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Artimanhas do Diabo

Artimanhas do Diabo

OS MOINHOS

Giram

Ou deviam girar

As pás dos moinhos

Naquele movimento simplório

Naquela cadência sincopada

Saudosa e límpida

Debaixo daquele ruído feito de pedras

De quando moíam os cereais

E os transformavam em farinha

Que tantas bocas alimentavam

Na metrópole

Que se vangloriava

Do imenso e disperso

Território colonial

Nos quatro cantos do mundo!

 

O vento adensa-se sob a colina

Que espreita arrepiada

Nesse constante movimento de olhar

O vale lá em baixo

E sem nunca se cansar e dispersar

Mirando geométricos vinhedos

Tentadoras oliveiras

Dispersas habitações

 

Mas, por vezes, o vento berra mais alto

Sopra mais forte

Naquele vai e vem constante

Para não se deixar enganar

Pelos dispersos casais que visitam a colina

Que olham para o altaneiro edificado

Com um misto de admiração e de rejeição!

 

Os moinhos respondem

Em coro

 Aos soluços do vento

Que não se antecipa  

Com as pressas das gentes

Que olham os rústicos moinhos

De paredes empedradas

E telhados de ardósia

Reconstruídos e renovados

Como se fossem pedintes

Que,

Lavados e barbeados,

Não deixam de ser pedintes!

 

Acentua-se,

Ali naquele alto da colina,

Pelas palavras dos visitantes

E pelo matraquear das selfies

 Que tentam aprisionar o momento

Mas impedem-nos

De sentir a beleza do lugar

Pelo encanto que foi e tem sido

O desafio de preservar estes velhos moinhos

Que deixam as gentes daqui

Pejadas de um pujante orgulho

Mas cativas de uma certa pobreza

Que parece incrustada nalgumas gentes da montanha

 

Mas ninguém se questiona

Que ideia foi aquela

De construir um monumento kitsch

Naquele santuário de contemplação?

 

Até o vento

Senhor de tão sábia prosápia

Que não se esconde

E expõe sempre os seus pontos de vista

Com altivez homérica

Com orgulho napoleónico 

E de sentimentos resplandecentes

Num dos raros recantos

Onde se apresenta a exibir as suas barbas

Sinal de uma certa sabedoria feita de experiência

E os seus longos cabelos que lhe caem pelos ombros

Como ramadas suspensas nos arames

Não parece satisfeito naquele santuário  

 

Ele próprio

O vento

Não se cala

Exibindo pujante e orgulhoso

O brasão gravado em pedra

Nas paredes da sua casa

Rendendo a sua justíssima homenagem

Ao deus Éolo

 

E como se sentirá esse deus

Tão antigo como o pensamento

Com aquela omnipresente figura

Erguida num pedestal

Que nos remete para um sentimento

Tão inglório como ridículo?

 

Fará jus

Ao kitschianismo

Mais inenarrável

E até Don Quixote

Se levantará da sua tumba

Nessas bibliotecas onde descansa em paz

E tentará derrubar

A “santa” que emerge

Desse altar

Com a sua lança

E a sua demência

Que de igualha se vê

Naquela colina que bem podia ser sagrada

E não o é!

 

E Torga

Que tão magistral cantou

A beleza dos lugares do mundo

Grita, desesperado, de pergaminho na mão,

À sua tripulação

Uma das suas odes mais imperiais

Que, desta vez,

Deixa o vento de pele eriçada

E sem palavras:

 

“S. Leonardo de Galafura, 8 de Abril de 1977

O Doiro sublimado. O prodígio de uma paisagem que deixa de o ser à força de se desmedir. Não é um panorama que os olhos contemplam: é um excesso de natureza. Socalcos que são passados de homens titânicos a subir as encostas, volumes, cores e modulações que nenhum escultor pintou ou músico podem traduzir, horizontes dilatados para além dos limiares plausíveis de visão. Um universo virginal, como se tivesse acabado de nascer, e já eterno pela harmonia, pela serenidade, pelo silêncio que nem o rio se atreve a quebrar, ora a sumir-se furtivo por detrás dos montes, ora pasmado lá no fundo a refletir o seu próprio assombro. Um poema geológico. A beleza absoluta».

Miguel Torga In “Diário XII”

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