A RIA
Alguns chamam-lhe
Simplesmente
Ria
Outros
Barrinha
Outros
Lagoa
Já houve até quem lhe chamasse
“Gafeira”*
Uma sedutora sereia
De longa cabeleira dourada
Acabadinha de vir do mar
Submerge das águas calmas da Ria
E sussurra-me ao ouvido:
“Esta água cercada de espesso caniçal
É mar que se esquece da sua existência
Calmo território dos amantes
Que amenizam as agruras da vida
Navegando
Nas suas águas serenas
Confessando a sua paixão!”
Mas o povo teima em dizer
Que aquela água é um filho rebelde
Fruto de um amor clandestino
Do mar com a lua
E por isso
A Ria
Vive nos silêncios
Mas assumidamente
Amando o pai
Qual Electra dos tempos modernos
Escuta os seus rugidos
As suas preces
Os seus excessos
E nas noites de lua cheia
Fita a mãe brilhante e esplendorosa
Na sua firme resolução
De um escuro firmamento da noite
O braço
O canal
O satélite
Do mar
A ria…
Nas noites de inverno
Acorda alvoraçada
O vento forte, a chuva, a solidão
E o eco constante vindo do mar
Mas a Ria sossega
Acaba adormecendo no regaço da vegetação
Que a embala contando estórias sem fim
Que a comovem e encantam
Mas no meio do canavial
Há um mundo enorme e desconhecido
De vidas microscópicas
Que nos observam
E é deslizando na aventura de uma viagem
Pelas suas águas calmas e retemperadoras
Que encontramos um mundo abnegado
Em busca da sua própria liberdade
Mas o mar ameaça
Constantemente
A liberdade da ria
O mar
É estrepitoso
É Poderoso
É Manipulador
É Violento
É Aterrador
A ria
Como uma enguia
Circunda no caudaloso recinto
Prolixo território de espécies vegetais
Que só proliferam em habitats como aquele
Mas,
Resvala como gorduroso fio de azeite até ao mar
E este,
Que se assume ávido predador,
Traga-o num ápice
Sem se importar
Se a água que penetra no mar
É minha água
Ou
Água de outra água
E no exato instante em que a recebe
Faz daquela água
Sua própria água!
* Designação da aldeia, puramente ficcionada pelo José Cardoso Pires, no livro “O Delfim”.