SEBASTIÂNICO
A chuva caí diluviana
Pingos grossos que, assaz, me incomodam
Acabo sentindo
O frio e indesejável
Gume da lâmina
A penetrar nas minhas entranhas
Manhã de inverno
De tão ácidas brumas
Árvores que oscilam ao vento mole
Pássaros que, de repente, se ausentaram
Sabe-se lá para onde?
Pináculos em pedra no meio do mar
Que não consigo avistar
Submergidos pela força das águas
A música envolve-me nesta manhã
E convoca-me a deixar-me guiar pelos sentidos
Mas não é a música, mas o que ela me sugere,
Que não me sai da memória
Multidão consuetudinária de pelicanos
Que, ininterruptamente, chegam sem cessar
Vêm à procura dos abundantes cardumes
E são tantas, as sardinhas,
Que, olhá-las, simplesmente, me fatiga!
Carne rosada
Dos salmões que se amontoam
Na mesma levada
Aguardam o último suspiro
Para saltar e subir o rio acima
Aves marinhas,
De poderoso voo,
Que se lançam
Em arroubos abruptos
No meio de ventos ciclónicos
Que sopram por entre as encostas
Que sustêm a força do mar
Voam
Para cima, para baixo,
Sem cessar
Mas, num ápice, desaparecem dos céus,
Sem anunciar a sua partida
Silabas livres que,
Aos pares,
Se abraçam com firmeza
Acomodadas
Ao corpo de cada uma delas
Dançarinos apaixonados
Sublimes, eretos e enfeitiçados pela sublime arte da paixão,
Ocupam os espaços do salão
E a música que soa é a de um velho tango
Que se equilibra no compasso
De dois por quatro
Saído dos foles gastos de um negro acordeão
- Ah…viejo rio de la plata
Que escucho el sonido de los largos gemidos del mar
Reviro-me nos meus sonhos
Mas não te vejo ó mar
Nem miro o rio de la Plata
Vejo-te sim, nos lamentos das minhas perdas,
Nos densos nevoeiros que me perseguem
Na tua voz ausente
Mas que, todavia,
Ainda a ouço soar na minha cabeça
Partiste sem me avisar
Sem eu estar prevenido
Sem eu estar seguro
Dos sentimentos que,
Afinal, eram tão prenhes
Perante ti
E só quando deixei de ter ver
(Ouvir-te e ler-te
Era uma forma de visualizar-te)
Quando já não tinha
As tuas belas canções que me escrevestes
Invadiu-me, então, uma tristeza amarga
Como se uma manhã
Chuvosa e fria me recebesse
Ainda vi uma folha de um livro
Que se meneava ao vento
Mas quando me abeirei dela
Vi que estava gasta
Percebi que já não podia apreciar
As tuas lindas palavras
Com que me presenciaste
Quando estivestes presente
A chuva cai na manhã triste e cinzenta
Não se vê vivalma
Não se ouve ninguém
Apenas o restolho suave e moreno
Da chuva que, agora, cai macia
Como se fossem os lamentos dos corações
Dos velhos dançarinos do tango
Mas, sebastiânico pensamento;
Pode ser, pode ser…
Que assista ao teu regresso
Numa manhã assim
Povoada de neblinas!