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Artimanhas do Diabo

Artimanhas do Diabo

BEM-ME-QUER…MALMEQUER!

 

Os-campos-de-margaridas-atraem-a-atenção-de-todo

 

A luz que me surpreende

Ao eclodir de um novo dia

Com a esperança a derrubar

O  meu inquieto pessimismo

Não é a mesma

Que a que de tarde me enleva o olhar   

A contemplar o horizonte que se ergue à minha frente

Pisando esse chão duro da escarpa onde me sento

A alvitrar o futuro

Que me reserva uma tarde a refletir 

E não é a mesma que,

Titubeante,

Se despede do crepúsculo

Com a promessa de regressar no dia seguinte. 

Uma nuvem se aproxima

Vagarosa e tímida  

E acaba por se interpor

Entre mim e o sol

Num aceno saúdo-a

E ela

Sem que eu me atreva a dizer o que quer que seja  

Acaba por me responder

Naquela voz maviosa

Como se estivesse grávida de um desejo

Como só as divindades sabem articular

Naquela doçura omnisciente

Que agarra

Absoluta e definitivamente

A nossa alma.

Um clarão escuro

Desloca-se a uma velocidade estonteante

Compacto e ruidoso

E eis que

Já perto distingo

Milhões de minúsculos insetos

Que voam inflamados e de pose bélica

No seu interior

A nuvem acaba por penetrar no âmago da minha razão

Sobrepondo-se aos afetos

Que me impregnam um entusiasmo recente

E é com aquele ruído de fundo

e disposto a seguir em frente

Que olhando de soslaio

Para uma borboleta que voa num círculo definido

E com suave magnitude

Que acaba por me extasiar   

E é então que me pergunto:

- Porque é que, em vez dos gafanhotos, não me visita uma nuvem de borboletas?

Afago as flores brancas

Bravias

Que crescem livres no campo aberto

Mergulho naquele mar odorífico

E deixo-me envolver pelo suave ronronar

De três lindos gatinhos  

Que se refugiam de um sol inclemente de verão

Descansando o seu ágil corpo

Na tranquila quietude de um leito de margaridas

Que compactas e bem juntinhas

Fazem uma só

E é neste quatro idílico 

Que acabo comovendo a minha justeza 

Do olhar mais sério

Que não se deixa penetrar

Pelas razões das conveniências

E que só conhece a linguagem

Pura do Amor;

E uma lufada de vento

que sopra pausado    

Esguio e incandescente 

Passa por cima da minha cabeça

E lá no alto leio o Mantra:

- Bem-me-quer…malmequer!

E EIS QUE ME DESPEÇO SUAVEMENTE DO VERÃO

 

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Enquanto o verão

Retempera a minha alma

Que, forçada à solidão,

Dá sinais de querer entrar num novo ciclo

Anseio as primeiras chuvas de outono

E os ventos que as acompanham

E as folhas que se desprendem das árvores

E a erva que nasce fresca e viçosa que é pasto dos ruminantes

E o odor a carne que é um regalo para os que dela se alimentam

E o húmus que vai derretendo os cadáveres

E os necrófagos que cheiram a sua próxima refeição

E os rios que se revigoram

Carregados de uma energia muito especial

Voltando a sitiar as escarpas mais íngremes

Envolvendo e arrastando as pedras

Que se foram soltando no verão

E as novas árvores com a sua folhagem

Em que impera a coloração castanha

E fico-me

Pois

De olhar siderado

Abalançando-me a olhar o presente

Mas ansiando também pelo futuro  

Suspendendo a respiração

Olhando o firmamento

Que parece mais pequeno e próximo

E eis que avisto 

Os majestosos grifos

A planar silenciosos sobre a minha cabeça

E não me canso de me extasiar com os montes

Que imóveis ostentam uma beleza ímpar

Debaixo de cores múltiplas

E formações antropomórficas

E então

Até onde o meu olhar alcança

Que me deparo com um sol tímido

Agora

Menos exuberante

E escolhe ser mais discreto  

Cansado de se exibir no verão

Que surge sob a áurea

De uma raridade

Assaz apreciada

Que torna a luz do outono

Um postal carregado

De cores primárias!   

 

PRAIA

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Tanta areia

Onde

Placidamente me deito

Tanto mar

Valente e vigoroso  

Que não cabe na minha imaginação

Tanta luz

Que se abre aos meus olhos

Tantos odores

Que me desassossegam 

Tanta memória

Que vive dentro de mim

Dos tempos de jovem

Em que a praia era divertimento puro!

Percorro o espaço  

Que ainda não é mar

Que ainda não é praia

De areia

Húmida

Dura

E impenetrável

Que acolhe meus pés

Inquietos,

O vento

Saúda-me  

E vem-me a vontade de o desafiar

No seu jeito colossal

Vislumbro sua tela esfíngica    

Que me interpela

seu olhar decidido

Que prende meu olhar

E capta toda a minha atenção

E sem que eu possa decidir

Sobre o que fazer

Acabo por me deitar 

Sem toalha

Por pura diversão

Na areia seca  

E fico parecendo

Um desses biscoitos areados de açúcar!

Ao longe

Um ressoar

Metálico

Do que parecem ser

Carris percorridos

Mais perto

Leve soar das horas

Nos sinos de uma igreja

Em cima de mim

Uma voz

Que interpela a todos   

Um vendedor de bolas de Berlim

Que parece levitar sob a areia

Num passo célere e firme:

- Uma com creme para mim!

Dispara um veraneante

Uma criança que chora

Um pai que se irrita

Uma mãe que discute com o marido

Um cão que ladra nervosamente

Um pescador na praia

Distante

Que agita a sua cana

Lançando o isco para o mar

Um barco silencioso

Que em pranto

Me vai interpelando

Ora, parecendo engolido

Ora, em crescendo,

No meio do mar;

Então, onde as ondas rebentam

Interpela-me uma trágica lembrança

Dos homens que perecerem nas ondas de rebentação   

Engolidos pelos rugidos do mar

Escoltados pelos gritos  

Em desespero das vareiras  

E em que o sol parecia se extinguir

E nuvens negras descerradas

Acompanhavam suas almas temerárias

Na derradeira viagem até ao infinito;

Mas não vejo mar

Não vejo terra

Não vejo futuro

Não vejo presente

Vejo

Sim

Passado

Que, como uma espinha,

Trespassa a minha garganta

E já não vislumbro

Aquelas comidas carregadas de odores fortes   

Devoradas na praia

Ao compasso dos relatos da Volta à Portugal em bicicleta  

Aquele momento em que parecíamos todos ficar encantados  

Pela descrição dos radialistas

Que faziam chegar até nós

As façanhas mais prodigiosas dos heróis em fuga

E já não há praia

Mas sim areia acumulada

Que nos faz sonhar em vão

Que nos faz arrepiar as tentações

E onde até o mar

Já não é mais azul puro

Mas um manto untuoso  

De coloração esverdeada

E até os peixes

Cada vez mais raros

Parecem ter perdido a honra

Já não fogem

Já não saltam

Parecendo suicidas

A entrar voluntariamente

Nas redes longas  

A caminho da morte certa!

AO SOM DO CHARLIE PARKER

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Vão-se os meus dedos

Sonâmbulos

Apaixonados

Longos

Bravios

Competentes

A tatear a tua pele plácida

Lustrosa e pura

Que parece uma sadia nascente

A refletir os raios de sol em dia cintilante;

Bebo pela concha das tuas mãos

A água transparente

Acabada de colher

Da levada desse rio

Sem fim

Onde nadam placidamente

As boas almas

Que pululam livremente

Nessa tua mente abençoada;

Deixo-me levar pela correnteza das águas

Esqueço-me para onde vou

E de donde venho

Quero apenas sentir

Neste sereno momento

Esse manto transparente

Que tão bem te ornamenta

E que não me olvido

De o evocar de cada vez que te vejo

Com esse chapéu tigrado

Pousado na cabeça

Matizado de amarelo e laranja

De olhar fixo no chão

Porque duros e cruéis

Podem ser os olhares

Que há muito te perseguem

Nesse passo elegante

Que tão bem te carateriza

Enlevado

Resplandecente

Exultante;

Esses minúsculos sinais

Pequenos oásis no deserto

Que cobrem teu corpo

São a prova inabalável

Que nutres pelo Amor

Essas subtis manchas

Plantadas nas tuas pernas    

Evoca-as tantas vezes  

A massajá-las suavemente

E a ouvir tuas exclamações de prazer

Que saem desses teus lábios tão doces

Que parecem néctar puro de lavanda

Quero as tuas mãos

Os teus dedos

Os teus braços

O teu peito

As tuas pernas

E mesmo esse teu corpo sofrido

De mãe

É para mim reconfortante

Vê-lo a medrar perante o meu olhar excitado

E é aí que cavalgo a minha paixão

E é aí que não me atrevo sequer

A pensar

Em deixar-te para atrás

Porque isso seria

Deixar-me para trás

Também!

POEMA A DUAS MÃOS

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Entristece-me vê-lo

Nessa senda culposa

Só porque entende

Que o amor se aprisiona

Capturando a alma

Da sua consorte

Na hora em que se assumem votos  

De amor eterno!

Vai-te peçonha

Maldosa

Insipiente

E tão perigosa

Segura de si

Inabalável

Nesse mundo dual

De que eu sou tua  

Para sempre!

Fui desejada

E tive a ousadia de desejar

A quem não firmei votos

De amor eterno contigo

E tu

Nessa tua ancestralidade enfadonha

Decretaste:

Pecado capital!

Não entendes

Que tu queres-me

Como sempre quiseste

Para me silenciar

E dar voz a essa tua cobardia

Insonsa

E ele

Em tão poucos instantes de vida

Mostrou-me

Que eu tinha que crescer

E me inspirou

Para deixar de alimentar

A fera que eu própria nutri

Tão roliça e luzidia

Todos estes anos

Silenciando-me;

Tu queres-me

Para mandar em mim

Para me controlares

Nessa tua dissimulação

De boa alma

Tão perturbada e maligna interiormente…

Todos os instantes da minha vida

Humilhaste-me

Com a tua altivez  

De controlar

E formular a eito juízos morais

A tua pequenez

Não conhece limites

És tão previsível

Tão modorro

Um inqualificável mandrião

E como foi possível

Na hora em que firmei votos contigo

Que eu não visse

Tamanha parvidade

Numa mesma pessoa

Que tarda em compreender o seu papel atual na minha vida:

Nenhum!

 

 

 

 

 

 

Ó meu amor

Deixa que a paixão flua normalmente

Deixa corar esse manto

Coroado de estupidez

Na relva mais fresca próxima do rio

Para o purificar

Arranca sem hesitações

Foge dessa luminária

Desse inqualificável

Ladrão de almas

Que te enfraquece

Que tudo te roubou

Não queiras que te subtraia mais um quarto de século de vida

Foge dessa afrontosa nuvem negra

Que tapa esse sol

Que te devia tão bem iluminar

Deixa que as ondas desse mar

Limpem a areia dessa praia

Afastem as sujidades mais imundas

Mesmo que seja teu lixo

Que já não o queres  

Mas que ele teime

Em recicla-lo

Para to dar em doses cavalares,

Uma suave lembrança

Aflora ao meu corpo

Na hora em que vislumbro

Aquela espaço ajardinado

Repartido

Pelas águas serenas

De um velho riacho

Que divide o espaço

De um lado

O caramanchão dos amantes

A felicidade dos sabem amara

Do outro

A bestialidade de quem não sabe o que é o amor

E se esconde naquele matraquear

Permanente

De que é ridículo…

Mas,

Amor,

Ridículo

Mesmo

É achar que o amor

Não se exibe publicamente

Apenas nas frestas escuras

Das noites de intimidade

Onde até a luz se apaga

Para ser,

Enfim,

Mais casto o amor assim!    

 

Tourear “al alimón” é quando dois matadores lidam em simultâneo o touro com um único capote; há também um célebre discurso proferido a duas mãos, entre Lorca e Pablo Neruda, em homenagem a Ruben Dário, descrito por Pablo Neruda no livro "Confesso que Vivi".    

O BOSQUE

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O bosque encantado

Fascina-me

Sempre,  

Dele emana aquela luzinha

Que ilumina os corações das almas ilusionadas

Que competem entre si

Pelas lindas histórias orais

Narradas de geração em geração  

Preenchendo o imaginário

Do adulto que vive fascinado

Com a criança dentro de si.

Amoras

Tisnadas  

Protegidas de mãos descuidadas 

Pelos espinhos que guarnecem os ramos

As suas grainhas que acabam se escondendo   

Nos intervalos dos dentes

A polpa que sacia

Essa sede de mistérios

Figos bravios

Eróticos e insubmissos

Castanheiros que se erguem  

Para além da polpa de todas as árvores 

Framboesas que se colhem com enlevo

Para confecionar a fresca e doce compota

Palavras melosas que me chegam ao ouvido

De Nemetona

Bruxas infatigáveis

A deambular pelo ar 

Palavras que enxerto ao longe

Fixas no horizonte

Como se fosse o quadro da escola

Onde apreendi a ler

E nas noites quentes de luar    

Um coro de rãs coaxa nas proximidades dos lagos

Um canavial

Que se ergue na margem do rio

Como se fosse muralha medieval 

Patos

Galinhas d’água

Garças

Ocultos dos inimigos da noite

E, de repente,

Uma velha coruja

Solta um pio

Que me arrepia

Uma astuta e veloz raposa

Caminha infatigável  

Cheirando tudo à sua volta   

E quando a manhã irrompe pelo bosque

Nébulas que me congregam a esperança

O cheiro a erva fresca   

Invade a minha mucosa nasal

Até que me chega essa saudade

Dos tempos em que percorria

Sem exaltação

Mas com total naturalidade

Esse mesmo bosque

Que

Parece já não ter o encanto de outrora!

E já não te vejo

Como antes te via

Minha velha companheira

Solidão

A percorrer os interstícios

Do meu pensamento

Tornaste-te

Agora

O meu pensamento

Que vive solitário

Aprisionado por vetustas recordações

De quando

Me envolvia nas caçadas às crias

Depositadas no interior dos ninhos

Suspensos nas árvores

De quando

Se planeavam assaltos

Às melhores árvores das redondezas

Carregadas de frutos

De quando

Esporadicamente

Dávamos de frente com o velho criado mudo

E fugíamos aterrorizados

Porque temíamos o seu caráter

Que, dizíamos:

Ser mau como as cobras!

Inverto o meu olhar

Miro para a frente

Para o futuro

E já não avisto o velho bosque

Mas sim máquinas

A sulcar sem contemplações

A devastar aqueles solos tão pobres

Que só a cobiça os impede de ver mais além:

- Deixem-nos como estavam antes…

Gritos em desespero  

Que me chegam de quem não ouve

Não vê

Não sente

O futuro

E então

Não consigo esconder a minha emoção

E acabo repetindo a mesma frase:

- Deixem o velho bosque como estava

Dos tempos áureos da minha infância!

NAS ASAS DE UM ANJO

 

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E vós

Senhor

Que me podereis dizer

Sem que eu não saiba já

Dessa vossa assaz amargura?

Plantarei

Mil castanheiros

Senhor

Iguais ao que nos acolheu

Naquele dia de sol tão radioso

Em que vos declarastes

Debaixo de sua imperial sombra

Que nos ajudou a revigorar o amor

Em manhã tão quente como esplendorosa

Fazendo-nos refletir

Sob tão tutelar sabedoria; 

E foi ali  

Senhor

Que vós exibistes 

O coração

Que medra

Nesse vosso peito

E que não me saí da cabeça!

Ainda hoje

Lastimo

A vossa partida para a guerra

E não vos poder

Ter aqui comigo

Mas ó senhor

Meu bem

Que importa viver

Se não vos tenho por perto

Para assinalar

O que diz este louco coração

Que já decidiu:

Se finardes

Nessa guerra

Tão inglória como absurda

Acabarei

Senhor

Por perecer aos poucos  

Aguardando

Apenas

Que o altíssimo

Me leve deste mundo

Tão inglório como injusto;

O vento

Aquele vento suave e delicado

Que me ajudava a conter saudades tuas

Já não me visita

Fustiga as rochas do meu descontentamento

A chuva já não rega a flor

Plantada no meu peito

O sol raiado de vermelho

Parece conter um grito de revolta

E de cada vez que avisto um castanheiro

Um clamor soa no meu interior

Pois já ali não estais

Senhor

Para me ajudar a escolher os ouriços carregados de castanhas

E desespero

Abomino a minha sorte

E já não sei

Se quando vos conheci

Se me alegram mais os dias

Ou se me amargam as horas

Por não vos poder ver?

Partiste

Montado nesse cavalo alado

E passais agora a voar na minha imaginação

E de cada vez que vos tento alcançar

Fugis   

Senhor

Subtil e maliciosamente

Como se estivésseis

À espera

Que eu não pudesses viver mais

E partisse

Para sempre

Nas asas de um anjo!

 

 

 

 

INSANA PEREGRINAÇÃO

 

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Pintura Navio dos Loucos de Hieronymus Bosch

 

Glória aos infernos

Onde todos descemos

Pelo menos

Uma vez na vida

E uma vez desembarcados  

A tão inusitado mundo  

Pressentem-se

Desde logo

Os horrores

Que saltam

Que medram  

Em cada uma das bolhas carregadas de loucura  

Que está para além do entendimento  

Escarnecer permanente

Zombar de tudo

Exultar o choro

A raiva

Até que a insensibilidade se instala

E ali já nada nos espanta 

Quem fica indiferente a este mundo?  

Quem ali chega

Não gosta do que vê   

Naquele caos incendiário   

Mas, com o tempo,

Acaba por se habituar

A tamanha jactância perpetrada pelo mal!

E todos ali vão

Pelo menos uma vez na vida

Derrotados

Derreados

Revoltados;

Quem regressa parece rejuvenescido

Ali  

Nas terras de Belzebu  

Os salmões não sobem o rio

As aves não sabem voar

Os canídeos caminham em duas patas apenas

Os grilos piam até que a voz lhe doa

As cigarras são tão aveludadas que apetece pegar-lhes

O trigo jamais medrará

O mar é tão doce que a água se emulsiona e não se fixa ao corpo

As rãs voam em balões de ar aquecido

Nos castelos moram borboletas coloridas

Nas casas dormem tranquilos veados corredores

Nas montanhas caminham assolapados os amantes

As árvores embrulham-se umas nas outras

O sol explodiu há muitos anos atrás

A lua omnipresente

Alinha-se sempre pela noite

Que ali é intemporal 

Os homens e as mulheres alinham-se

No enfiamento de incendiários

Que estão sempre a avivar o fogo eterno

E a proferir vitupérios

E no meio de uma berraria infernal

Elevam-se irritantes morcegos   

Que lançam-se aterradores sobre a multidão

Que sabe que dali não escapa,

E quem ali fica mais tempo

Ao longo de uma permanência acentuada

Fica sem saber quem é

E parece já não saber sair dali

E mesmo que o saiba

Parece não querer sair!

O inferno não se fez para os outros

Fez-se para todos os que ali caem:

Os que desistiram de lutar

Os insidiosos

Os que não conhecem outra vida;

Mas quem não se reconhece

Naquele mundo  

Foge como o vento

Apaga-se como o veneno

Desliza ansioso como fina areia pelos dedos

Acaba se esgueirando

O destino de quem ali cai

É querer sair

Mas nem todos o conseguem

Permanecendo

Eternos

Insanos 

À espera que a fogueira

Se apague

DICOTOMIA

 

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Que dizer

Amor

Se já não tenho palavras

Que te salvem  

Desse lodo

Que te cerca

E te enclausura  

E que te vai matando aos poucos?

Vives na esperança

De acordares  

O pesadelo

Por fim  

Dissipou-se

E acabou por se extinguir

Milagrosamente!  

Adias, vais adiando,

A tua felicidade

Carente de um plano

E suportada

Em derrotar pelo cansaço  

Um dia vais ver o que agora não queres ver

Todos os silêncios

Que pudeste suportar

Acabaram por te conduzir

A essa estranha mulher

Tão dividida e desapontada:  

Amargurada em casa  

E regozijada na rua.  

 

O PRÍNCIPE DOS LUGARES COMUNS

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Castelo de Neuschwanstein, Baviera.

 

Atazanado pelo amofinado espaço temporal em que alguns personagens vivem o seu dia-a-dia, e que dão a impressão de uma existência venturosa, onde o nada é o principal ingrediente, acabo provocado pelo inenarrável bocejo que se escapule da boca, como se fosse um secreto gaz que se evapora sorrateiro sem se preanunciar.

A luminosidade que emana do ecrã do computador faz-me concentrar toda a atenção sobre a página em branco, que me transmite uma sensação de alvura, como se tivesse caído um forte nevão que jaz no solo à espera de ser pisado por mim.

E, enquanto os meus olhos se acomodam àquele baluarte branco, dou por mim a iniciar o meu trajeto na suave e fofa pista branca, deixando atrás de mim os traços distintivos dos meus passos com que vou galgando o caminho sem rumo que vou encetando no contato com a neve.   

Até que, ao fim de algum tempo, mais a deslizar e a tentar equilibrar-me, do que propriamente a caminhar com firmeza, chega-me às narinas um bafiento odor, que todo o súbdito que se preze sabe, desde logo, identificar, que é um sinal indicativo que o Príncipe dos Lugares Comuns está por perto: roupas impregnadas de naftalina; logo de seguida, surge a sua impagável figura, formosa e renitente, à minha frente, a que se junta a sua real tonsura, digna de egrégia realeza.

E, no seguimento desta minha recente derivação reflexiva, puxam-me os meus sentidos pelo vagar fluir da minha veia artística, que alimenta a minha espiritualidade. Eis-me, pois, no centro desse pindérico reino de tão maligno aborrecimento, e é aqui que dou por mim a magicar no que surge à minha frente; mas vejo mesmo ou imagino ver? É-me indiferente, pois enquanto estou envolvido com uma dúvida do tipo cartesiana surge triunfante um esboço de um pigarrear, daqueles tipicamente nervosos, e que logo se assume como fala, a qual, na ótica do Príncipe dos Lugares Comuns, significa:

- Estás mesmo a pedi-las!

Isto é, uma fluente diatribe, em tom de ameaça, que escangalha o torpor de um qualquer ilustre cidadão, mas que a este Príncipe dos Lugares Comuns lhe faz cintilar os olhos, mofar e ficar escarlate, esboçando o seu ostensivo cartão-de-visita, dignamente representado pelas armas e os barões dos seus nobres antepassados, e que é uma das suas divisas: o simples fazer cria uma inevitável desconfiança; não lhe restando outra alternativa que não seja simplificar com a exclamação:

- Não…

E continuando logo de seguia:

- Está sossegada…não vês que estou a ver um programa muito interessante na televisão…o que pretendes agora é ridículo, isso faz-se mais logo, no leito conjugal, não aqui neste sofá!

E ao Príncipe nem lhe façam chegar, ó santo vitupério da malignidade, laudas impregnadas de criatividade, pois a exímia consciência do Príncipe dos Lugares Comuns, complementada pelo seu apurado espírito crítico, que mistura estados de alma aliados com o torpor totalitário, apenas consegue produzir o lugar-comum, isto é, a página dedicada exclusivamente ao profissional excecional que se preza de o ser, pois quanto ao pendor criativo, só se for para manifestar o grande amor que nutre pela ficção cinematográfica que o ajuda a embalar a carência do seu dia-a-dia e que, inconscientemente, é já como se fosse uma vida para ele, pois tudo o resto resume-se a denodada desconfiança de quem acha que é uma manifesta perda de tempo, uma idiotice, dedicar a sua atenção a algo que não passe exclusivamente pela dinâmica audiovisual, tecnologia, programação, e então, senhores, quando este Príncipe dos Lugares Comuns observa um afago, um beijo, mesmo que seja ao de leve, em público irrita-se sobremaneira e nem lhe falem de escrita criativa e muito menos romântica, que se lhe afigura pomposa, gongórica, tão negativamente sentimental, aí, minhas senhoras e meus senhores, o Príncipe dos Lugares Comuns veste a indumentária mais pesada e surge cotejado de sua malha metálica, eivado por cortante e seca fala e, sem papas na língua, dispara!

A este Príncipe dos Lugares Comuns foi-lhe administrada uma educação patrocinada por uma mãe que andou uma vida inteira a correr para a sacristia, e cuja única ambição era ter o poder, ali onde, além de outros mistérios, se guardam os óleos da unção dos enfermos, de ser ela a lavar as peças mais íntimas do sacerdote, conhecendo-lhe, desde logo, todas as suas agruras intestinais, digo, fraquezas mais privadas, que também os sacerdotes as têm, tão humanas como qualquer um de nós! E este Príncipe dos Lugares Comuns foi alimentando ao longo da sua existência uma parafernália de amputações às mais vis insinuações que antevissem o seu quê de libertinas, cobrindo tudo pelo convencionalismo mais ortodoxo, proferindo corretivos simples e diretos, cultivando os exageros próprios de quem acha que a essência da vida é a eficácia e a objetividade, e que para isso procurou estar rodeado de uma extrema secura afetiva, pois nunca esteve pelos ajustes em perder o seu tempo com demasiada verborreia quando pode usar, e até na sua ótica é assaz recomendável, uma formula matemática para traduzir o pouco que lhe está ou vai na alma!

O preferível, na ótica do Príncipe dos Lugares Comuns, é não dizer nada, é até a manifestação que ele prefere e mais usa, deixando o seu interlocutor na dúvida do que ele quer. E só quando pressente que os sinais são pouco lisonjeiros para as suas pretensões, lá lhe sai um ditote munido de um adjetivozito que, está convencido, é redentor para a seca deixada pela travessia do deserto, que os seus mais próximos se vêm constantemente a braços diante dele, fruto das suas conceções filosóficas mais castradoras, servido pela bocarra de um velho dromedário. Quem dele espere, por mais pequeno que seja, um benevolente milagre que protagonize algum tipo de verborreia, que não passe pelos meros lugares comuns, que se esconda, se disfarce, ou pura e simplesmente se iluda a si próprio, porque o Príncipe dos Lugares Comuns, não condescende, efetiva-se, contenta-se, à boa maneira de um compositor que acabou descobrindo a sinfonia da sua vida, quando ativa aquela função, tão temível como respeitável, e que só os eucaliptos têm nesta vida: secar tudo à sua volta, no seu caso suga com a sua falta de iniciativa e só dá um arzinho da sua graça para censurar quem se digne pôr mãos à obra para executar alguma coisa.  

Longa vida ao Príncipe dos Lugares Comuns grita-se por aí, mas esta expressão está carregada de um fundado temor, pois os súbditos já não o suportam, têm apenas pânico ao desconhecido, e há, contudo, um séquito de aduladores, que se concentram naquela faixa dos que temem as suas reações ou o receio do que venha a seguir, convictos das suas qualidades, mas que não imaginam o que é viver o dia-a-dia sob o jugo do férreo control

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