúvel em resolúvel

E que amaste como ninguém a poesia

Cuja tua verdadeira essência era ser poeta

Que tão belos versos versejastes no idioma de Camões

E que fugias do unanimismo  

Como, certo poeta, das mulheres

Que acabou construindo um altar

A um amor espiritual

Mas ausente de amor carnal

Fingidor dos fingidos

Distante dos seus próprios sentimentos

 

Mas, pastor, que todos os dias sais com o gado

Deixa-me abalançar até essa tua contrição 

Leva-me contigo

Aquece-me, como os lindos versos de Horário,

Nesse teu caminhar andante

Com que conduzes as reses

Aos pastos mais suculentos

 

Que a primavera logo virá

E meu corpo, antes solitário,

Encontrará

Esse sol e essa luz

Que me aquecerão as mãos

E a alma!

 

 

     

 

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