ÁRVORE CENTENÁRIA
Naquele tempo a sua pequena aldeia ficava encravada numa vilória transmontana, isolada do resto do mundo. Bragança, embora ficasse a cerca de meia centena de quilómetros, mas desse longínquo período uma viagem entre as duas localidades parecia uma eternidade!
O rapaz cresceu na miríade onírica de que um dia seria alguém, sairia daquela aldeia e nunca mais ali voltaria.
E de facto assim foi; rumou a Lisboa, onde levava na mala esse livro tão diferente e até algo estranho para aquilo que foi a obra Camilo Castelo Branco: “A queda de um anjo”. Via nele uma advertência para aquilo que poderiam ser as malignas tentações lisboetas, pois embora nessa época já não era como a de Camilo, mas viviam-se os tempos da Segunda Guerra Mundial e embora Portugal se tivesse conseguido manter neutral, mas essa neutralidade era paga bem cara ao país que tinha que agradar a gregos e a troianos, ou seja, aos alemães e aos aliados o que, como se imaginará, era um exercício tão difícil e até quase impossível de conseguir, só possível com grandes recursos financeiros canalizados para esse efeito.
A sua grande paixão sempre foram os animais! Pelo que não podia ser outra coisa na vida que não fosse tirar um curso ligado a esta temática. Mas queria sobretudo ter uma profissão que lhe desse o reconhecimento social e económico, quando se trata de alguém que descende de pessoas ligadas ao comércio de peles, uma grande maioria deles, como se sabe, que lhe corre sangue judeu nas veias.
Lembrava-se ainda das vezes que o Dr. Isaías, um veterinário que se deslocava de Bragança até à sua aldeia, para atender às necessidades das pessoas e, consequentemente, ao seu bendito gado, e a forma como era recebido por todas as almas, havia até uma imagem que nunca o abandonou e acompanhou-o ao longo da sua vida, o veterinário a lavar as mãos ensanguentadas num alguidar, as toalhas de impecável linho que lhe eram postas à sua disposição para que ele as lavasse, mas lembrava-se ainda do veterinário sentado à mesa da casa dos pais a comer normalmente o que melhor havia naquela casa. É que mesmo não havendo dinheiro para pagar ao veterinário, ao menos havia sempre boas alheiras, ótimo presunto, excelentes enchidos, sem esquecer o botelo, esse enchido feito de ossos, e o excelente pão que se cozia todos os dias que deixavam o Dr. Isaías rubicundo e extasiado com o que sempre lhe punham no prato…
O rapaz, aos poucos, transformou-se num homem bonito, charmoso e encantador. E até aquela rudeza que lhe advinha das suas origens e do convívio com os da sua criação foi desaparecendo para dar lugar a salamaleques, a frases muito bem estudadas, com o ênfase colocado em algumas palavras que lhe permitiam criar impacto sobretudo no público feminino.
Conheceu e acabou por casar com uma alfacinha, de sangue espanhol, cheia de salero e muito zelosa do seu marido e da sua prole.
Uma vida inteira dedicada a cuidar dos animais, que histórias não teria ele para contar sobre os nascimentos, a sobrevivência e as mortes de tantos animais que lhe passaram pelas mãos e em que ele foi testemunha privilegiada? E, já naquela época, havia gente que se importava mais com os animais do que com as pessoas, por isso é que o veterinário sempre foi alguém tão importante como o médico, sobretudo em certos meios onde a importância dos animais tem uma enorme preponderância.
Ao fim de noventa e cinco anos de vida, toda ela dedicada à sua profissão e à família, amando sempre a esposa e cuidando das três filhas, incutindo-lhes o respeito pelos mais humildes, mas também que o trabalho valoriza as pessoas, e a busca de um sentido na vida, na procura da manutenção de uma ética inabalável pelos valores judaico-cristãos, acabou definhando por essas horríveis bactérias que vivem nos hospitais, chamadas de multirresistentes, e já nem sequer se conseguiu despedir com dignidade das filhas. Elas ainda puderam despedir-se dele, e numa segunda-feira, dia tão improvável, se é que há dias prováveis para a morte ou dias especiais, cessou de vez de respirar, desligaram a máquina e foi-se deste mundo.
As filhas inconsoláveis acreditam que o pai partiu por sua própria decisão porque ele dizia, frequentemente e com alguma graça, que a mulher, lá onde se encontrava, há muito se debatia com uma profunda solidão e que muitas vezes, em sonhos, ouvia-a chamar por ele!
Esta é a história de mais um guerreiro que passou todas as tormentas, dobrou o Cabo da Boa Esperança, aguentou-se firme na navegação e quando navegava no tranquilo Índico uma pequena vaga e uma distração fizeram com que a sua embarcação fosse derrubada e acabou engolida pelo mar de tons de forte coloração azul.
O corpo perdeu-se nesse imenso oceano e nunca foi encontrado; mas a alma, dizem os que puderam assistir ao náufrago, essa foi vista em velocidade de cruzeiro a caminho do firmamento e desapareceu num ápice. Hoje, quando se olham as estrelas no céu, vemos duas muito juntinhas que brilham sem cessar; as três filhas dizem sempre quando as observam: são os pais que ali estão!
À venerável árvore, de seu nome, Alcino do Fundo Lopes! Uma vida dedicada aos animais, centrada na família, um resistente, um otimista, a minha homenagem sincera e que é, ao mesmo tempo, um tributo aos homens e mulheres desta geração tão sofrida.