![220px-Ravi_Shankar_2009_crop.jpg]()
É pelo dedilhar dos teus dedos
Que se agitam eruditos e galopantes
Numa dança auspiciosa
Que parecem levitar sobre as cordas da velha sitar
Nesse movimento ondulante
Ora veemente
Ora calmo e doce
Que mostras todo o teu virtuosismo!
A Índia
Essa colossal região do globo
Que doma, amança os mares mais agitados
Capaz de quebrar o gelo que separa as culturas
Servida pela sua métrica musical
Os seus ritmos apressados
Que parecem as suas gentes a deambular nas cidades
O calor avassalador
Não dá descanso ao subliminar tigre
Um símbolo da força e do poder indiano
Pululado dos palácios coloridos
Dos velhos marajás
Que vivem do passado grandioso
E que hoje se alimentam
Das esgueiras que sustentam as amontoadas salas
Rodeados de uma paisagem interminável
Que celebra todos os dias
Os alvores matinais
De sóis que despertam sempre tão cedo
Envoltos numa bola avermelhada
Que parece raiada de sangue
E que celebra essa música sublime
Do velho tocador de Sitar
Mas a Índia
Está dentro de nós
Com aquela grandeza de cultural milenar
Palco de tanta mortandade
Crueldade mesmo
Mas tanta epopeia
Também se pode afirmar
Da sua doce forma de ser
E dessa palavra mágica
Que dá pelo nome de Índia!
De repente,
Ouço o colorido pavão
Com as suas vestes azuis
Que ecoa o seu canto pela planície
À espera de uma companheira para copular
De noite nas árvores
De dia no chão…
Afinal o velho tigre emerge discreto
De sitar no regaço
E toca furiosamente a raga
Tão acutilante
Que me rendo à figura do mestre:
Ravi Shankar!
Respiras
Ainda
O ar da liberdade que adoravas
Ainda que esse respirar seja já um leve sopro
Que já não alimenta essa tua velha carcaça
E é nesses instantes de silêncio
Entrecortados pelo arfar do ar que te entra nos pulmões
Que, lentamente, te vais despedindo
De mim, de uma vida prazerosa,
E eu regozijado com o privilégio que foi ter-te estes anos todos;
Longa vida canídea a tua
E por mais que olhe para trás
Estás sempre omnipresente nas minhas memórias
E mesmo com tantas pessoas que tão mal me fizeram
E desaparecerem, esfumaram-se
E outras que tão bem me fizeram
Incluindo, parirem-me
E partiram
Mas tu velho amigo
És e serás sempre diferente de tudo e de todos;
Embora não o tenhas feito ainda, mas pressinto a tua partida está para breve;
Desde os primeiros instantes
Ainda como cachorrinho
Perseguias-me sem cessar
Parecia que o teu mundo era o meu
Olhavas-me com total enlevo
Com uma adoração que só os cães o sabem fazer
Como não te poderia adorar
Meu lindo cachorrinho?
Mas agora que assisto ao dealbar da tua última partida
Olho-te já com a recordação de 17 anos de vida em comum
Na qual foste tudo para mim
E como gostavas de te sentar a meu lado no sofá
Com o olhar deslumbrado
À espera de um afago ou de um olhar enternecido…
E nestes últimos instantes de vida
Pareço ouvir o teu ladrar
Os teus gemidos
A força da tua determinação
Só para estares onde eu estivesse…
Mas isso são já memórias
Apenas
Porque o que eu vejo é a tua cabeça
Que se agita suavemente
Para cima e para baixo
Com um movimento pendular
A teimar em prolongar a tua vida
Para estares mais uns instantes comigo
Mas sinto-te cansado e sem retorno
Alquebrado e tonto
A serpentear na frente do meu olhar no escuro
A aguardar que o barqueiro de vestes negras
Te leve até à outra margem
Que ninguém até hoje ousou conhecer
E tu
Depois desta derradeira viagem
Aguardarás que eu transponha o rio
com o barqueiro de vestes negras a meu lado
Para nos reencontrarmos na eternidade
E voltarmos a ser o que sempre fomos
Unidos pelo destino
Separados ocasionalmente
Ligados eternamente!