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Artimanhas do Diabo

Artimanhas do Diabo

A MORTE DE ADÓNIS *

Deitado em cima de um extenso véu

Que lhe cobre apenas as partes íntimas

Que, ali,

Mais se assemelha a uma mortalha

Do que um prenhe agasalho

Que parece ter sido destinado

A manter intacto esse belíssimo cadáver 

Que jaz no solo sem vida

Surge-nos Adónis

Adormecido eternamente 

 

O javali que o golpeou,

Não se sabe se com vida ou sem ela,

Esfumou-se

Mas deixou assinaladas as suas presas

Nas partes erógenas

E pudibundas de Adónis

 

Tão pudibundas

Que uma das Graças

Envolveu-o com o seu longo véu

Para esconder a brutalidade

Com que o animal decepou

Tão belíssimo gigante

A quem, para ser um deus grande,  

Igual às divindades superioras,  

Faltam-lhe apenas asas! 

 

E de que serviu a Adónis

Fazer-se acompanhar de lança?

Se o animal que o golpeou

Tinha a força de uma tempestade?

E a manha de uma serpente?

 

Vénus parece lamentar-se eternamente

No seu corpo robusto

Rosto fino e circunflexo

Cabelos crescidos, doirados

Tombados para o seu lado esquerdo

Pois

Mesmo ouvindo os gritos desesperados de Adónis

Não lhe pôde valer

 

Vénus afaga suavemente a cútis de Adónis

Recolhe a sua mão pendida, já sem vontade, 

E deixa-a entregue à sua robusta coxa

Para lhe dar o alento

Que ele necessita

Na hora em que a morte venceu

E a promessa de novas culturas se erguerá 

Neste ciclo de vida

Em que o calendário nos atém a todos

 

As três Graças

Como se fossem Esfinges

De olhos cerrados

Parecem querer esconder a dor no seu interior

 

E eis-nos Cupido, com o desespero no rosto,   

Criança que é

Mas sem tempo de o ser nunca 

Pois filha é

Do amor e da guerra!

 

Pequenas manchas de sangue espalhadas pelo solo

Completam os horrores deste apocalipse  

Que comprovam a violência perpetrada pelo ataque do javali

 

Um dos galgos

Observa atencioso

De olhar inteiro, questionador e felino,

As preces

Em que as Graças parecem exclusivamente concentradas

Acompanhando cada uma das palavras

Que soam solenes e justas

Na hora de uma morte tão insubmissa, brutal e soez

 

Mas Vénus não está a carpir somente

Mune-se da sua longa manta de cor sanguínea

Para se defender dos perigos

Que do solo parecem advir

Untando os seus pés nesse manto acolchetado    

 

O outro dos galgos

Mais canídeo e menos mitológico

Não se espanta com a morte

Nem com o feminino nu ali presente

Nem com os horrores ali acoitados    

Cheira, desconfiado, uma pequena mancha de sangue

Que jaz espalhada no solo

Nessa mistura dos líquidos resultantes da peleia entre Adónis e o javali

 

E ao longe um céu rasgado por nuvens

Que se vão juntando épicas

Que parecem querer anunciar a tormenta

 

Em fundo escuro

Carregado de extensa folhagem

Por trás de Vénus, das três Graças e de Afrodite, 

Emerso em imagens que nos horrorizam

Ergue-se um gigante tétrico

Que parece disposto a envolver todos

Naquele abraço sombrio dos seus ramos

Na proteção fúnebre das suas folhas

Anunciando esse inevitável caminho sem retorno

E que para nós simboliza

Entrar nos aposentos

Onde a morte se anuncia ciclicamente!  

 

*Quadro com esse título do pintor flamengo Peter Paul Rubens que se encontra atualmente no museu de Jerusalém.  

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