Passei
Ao de leve
Por uma poça de água
Por pouco não me estatelei
Caindo nas suas águas pardas e lamacentas
E dei de caras com uma rã;
Expectante pelo seu olhar
Acabei perscrutando-a
E nem dei muita importância ao quase incidente
Até que ouvi o batráquio, repetitivo, dizer de si próprio:
Eu sou premonitório!
Sentei-me e apurei o ouvido
E apercebi-me que tinha um tom de voz fino
Mas, aquela lengalenga carregada de vacuidade e autoelogio
Irritante
Insinuante
Repetitiva
Paspalhona
A matraquear palavras
A uma velocidade estonteante
Parecia a de um interno de um hospício;
E a rã
Nem se incomodou com a minha presença
E, sem se conter,
Bufou
Vezes sem conta
Pigarreou
Ritmou palavras
Ajustou acusações
Revelou blasfémias
Interligando
Bois com azimutes
Caracóis com estrelas
Borregos com egiptólogos
Leite com ácido sulfúrico
Bondade com obrigação
Raiva com mostarda
Carne de vaca com gelo polar
Até que proferiu:
- Jardins de pedra!
Aqui,
Fez-se-me luz
A rã premonitória
Estava, afinal,
Imbuída do espírito do budismo Zen!
Virei costas
Palmilhei a distância até a minha casa
No caminho, porém,
Sorri, agitei por diversas vezes a cabeça
Respirei fundo
Acabei tratando-a como demente
Minimizando a sua autointitulada prolixidade mental!
Porém, a vida da malograda rã não durou muito
Uma inclemente tempestade abateu-se sob a poça de água
Onde durante alguns meses reinou prepotente e insolente
E um imenso caudal de água
Correu feroz até ao mar
Levando a rã até aos braços de Neptuno,
Ao tomar contacto com o sal da água
A rã desfez-se em cinzas
Que, mais tarde, aportaram até à praia
Por fim, o vento dispersou as cinzas da rã premonitória
Cumprindo-se o versículo bíblico:
És pó e ao pó voltarás !
A música
Transparente e rebuscada
De Robert Glasper
Soa ao de leve
Na manhã ainda precoce
O dia vai nascendo paulatino
Como o sol a deslizar
Nas longas tardes de verão
Flamejante, imenso
De vontade infinita
Quedar-se eternamente,
Mas o dia
Este dia que paira na minha cabeça
É um turbilhão penoso
Debaixo de um caudal de chuva
Que caí sem ininterruptamente;
No meio da atuação do músico
O piano elétrico salienta-se
Enfatizando a sua importância
No reportório do músico
Pianista
Que também é um bem-sucedido produtor musical,
As notas inspiradas do seu teclado
Sobressaem sobre as demais
Dos músicos que o acompanham
A sua locução
Que irrompe, muitas vezes, nas suas atuações
Transparece segurança
De uma voz imensa e ponderada
Carregando uma calma serena
Distante daquilo que é o seu imenso talento musical
Que se manifesta de uma forma avassaladora
Que só uma mente inquieta e prolixa de criatividade
O consegue
Em definitivo, é um guerreiro este músico
Sempre pronto a assumir riscos
Aventurando-se em todos os sons
Que os seus dedos parecem sempre buscar
Na música inesgotável
Que parece existir no seu interior
Como os arrojados salmões
Que se lançam acima do nível da água
De uma levada para a outra
Na altura da desova
Na busca da pureza e da serenidade das águas
Que acolherão os milhões de ovos
Que assegurarão a continuidade da espécie!
De repente, salto para o Grande “Bird”
Que carrega o seu virtuoso saxofone
Que nos seus lábios parece ganhar vida eterna
Tão precoce se foi deste mundo
Deixando-nos a harmonia
Mesclada de garra e fantasia…
Ainda hoje não resisto na emoção
Quando ouço este que foi
Um dos maiores do jazz
O som inigualável do saxofone!
“Lá fora está chovendo
Mesmo assim eu vou correndo
Só pra ver o meu amor
Pois Ela vem toda de branco
Toda molhada linda e despenteada, que maravilha
Que coisa linda que é o meu amor…”*
Incerta chuva
Acossou-se
Abatendo-se
Sob a minha cabeça
Onde repousa
Um emoldurado topete
Rijo
Penitente
E esdrúxulo;
A luz noturna
Que emana do céu
Lunar e inspiradora
Há muito que se ausentou
Oculta nas densas nuvens
Que não saem do alvor
Coladas às rotinas
De dias e dias
De impaciência
Na vã esperança
De que cesse
Mas sem que se vilumbre o decreto
Que dite o seu fim
Fustigando o nosso entusiasmo
Abrindo brechas
Na nossa célere presunção
E o único que nos aquece
A honra, a glória e que nos tranquiliza
É a Mulher de Branco
Que debaixo de um vendaval
Chuva impiedosa que caí incessante
Se passeia
Meneando as mãos
Gingando o tronco
Agitando a longa cabeleira
De finos cabelos
E canta
Canta sem cessar,
Mesmo que lá fora
Esteja chovendo;
Por fim,
A chuva cessa
O dia desperta
Baço
Denso
Sem que eu vislumbre a dançarina de rua,
Uma dúvida se abate,
Por onde anda a Mulher de Branco?
A música repete-se interminável
Sem que possa perceber
Onde paira a M ulher de Branco?
* letra da música "que Maravilha" de Jorge Ben Jor e popularizada por Wilson Simonal .
Uma lágrima rolou pela tua face
Deixando-te pronta a mergulhar no mar
Que guarda os teus inconfessados sentimentos,
Mas colhida a lágrima
Arregaçaste as mangas
Pugnaste pela vida
A areia que acolhe essa tua explosiva sensibilidade
Que em noites de solidão
Exaspera ainda mais
Tua tão débil solidão
E se refugia nas viagens do tempo
De uma mente há muito aprisionada
A uma punição tão seca,
Impondo-te um olhar único
Aos acontecimentos da vida
Destituída dos sonhos, dos desejos, das vontades
Que acabam asseando a alma
Como a lágrima limpa e purifica os olhos
E nessas expedições, em transe,
Debaixo da escuridão brutal
Mas, ao mesmo tempo, que te protege de certos olhares
Se eriça esponjosa e salmonada
E que acaba vertendo as águas freáticas
Que se escondem no mundo subterrâneo que é só teu;
E mais uma noite
Mais um sonho cumprido,
Que seria de ti
Sem esses instantes em que dás ao teu corpo
O ritmo dos desejos que se exasperam
Por uma vida tão larga e tão insonsa?
Deixaste de ter sensibilidade à gustação dos alimentos
Que passam nessa tua língua
Profunda e tão sedutora
E acabaste, engolindo-os,
Na sofreguidão do tempo
No resguardo de uma esperança
Que nunca morreu em ti
Acalentada apenas pelos teus murmúrios:
Um dia derrubarias esse mundo
Tão pesado e que pode ser tão letal
Que não te consumiu na exaustão das águas paradas
E que te fez mais forte!
Agora, acabaste por encontrar a voz
Que há tanto desejavas
Que te deitou nesse leito
Povoado de pétalas de rosas
E fez submergir a voz do erotismo
Que estava silenciada
Escondida
Delapidada
Nesse sacrifício
Em que te impuseram viveres
Mas que tu
Ardilosa
Acabaste por te libertar das amarras
E partiste nessa embarcação frágil
Mas, agora, tua
Onde aportarás
Ao destino que é teu
E só tu o sabes até ele te levará!
De um lado,
A música celestial e harmoniosa
Que soa das trombetas do órgão;
Do outro,
O silêncio
Cruel e absoluto
Onde o diabo
Uma vez mais
Mostra toda a sua dimensão
Mesmo que,
Desta vez,
O faça no âmago de uma igreja
Contígua a um convento beneditino!
A luz que penetra no interior da nave
Submissa e assustada pela presença Dele
Acaba rendida aos ditames do carrancudo
Ao eterno
Invisível,
Ao inocente
Ao jubiloso
Ao tenaz
Ao copioso
Mas não estagnado
Pela suprema maldade
Vivendo na penumbra do engano
Não assumindo a sua vileza
Não se destapando
Mas avocando permanentemente o embuste
Como forma de vida
Nunca exibindo o seu rosto,
Haverá por aí alguém que já o contemplado?
Vive ardiloso
Pela ilusão que o seu rosto cria
No interior da igreja
Refrega-se na luta
Entre a verdade e a mentira
Versus entre a Ilusão e a realidade;
De um lado,
Emparedado no engano
Na ilusão firme de uma grande mentira
O órgão suportado
Pelas carrancas do belzebu
Que ali parecem ter sido plantadas para criar um simples embuste
Do outro,
Contíguo à luz que penetra pela janela,
O órgão que nos consegue emocionar
Pelos seus lindos acordes
Que nos dão a música que nos eleva até ao paraíso
E que tanta fúria
Tanta cólera exaspera
Este odiado mafarrico
Que aqui se dá à estampa
Com a desfaçatez gravada
Com a maldade tingida
Mergulhado na acidez mortal
Do mar que não esquece nunca
A areia rugosa e movediça onde se deita
Para descansar
Pois,
Ele melhor que ninguém sabe que:
“Não há bem que sempre dure, nem mal que nunca se acabe ”!
Imagens esculpidas que se encontram no interior da igreja do mosteiro de São Miguel de Refojos, em Cabeceiras de Basto; "...figuras demoníacas, máscaras, também conhcidas por carrancas, colocadas dos dois lados interiores, logo à seguir à entrada da igreja ..." página 7 do livro "Venho conhecer Cabeceiras de Basto com os cinco sentido" , edição da Câmara Municipal de Cabeceiras de Basto.
Breve passado
Presente que se prolonga
Interminável
Até à eternidade
Futuro
Que mais não é do que
Este longo tempo contemporâneo
Que não se alimenta
Do que está para trás,
Mas porque te quedas, então, nas copas das árvores?
A oscilar
Intermitente
Num equilíbrio perfeito
Longínquo ao pulsar da vida
A admirar unicamente o sol
Que irrompe na alvorada
Que resplandece durante o dia
Que se oculta tenaz e lentamente
Quando a noite desce na suavidade
De um dia de cada vez?
A vida passa lá em baixo
Mas tu não esmoreces
E mesmo as águas do rio
Que corre ávido de pensamento
São para ti uma recordação apenas
De quando eras jovem
E a vida para ti apenas tinha futuro,
Mas mesmo que não vejas
Nesse altivo e recôndito lugar
Onde pareces querer tocar o céu
Divertida no terraço onde avistas o horizonte
O que o presente lá em baixo
Concede aos que contigo convivem
Deixa-te
Alvitrar
Submersa no silêncio apenas
Interrompido pelo vento que te belisca a alma
Que nunca se esquece de sacudir
Essas pernadas mais altas,
Onde a vaidade nunca esmorece,
Deixa-te
Pois
Quedada na soleira dos dias
A vislumbrar essa leve contemplação
Que tanto te incomoda:
Testemunhar as vilezas da alma
De algumas existências!
Mas tanto te agarras a esse limbo altivo
Que já não vislumbras a terra que te alimenta
A erva
Pasto de tantas espécies
A água
Que irradia alento
Ao pulsar da cidade
Lá em baixo
Que se basta a si própria
E que olha para as árvores
A contemplar unicamente
O grosso tronco que as sustenta
Mas um dia descerás do pedestal
Onde em certos dias revestes as ausências
Do que deixaste para trás
Reverberas o trilho que te acompanhou
E sem mediação
Do Omnipotente
Mas acompanhada pelas tuas preces
Revês-te
No que a vida te concedeu
Amaste o que pudeste amar
E sem que te deixasses equivocar
Pela vã trincheira de uma sedução;
Para ti só existe o transcendente
Deixa-me, ao menos, mostrar
As linhas cavadas nas serras
Onde homens poderosos
Plantaram as mais exultantes castas de uvas
Para que todos os anos o vinho jorre dos lagares
E te dê o encantamento de uma ilusão
Que a vida tanto teima em não te mostrar!
Vontade não é bondade
É querer servir
Permanecer sempre no mais alto
Não temer a fúria dos mares
Enrolar-se nas suas ondas
Mesmos as mais ferozes
Experimentar o sabor salino da areia
Levar com a força do vento
Que sopra interminável
A colidir contra o dorso
Viajar até longe
Voar
Voar
Como uma leve pena
Até que a noite caia
Como sempre
Ameaçadora
E regresse a ave perdida
Que há em todos nós
A tentar fugir daquela escuridão;
Se há vaidade na escolha
Há desespero no impasse
E cada dia
É uma eternidade
Cada instante
Uma espera interminável
Uma secura medonha
Que, avassaladora, persegue
A ilusão de uma vida feliz
A vontade de terminar
A construção da casa
Onde mora o coração
Que aquece a paixão
Onde reside o pulmão
Que acalenta a esperança
De uma suave caminhada
Por fim, acreditar
Que a espera interminável
Que parecia consumir todas as energias
Cesse
Nessa viagem
E voltem a surgir
Aqueles petizes olhos sorridentes
Que, certo dia, zarparam na barcaça
Com as velas insufladas
Ao vento
E mareou nesse mar da quietude
Que acabou deixando-os loucos de podridão
Corroídos por dentro
Mortos por fora
Sem que sobejasse já
Um qualquer sentimento
E passou, pois, a vida a ser guiada pela indiferença
Adiar…adiar…
Até que a embarcação
Parasse de vez numa enseada
Onde felizes homens e mulheres
Derramaram as suas vestes
Expeliram o rancor e a revolta
E passaram a viver cada momento
Único das suas vidas
Esquecendo as juras ao circunstancialismo
Queimando as suas indumentárias
E desnudos
Não enjeitaram a felicidade
Que tanto porfiam
Até que finalmente a alcançam!
Mas quem deseja o mar sereno
Sem ventos e ondas
Aventure-se solitário
Nessa quietude irritante
Que exaspera quem tanto espera da vida!
Desperto
Imerso numa espuma de intolerância
Que durante tanto tempo me levou ao silêncio
Temente das minhas próprias ações
Irrepleto
Desconfigurado
A olhar
A contemplar
A refletir
Sobre os mistérios que residem nas profundezas da essência da vida,
Se do mal eu servi a excessos
Do mal fui servido a descomedimentos;
Resisti
Custeado no granito do meu carácter
Acomodado no leito da minha alma inquieta
Sempre ávida em conhecer pessoas diferentes
Lugares dissemelhantes
Uns que brilham mais que outros
Porque sou de todos os lugares
E não sou de lugar nenhum;
Pratico uma existência
No mais puro anonimato
Sem querer pôr-me em bicos de pés
Mostrar que sou mais que os outros
Banhando-me na solidão
E de mim
Só o sabe
A quem eu concedo a chave
Ou então aqueles mais afoitos
Que nada mais têm na vida do que perscrutar a vida dos outros
Sem se preocuparem em indagar:
Porque correm os rios sinuosos e incontrolados dentro de si?
Mas este meu isolamento voluntário,
Para uns letal,
Para outros
Retemperador,
Que escolhi viver há muitos anos,
Dá-me voz e chispa
Quando me deparo com o branco polar
Que emana do monitor do meu computador
A tela com que pinto os quadros das várias narrativas
Um misto de real com muita fantasia à mistura
Com que foi confrontado no decurso da minha vida tão diversificada:
Iludindo uns
Iluminando outros
Encolerizando uns poucos
E indiferentes uns tantos;
A liberdade de pensamento
É generosamente ilimitada
E quanto mais pensamento
Maior fulgor
E se existe mistério na sedução
É fácil de explicar:
Não a tem quem quer
Não a tem quem estuda para a ter
Ou acha que vociferando
Ou Palavreando incontrolado
A alcançará alguma vez,
Tem-na quando emana da sua natural essência!
Difícil de entender?
Nem por sombras!
Que o tempo mortiço se avizinha
Mas que, todavia, não se anuncia,
Que irromperá cinzento e bafiento
Carregado de chuvas e ventos
Que acabarão limpando a alma
Anunciando a despedida do verão…
Olho, então, para trás
Para alcançar o incandescente mês de agosto
Pai desse outono que vai chegar
Filho do verão que passou
Transpondo
Sem retorno
E sem saudade!
As folhas, ainda esverdeadas, das colossais árvores
Acabarão caindo ao solo
Jazendo flácidas e enrugadas
Erguendo o leito onde se deitará a esperança;
As águas que jorrarão do céu
Varrerão os excessos
Pejados de sentimentos.
Mas as folhas mover-se-ão ao de leve no chão
Numa dança ondulante
Que acabará por encantar até as mais singelas ervas
Abrigadas pelos troncos dos plátanos gigantes
Que infundem respeito e dão glória.
Nesse campo da feira inolvidável!
Planta solitária
Que traja de amarelo
Que exibe sorriso rasgado
Que se mostra bucólica
Infatigável
Irrequieta
E lasciva
Margarida…
De súbito,
Lança-me uma frase
Acorda-me
Da letargia final de um verão tão atípico
Acabo por compreendê-la
E digo de mim para mim
Aquilo que ela me confidenciou:
- Gostei da terra arável que há em si!
Outono de 2019.