Final de agosto de um verão memorável do ano de 1982.
O comboio a abarrotar partiu da linda cidade de Viana do Castelo a meio da manhã, para percorrer o último terço do trajeto até à formosa vila que tem seu nome no caminhar…
Na veneranda composição prateada seguia a irreverente juventude da época, expetante para assistir ao Festival de Vila de Mouros. Porém, poucos se recordavam do primeiro e, até esse momento, único evento do Festival ocorrido no ano de 1971. De vez em quando sentia-se um forte odor à droga da época: liamba!
O olhar do rapaz ia eletrizado por uma loira de olhos azuis brilhantes, de rosto pintalgado de sardas, que ia acompanhada por uma rapariga de pele assaz esbranquiçada e cabelo preto que, dir-se-ia, tudo indicava que havia sido escurecido artificialmente. A loira, logo no início da viagem, na imperial Estação de São Bento, acenou um olhar ao rapaz, sorriu ligeiramente e não mais tirou os olhos do rapaz de olhos esverdeados, de estatura pouco habitual para o Portugal de então, seco de carnes e de olhar sonhador!
No entanto, a tarefa não se anunciava fácil para o jovem pois, para além de ter de se aproximar da loira, que distava cerca de cinco metros dele, havia que perceber que língua a rapariga falava, embora o inglês, já na altura, fosse a língua universal. E alguma timidez do rapaz, a ousadia da loira e por último a distância foi adiando a aproximação, o que significa que viajara do Porto a Viana do Castelo, mais de uma hora, e mantinha-se apenas pelo olhar, os sorrisos, e o rapaz incapaz de se aproximar porque não se sentia à vontade para avançar, naquele emaranhado de gente jovem, que se olhava com curiosidade, para se apresentar à loira que só faltava vir na sua direção, até porque a partir de certa altura ele começou a aperceber-se que as duas pareciam falar dele, sorriam, e a loira parecia aguardar unicamente pela investida do rapaz.
Por fim, no final da manhã, anunciou-se a estação de Caminha, o local de destino da viagem de toda aquela juventude.
Logo que saiu do comboio o rapaz percebeu que seria tarefa muito difícil, para não dizer impossível, alcançar a freguesia de Vila de Mouros, isto porque nas imediações da estação concentrava-se uma multidão que aguardava por um transporte que a pudesse levar até ao recinto onde decorreria o festival. E, então o rapaz, à boa maneira portuguesa, aproveitou o aglomerado e uma certa dispersão da atenção da multidão, mais concentrada em conseguir transporte para o recinto do festival em Vila de Mouros, para finalmente se aproximar da loira e da amiga. Saudou as duas e esboçou umas palavras em inglês, e a primeira regozijou e respondeu em tom entusiasmado, e não mais se separaram no decurso do festival.
W., a loira, era uma cidadã tedesca que ouviu falar deste festival e que, desde logo, lhe pareceu um evento muito original e interessante pois abarcava um conjunto diversificado de formas de expressão musicais que a ela, na altura estudante de música, lhe parecia digno da sua comparência. E sem perder tempo, meteu-se com a amiga, por essa Europa fora, a calcorrear os trilhos ferroviários que a levassem até ao Festival de Vilar de Mouros, uma espécie, no estilo do evento, não na programação, de um Woodstock à portuguesa porque ele privilegiava praticamente todo o tipo de música mais ou menos sofisticada, do popular, ao rock, ao jazz.
Por fim, os padeiros, distribuidores de bebidas, enfim, tudo os que tinham uma carrinha que desse para carregar homens, começaram a transportar aqueles milhares de jovens até aos terrenos do festival. Hoje seria muito mais fácil chegar aos terrenos onde se realizava o evento, teria, enfim, um conjunto de valências, que passariam pela organização do transporte da estação dos caminhos-de-ferro de Caminha até à linda freguesia de Vila de Mouros, mas na altura era tudo um pouco bizarro, sem grande organização o que dava azo ao desenrasca e à improvisação.
O rapaz foi transportado, juntamente com W. e a amiga, numa carrinha de caixa em madeira, coberta por uma lona esbranquiçada, propriedade de um dos padeiros, e os jovens que seguiam no interior da viatura, a sorrir, excitados e agarrados à armação que era quem interiormente suportava a lona, que esvoaçava à velocidade que o condutor conseguia imprimir, encostados uns aos outros para não se estatelarem, sobretudo nos trajetos mais sinuosos em que a carrinha parecia serpentear por uma estrada de montanha, e que podia apenas ser imaginada pois a construção em lona impedia ver o terreno que iam calcorreando. Enfim, pareciam animais encurralados!
O rapaz teve W. nos braços, esboçou palavras sentidas de amor; entrecortaram-se de citações poéticas, olharam-se de frente, beijaram-se avidamente, deixaram no ar o testemunho exótico das longínquas estrelas, que teimam em cintilar indefinidamente, e tão presentes nas noites de verão, jurando mútuos desejos que aqueles sóis os acompanhariam para sempre nas suas vidas, e que quando os avistassem era o sinal do reencontro dos dois. E a verdade é que ainda hoje, o já homem, quando observa as estrelas, entranha-se uma saudade enorme de W., cidadã tedesca!
Mas há algo que não necessita da noite, das estrelas, e que continuamente vem à memória ao eterno rapaz, aquela entoação dos erres de W., como aquele pronunciar Vilarrr de Mourros, como também não lhe saí da cabeça um impaciente público, que aguardava pelo início do festival, e por volta das 22:30 horas irrompeu pelo palco um homem de provecta idade, de pequena estatura, mas decidido, pegou no microfone e exclamou:
- Loucura! Loucura! Loucura controlada... sem medicamentos... sem camisas de força! Loucura controlada pela vossa inteligência e pelo amor! Adeus, adeus... obrigado, obrigado!
O rapaz veio a saber mais tarde que este arrojado homem se chamava António Augusto Barge, era médico de profissão, e um dos entusiastas da primeira hora deste festival em 1971.