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Artimanhas do Diabo

Artimanhas do Diabo

A AVÓ QUE ESCREVIA CARTAS DE AMOR

Nascida nos finais do século dezanove, teve uma existência sofrida como a da generalidade dos seus contemporâneos.

Conseguiu, porque era de uma família remediada e cujos elementos revelavam capacidades cognitivas, acabar a instrução primária, a única e singela aspiração que a maioria das mulheres desta época podiam almejar pois os estudos mais eminentes estavam exclusivamente destinados aos, escassos, homens cujas famílias tinham dinheiro que lhe possibilitasse tamanho luxo ou então ao talento intrínseco que demonstrassem na aprendizagem das matérias.

Numa fase da sua vida, hoje demasiado precoce, viu-se confrontada com uma prole de meia dezena de petizes para alimentar, pois enviuvou e teve que se reinventar para pagar as dívidas de um marido que tinha tanto de bom, de crente na palavra dos outros, como de amor pela bebida, que acabou por o fulminar com cinquenta e poucos anos de vida. 

A avó arregaçou as mangas, conseguiu extrair forças onde pensaria que elas não existiam, tornando-se uma hábil comerciante: transacionava tudo, comprando a baixo custo e vendia bem e a bom preço! Parecia um comerciante turco ou libanês tão habitual nos romances como na vida do Brasil. Incansável conversadora, sagaz nos negócios, hábil na forma como conseguia ter um ascendente (enquanto as forças lhe permitiram) sobre os seus mais próximos e também sobre os que se deslocavam à sua residência, sempre um número considerável, que tinham como destino aquela espécie de banca onde se transacionava de tudo!

Hoje era com toda a certeza mais uma perseguida pelo fisco pois tudo o que vendia era “limpo”, sem o beneplácito e a intromissão das autoridades fiscais. Porém, nessa época a generalidade das pessoas era assim que vivia e que se desenrascava, por isso é que Salazar inventou aquela hábil cadeia de impostos (até os fumadores que usassem isqueiro tinham que ter uma licença especial o que implicava o pagamento de uma taxa) para que houvesse dinheiro para pagar o esforço de guerra, mas a que também juntou a célebre e obsessiva poupança, tão esganada, que levava a Metrópole a ter tanta gente faminta, com o raquitismo e tantas outras doenças nas crianças, algo que não acontecia nas “ricas” colónias de Angola e Moçambique!

Mas esta avó tinha um dom que, desde cedo, se começou a manifestar; apesar de ter tirado apenas a mísera quarta classe, mostrava qualidades acima da média para a dramaturgia, para a representação teatral, para a declamação, mas tinha uma que se sobressaía sobre as demais: a escrita! E este talento que ela nunca escondeu rentabilizou-o rapidamente, conhecido da maioria das pessoas, numa época em que a generalidade das pessoas tinha dificuldade em juntar as letras, quanto mais escrever, passou a ser posto ao serviço das pessoas que se deslocavam à sua banca instalada em casa que lhe pediam para ela escrever cartas, fossem para os filhos ausentes na guerra, no estrangeiro, mas sobressaiam indubitavelmente as cartas de amor que ela sempre assumiu como as suas preferidas pois essa escrita permitia-lhe viajar para fora do espaço exterior da sua casa, dando asas à sua fértil imaginação…quantos casamentos terão sido celebrados, em grande parte, pelas palavras impressas nas cartas?

Esta avó lutou contra um certo destino fatalista que, a meio da sua vida, lhe parecia estar destinado, reunindo até em si todos os ingredientes para não dar certo, pois quando enviuvou tudo parecer inclinar-se para se transformar em mais uma indigente, mas, afinal, tornou-se numa hábil comerciante!

Ficaram memoráveis as sessões protagonizadas pela avó com a mulher que vinha vender carne ou peixe, que ali se deslocavam frequentemente para lhe vender, e que a avó depois revendia aos chamados consumidores. Quem testemunhou aqueles jogos de estratégia, de paciência, de esconder os trunfos, de se mostrar desinteressada, ainda recorda como uma lição para a vida pois quantas e quantas vezes a mulher da carne ou do peixe acabavam a discutir com a avó e abandonavam a casa a vociferar, a praguejar e a jurar que não mais ali voltariam; mas ao fim de cinco minutos lá entravam furibundas na casa da avó e acabavam por fazer negócio!

Da avó, quedou-se apenas a memória de uma senhora já idosa, com os cabelos todos brancos, mas conservou sempre uns lindos olhos verdes, intensos e cintilantes que nos observavam indefinidamente. Mas em nova tinha uns longos cabelos pretos, macios e acetinados e nas fotografias dessa época sobressai o seu olhar que parece mirar-nos com ar felino de umas dessas feras selvagens de olhos encantadores!

Com estes condimentos, e que são comuns a muitas famílias portuguesas, como negar este legado judeu ou sefardita português?

     

O PRIMEIRO DO ANO

Dedos longos, que tudo o é em mim,

Buscam, ávidos, as teclas

 

Vislumbro na neve esbranquiçada do fundo do ecrã

Palavras sincopadas que, como um jogo de xadrez,

Se vão encaixando sucessivamente umas nas outras

 

No início, reina apenas o verbo

Que se escuta no interior de cada um de nós

  

À medida que evoluo no meio da neve

Que caí vagarosa e no silêncio da noite   

As palavras vão saindo

O branco e o silêncio pontuado pelas palavras

Assemelham-se a um rasto de um ruminante

Que busca indelével  

Uma dessas plantas resistentes

Que emergem na fina camada de neve

Que se foi acumulando no solo  

 

Vou caminhando e deixo o rasto das palavras

Que se tornam pequenos pontículos que vão preenchendo

A paisagem alva que se anuncia a meus olhos

 

De repente, vislumbro a alvura da paisagem

Antes lisa e harmoniosa

Repleta de um exuberante rasto

Que se parece com o de uma manada

Que por ali passou

 

Só que desta vez o silêncio

Que parecia eternizado na noite longa e fria

É interrompido pela longa marcha das renas  

Que, embrutecidas, e ávidas por novos pastos

Derrubam árvores

Sulcam a neve, expõem a nu a frágil camada branca

Que, confusa e intermitente,

Se satisfaz com a promessa de um novo dia que advirá

 

Mas os olhos estão para além da razão

Eles acompanham o coração que quer sempre mais

Aspira alcançar o paraíso

Tocar em todos os sinos

Que se erguem em cada um dos campanários

E ouvir cada um deles

Como se fosse um carrilhão completo

Na pura e bela harmonia de uma composição

Que todos acham que vem do Além

 

Esta música que cada um conjetura

Que explana o que o seu interior tem para mostrar

Que expõe a sua fragilidade e a dos outros

Tão ávida e emotiva

 E tantas vezes tão definitiva

Não nos deve enganar

Nem engalanar na vaidade mais vácua e estupidificante

 

A vida não é assim tão irrevogável, categórica e decisiva

Mas, antes, frágil como a neve que se deixa trespassar

Pelas frágeis peugadas de um pequeno ruminante

Ou de um invisível ser

Que a todos nos interpela  

 

A inspiração que desejo para mim

É a mesma que desejo a todos aqueles

Que se aventuram a calcorrear a neve

Nos dias frios, cinzentos e silenciosos,

Onde poucos se aventuram,

Neste primeiro dia do ano de 2021  

       

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