Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Artimanhas do Diabo

Artimanhas do Diabo

CLARICE LISPECTOR

Ouvi-te a primeira vez

Como desejaria ouvir uma voz

Tão poderosa como a tua

Nadando nos odores de um lindo canteiro de rosas  

 

Falaste com essa tua voz

Que parecia escutar os fluídos do tempo

Que parecia querer tudo, mas sem querer nada,

Apenas entender o mundo

Para melhor se tentar entender a si própria

Sem te dizer nada

Que pudesses e quisesses ouvir

 

Ouvi-te sem ouvir o teu coração

Ouvi-te sem ouvir com o meu coração

Ouvi-te simplesmente com a razão

E com o disfarce dos cínicos

Que não sabem a lição!  

 

Mas tu foste por aí adiante

Não quiseste saber se eras escutada

Se tinhas simpatias

Se tinhas a corte a aplaudir-te

Se tinhas toda a gente a venerar-te

Tinhas essa certeza que só as grandes figuras têm:

Na sua obra, no seu mérito, na sua valia

E tinhas a certeza que um dia,

Mais tarde, serias lida

Estudada pelos académicos

 

Escutei as tuas densas frases

Que soavam simples, mas angustiadas,

Proferidas no idioma açucarado 

E acabei rendido ao teu labor onde rendilhavas palavras

E tecias belos casacos que expunhas em cima da tua secretária      

 

Comecei logo a amar-te

Comecei a sorver cada palavra, cada frase, cada livro

Passei a amar as tuas palavras

Passei a amar-te a ti, também!

 

 

Mas tu, insubmissa como ninguém,

Desconfiada e desconcertante

Se pudesses regressar

E ouvisses o culto que por aí vai  

Lançar-te-ias, furiosa,

Sob a tua velha máquina Remington

Esticarias os teus dedos longos e macerados

Pelos milhares de cigarros que fumaste ao longo da tua vida

Que, como as palavras, foram a tua única paixão

E lançarias outra vez o caos

Com os teus inigualáveis monólogos

Plantados selvaticamente nessa floresta amazónica  

Infindáveis e resplandecentes

 

Nunca te fixaste numa árvore em concreto

Mas vias tantas e fulgurantes árvores

Que só o simples avistamento

Te estimulava esse prazer tão intenso  

Tão imensamente visceral

Como se fosse uma confluência de rios

Que desaguam no mar

Que testemunham tão omnipotente orgasmo  

 

Mágoa da tua cútis

Onde constavam marcas desse incêndio

Que quase te destruiu a vida

 

Viste um teu rebento

Que saiu das tuas entranhas

Como muitas das tuas palavras

Tornar-se louco,

Para muitos,

Iluminado,

Para alguns,

Pois loucura não será ver mais adiante?

 

Se, como dissestes,

Escreveste para salvar alguém,

Acabaste por te salvar na escrita

Sim na escrita

Que vicia quem dela se aproxima

Que envolve e submete aos seus ditames  

E acaba a escrever diariamente

 

Judia, de olhar soberbo e provocante,

Que nunca se deixou amansar

Que nunca se deixou arrefecer

Que sempre se levantava cedo

Ainda a escuridão, mais pujante no país tropical,

Envolvia os cantos da casa

E tu acendias cigarros atrás de cigarros,

Beberricavas dessa chávena de café

Que estimulava tanto a sua imaginação

E te empolgava na escrita

 

Arrebatadora mulher

Tão soberba e tão altiva

Que ver-te a caminhar na rua

Nesse calçadão carioca

Era avistar a Luz comprometida com a divindade

Iemanjá, rainha do mar

Maria, rainha das mães

Clarice, imperatriz das sílabas;

 

E que não se apague essa tua verve

Escrita nas tábuas de uma paixão

Que durou uma vida

Mas nunca correspondida

 

E entregaste-te, assim,

À escuridão iluminada

E, no último instante de vida,

Quando as forças já não abundavam

Puxaste de um longo cigarro      

Sentaste-te à tua secretária

Voltada para a tua velha Remington

E ultimaste as tuas últimas palavras

Que bem podiam ser o teu lema de vida:

Vivi, como eu sempre quis viver

Mergulhadas nas águas

Que jamais me assustaram

Desse mar que eu fui sempre

Que soprava ventos e marés

Nas calmas areias de Copacabana!

 

6 comentários

Comentar post

Mais sobre mim

foto do autor

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2025
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2024
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2023
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2022
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2021
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2020
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2019
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2018
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2017
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2016
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
Em destaque no SAPO Blogs
pub