CLARICE LISPECTOR
Ouvi-te a primeira vez
Como desejaria ouvir uma voz
Tão poderosa como a tua
Nadando nos odores de um lindo canteiro de rosas
Falaste com essa tua voz
Que parecia escutar os fluídos do tempo
Que parecia querer tudo, mas sem querer nada,
Apenas entender o mundo
Para melhor se tentar entender a si própria
Sem te dizer nada
Que pudesses e quisesses ouvir
Ouvi-te sem ouvir o teu coração
Ouvi-te sem ouvir com o meu coração
Ouvi-te simplesmente com a razão
E com o disfarce dos cínicos
Que não sabem a lição!
Mas tu foste por aí adiante
Não quiseste saber se eras escutada
Se tinhas simpatias
Se tinhas a corte a aplaudir-te
Se tinhas toda a gente a venerar-te
Tinhas essa certeza que só as grandes figuras têm:
Na sua obra, no seu mérito, na sua valia
E tinhas a certeza que um dia,
Mais tarde, serias lida
Estudada pelos académicos
Escutei as tuas densas frases
Que soavam simples, mas angustiadas,
Proferidas no idioma açucarado
E acabei rendido ao teu labor onde rendilhavas palavras
E tecias belos casacos que expunhas em cima da tua secretária
Comecei logo a amar-te
Comecei a sorver cada palavra, cada frase, cada livro
Passei a amar as tuas palavras
Passei a amar-te a ti, também!
Mas tu, insubmissa como ninguém,
Desconfiada e desconcertante
Se pudesses regressar
E ouvisses o culto que por aí vai
Lançar-te-ias, furiosa,
Sob a tua velha máquina Remington
Esticarias os teus dedos longos e macerados
Pelos milhares de cigarros que fumaste ao longo da tua vida
Que, como as palavras, foram a tua única paixão
E lançarias outra vez o caos
Com os teus inigualáveis monólogos
Plantados selvaticamente nessa floresta amazónica
Infindáveis e resplandecentes
Nunca te fixaste numa árvore em concreto
Mas vias tantas e fulgurantes árvores
Que só o simples avistamento
Te estimulava esse prazer tão intenso
Tão imensamente visceral
Como se fosse uma confluência de rios
Que desaguam no mar
Que testemunham tão omnipotente orgasmo
Mágoa da tua cútis
Onde constavam marcas desse incêndio
Que quase te destruiu a vida
Viste um teu rebento
Que saiu das tuas entranhas
Como muitas das tuas palavras
Tornar-se louco,
Para muitos,
Iluminado,
Para alguns,
Pois loucura não será ver mais adiante?
Se, como dissestes,
Escreveste para salvar alguém,
Acabaste por te salvar na escrita
Sim na escrita
Que vicia quem dela se aproxima
Que envolve e submete aos seus ditames
E acaba a escrever diariamente
Judia, de olhar soberbo e provocante,
Que nunca se deixou amansar
Que nunca se deixou arrefecer
Que sempre se levantava cedo
Ainda a escuridão, mais pujante no país tropical,
Envolvia os cantos da casa
E tu acendias cigarros atrás de cigarros,
Beberricavas dessa chávena de café
Que estimulava tanto a sua imaginação
E te empolgava na escrita
Arrebatadora mulher
Tão soberba e tão altiva
Que ver-te a caminhar na rua
Nesse calçadão carioca
Era avistar a Luz comprometida com a divindade
Iemanjá, rainha do mar
Maria, rainha das mães
Clarice, imperatriz das sílabas;
E que não se apague essa tua verve
Escrita nas tábuas de uma paixão
Que durou uma vida
Mas nunca correspondida
E entregaste-te, assim,
À escuridão iluminada
E, no último instante de vida,
Quando as forças já não abundavam
Puxaste de um longo cigarro
Sentaste-te à tua secretária
Voltada para a tua velha Remington
E ultimaste as tuas últimas palavras
Que bem podiam ser o teu lema de vida:
Vivi, como eu sempre quis viver
Mergulhadas nas águas
Que jamais me assustaram
Desse mar que eu fui sempre
Que soprava ventos e marés
Nas calmas areias de Copacabana!