MUTILAÇÃO
Deixo-te…
Parto...
No imediato deparo-me
Com esta encruzilhada que agora me demanda
Solidão concreta e discreta
Em que fiquei
De ti sobram-me as memórias
Que me poderão cobrir a tua ausência física
Afastei-me
Sim tive que me afastar
Porque tu assim o exigiste
Mas sem nenhuma vontade de o fazer
Agarro-me, por isso, à ideia
Embora carregada de comiseração de mim mesma
E que, todavia, ainda perdura
Que tudo não é mais que um sonho
Mas mergulho rápida na realidade
Que se me depara à minha frente
E na hora da partida
Percebo o que me escondeste
Mas o que me dói tanto quando enceto a viagem
Como se fosse um estilete
Que corta a minha carne:
Partir
Abandonar a casa
Ficar com as crianças
Mas perceber o rio de tristeza
Que corre dentro delas
Em mim
Presente estarás
A deslizar continuamente
Por todos os instantes da minha vida
Recordando-te
Dos lanços da estrada
Que fizemos em comum
Lembrar-me-ei de todas as grandes e pequenas coisas
Desse percurso que fizemos em comum:
Das árvores ou da ausência delas
Dos campos áridos em certos trajetos
Dos aluviões noutros
Essa estrada onde tantas vezes
Nos acompanharam as crianças
E os sonhos de cada um
Com o medo agora estampado nos meus olhos
E com uma certeza:
Há muito que eras consciente que a separação era inevitável
E nesta hora de despedida
Vejo que o teu interesse se dirige apenas para o material
O imaterial morreu
Como pereceu qualquer interesse de ti em mim
Forçaste a separação
A saída
Estiveste apenas interessado
Em me afastar de ti
Para ergueres uma nova vida
E ainda por cima acompanhado
Sem te importares comigo
Eu, todavia, tento cuidar dos afetos
Vesti a minha roupa mais formal
Bebi exageradamente
Extravagâncias várias
Mas não consigo deixar de pensar em ti
Nas crianças e nas muitas certezas que tinha de ti
E vejo agora como tola e ingénua fui
Acreditei demasiadamente em mim
Desisti, pensando que te tinha
Deixei de me interessar por te seduzir
E os sinais estavam lá há muito tempo
Agora vejo-os com toda a nitidez
Mas como é que permaneci tanto tempo preso
Às minhas limitadas considerações?
Este inevitável desfecho
Acaba por nos deixar na triste realidade:
Mais um casal que não resistiu e separou-se
Mas não foi o isolamento forçado em que vivemos
Que acabou nos separando
A rutura já vinha bem lá atrás
De quando deixamos de nos ouvir
De nos importar
De nos interessar
Do que cada um fazia da sua vida
E passamos a ser mais um casal funcional
Preso apenas pelos filhos
Que agora terão dois pais
Se bem que, há muito,
A nossa vida em comum se resumisse a dois pais
Divididos, sós, inseguros e cada um no seu trilho
E não apenas uma entidade
Que irradiasse harmonia!