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Artimanhas do Diabo

Artimanhas do Diabo

BIC

A velha

De transparentes paredes

Esferográfica

Exibe-se sem temor

Nem pudor

Expõe-se, simplesmente expõe-se, 

Como deus quis que ela viesse ao mundo

 

Quando lanço sobre ela um olhar

Sinto-lhe, desde logo,  

A sua macia intimidade

E não há roupa interior que lhe valha

 

Permanentemente,

À razão do completar de uma estrofe,

Lanço o meu olhar

Libidinoso

Até à velha caneta  

Que repousa na minha secretária

 

E tenho uma réstia de esperança

Que ela possa voltar a ter a sua utilidade   

De quando, no passado, escrevia

Velhos e novos poemas

Quando a esferográfica

Entrelaçava-se na minha mão direita

E com jactante excitação

Me permitia chegar a uma espécie de transe

E acabava numa explosão de sentimentos  

Semelhante a um orgasmo!

 

Mas, hoje, está algo esquecida

Jaz estendida

Ao lado de um livro

Que guarda poemas de múltiplos autores 

Nas proximidades de velhos e avulsos papéis

Que, de vez em quando,

São rabiscados pela velha esferográfica

De pequenas anotações  

 

Desde que deixei de praticar

A minha escrita diária

Com a ajuda da velha BIC

É sob o teclado que prossigo  

A minha atividade de escrita diária   

Ajudado pelo vigor dos meus pensamentos

O desembaraço dos meus dedos

Que nunca se dão por vencidos

 

Os dedos ajudam-me à excitação

Que experimento quando escrevo

Prolongam o meu deslumbramento

Deixam-me com o coração a bater

Num ritmo sincopado

Que me faz ver para além do que escrevo  

 

Por fim, vem então o clímax derradeiro 

E é quando acabo

Que vejo que cheguei ao fim da linha

E dou por terminado

Vício tão empolgante e exigente  

Como é a escrita    

 

Outrora, escrevia muito

Escrevia bastante  

Mas fazia-o no remanso

Das sombras da frondosa ramada 

Que tanta inspiração me deu

Sob a tinta da velha caneta

Com o mesmo fulgor

Com que hoje escrevo no teclado  

 

Não sei se escrevo

Melhor ou pior hoje

Do que quando escrevia sob a batuta da BIC

 

Sei, sim, que a BIC não me concede mais

O tipo de sentimentos

Que outrora me revelava 

Mas, a verdade,

É que eu também não sou mais o mesmo

Do que quando escrevia com a velha BIC!  

SEBASTIÂNICO

A chuva caí diluviana

 

Pingos grossos que, assaz, me incomodam

 

Acabo sentindo

O frio e indesejável

Gume da lâmina

A penetrar nas minhas entranhas

 

Manhã de inverno  

De tão ácidas brumas

Árvores que oscilam ao vento mole   

Pássaros que, de repente, se ausentaram

Sabe-se lá para onde?

 

Pináculos em pedra no meio do mar

Que não consigo avistar 

Submergidos pela força das águas  

 

A música envolve-me nesta manhã  

E convoca-me a deixar-me guiar pelos sentidos   

 

Mas não é a música, mas o que ela me sugere,

Que não me sai da memória

 

Multidão consuetudinária de pelicanos

Que, ininterruptamente, chegam sem cessar

Vêm à procura dos abundantes cardumes  

E são tantas, as sardinhas,  

Que, olhá-las, simplesmente, me fatiga!

 

Carne rosada

Dos salmões que se amontoam  

Na mesma levada  

Aguardam o último suspiro

Para saltar e subir o rio acima

 

Aves marinhas,

De poderoso voo,

Que se lançam  

Em arroubos abruptos

No meio de ventos ciclónicos

Que sopram por entre as encostas

Que sustêm a força do mar 

 

Voam

Para cima, para baixo,

Sem cessar

 

Mas, num ápice, desaparecem dos céus,

Sem anunciar a sua partida 

 

Silabas livres que,

Aos pares,

Se abraçam com firmeza 

Acomodadas

Ao corpo de cada uma delas

 

Dançarinos apaixonados

Sublimes, eretos e enfeitiçados pela sublime arte da paixão,

Ocupam os espaços do salão

E a música que soa é a de um velho tango

Que se equilibra no compasso

De dois por quatro

Saído dos foles gastos de um negro acordeão

- Ah…viejo rio de la plata

Que escucho el sonido de los largos gemidos del mar

 

Reviro-me nos meus sonhos

Mas não te vejo ó mar

Nem miro o rio de la Plata

Vejo-te sim, nos lamentos das minhas perdas,

Nos densos nevoeiros que me perseguem

Na tua voz ausente

Mas que, todavia,

Ainda a ouço soar na minha cabeça

 

Partiste sem me avisar

Sem eu estar prevenido

Sem eu estar seguro

Dos sentimentos que,

Afinal, eram tão prenhes

Perante ti  

 

E só quando deixei de ter ver

(Ouvir-te e ler-te

Era uma forma de visualizar-te)

Quando já não tinha

As tuas belas canções que me escrevestes

Invadiu-me, então, uma tristeza amarga

Como se uma manhã

Chuvosa e fria me recebesse

 

Ainda vi uma folha de um livro

Que se meneava ao vento

Mas quando me abeirei dela

Vi que estava gasta

Percebi que já não podia apreciar

As tuas lindas palavras

Com que me presenciaste

Quando estivestes presente

 

A chuva cai na manhã triste e cinzenta

 

Não se vê vivalma

Não se ouve ninguém

Apenas o restolho suave e moreno 

Da chuva que, agora, cai macia

Como se fossem os lamentos dos corações

Dos velhos dançarinos do tango

 

Mas, sebastiânico pensamento;

Pode ser, pode ser…

Que assista ao teu regresso

Numa manhã assim

Povoada de neblinas! 

 

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