Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Artimanhas do Diabo

Artimanhas do Diabo

NÃO…NÃO FOI UM DIA PERFEITO!

maxresdefault.jpg

Por baixo da relva

Que eclode viçosa e espessa  

Amplo manto esverdeado   

Jazem sepultadas centenas de ossadas

Naquela terra tão impregnada

De odores e minúsculos seres

Que se alimentam de moléculas putrefactas

 

Necrópole acentuadamente contemporânea

Construída num talhão de cota baixa

Inabitual para estas edificações

Habitualmente edificadas  

Em zonas mais altas

 

Mas,

Abrem-se os olhos

Para deixem fruir a minha alma ferida   

Vasculhar todos os recantos deste cemitério

Onde eu, todavia, não penetrara

 

Incomensuráveis campas alinhadas

Remetem para um imponente desfile militar  

Assinaladas

Revestidas a relva

Harmoniosas e a perder de vista

Que me dão a sensação de frescura e de vida

E não o habitual e gélido mármore

Ou o compacto e escuro granito

 

De repente, no meio da relva

Entre o corredor

Que permite a entrada dos carros fúnebres

E as sucessivas fileiras de campas arrelvadas

Vislumbro um pequeno lago 

Que me ajuda a refrescar as memórias 

Liberta-me dos pecados

Porque água significa pureza e cristalinidade

E nesta pequena mancha aquosa

De aspeto curvo e sinuoso

Vejo a vida como ela é

Ondulante e surpreendente

Ao contrário da morte

Que não tem movimento

Mas todo o seu contrário   

 

O lago dá-nos a dimensão fresca da natureza

Como nos dá a relva 

 

Já as campas de linhas

Tão absolutamente direitas e fixas

Dão-nos a dimensão de como será a morte

 

Penetrando mais adentro

Vejo no exterior de um edifício

As pessoas aglomeradas em pequenos grupos

Mascaradas

Como se cada uma delas  

Estivesse num encontro  

Em que se preanuncia a sua partida deste mundo

Que se olham

Inalteráveis e sem emoção

Que se miram

Mas sem verem os rostos

Na última e derradeira partida

E, estou certo,

Que na hora da despedida

Não haverá emoção no rosto

Porque esse foi-se com a vida

Mas almas despregadas

Como pirilampos nas noites quentes de verão

Que deambulam sem destino

Em volta das iluminações públicas

 

A força do mistério da morte

Parece interpelar cada um dos presentes

Que se agrava ainda mais

Pela dimensão universal desta pandemia

Seja

Uma morte

Esperada

Repentina

Seja, como no caso em apreço,

 Agravada por se tratar de uma morte por asfixia

Causada pelos gomos de uma laranja

Tornando este óbito tão especial

Num momento de revolta

 

Incompreensível e impregnado de emoção

A incredulidade é o sentimento emergente

Para além da perda de um ser humano

A todos os que ali estão

Para testemunhar as exéquias

 

Mas o momento de emoção

Deu-se quando o caixão

Saído do salão onde se havia recolhido

Para dar as despedidas aos mais chegados

Testemunhando uma breve alocução   

Se dirigiu para o crematório

Onde iria ser cumprida a máxima:

“Tu és pó”!

 

Debaixo do “Perfect day”

Do Lou Reed  

Aquela música suave

Que se vai arrastando

Que acaba arranhando a alma

Testemunhando o “dia perfeito”

Que imaginou que a sua despedida perfeita

Seria no dia do seu funeral

Que se pudesse ouvir aquela música em especial

Ela que sempre se expressou

Por sentimentos veiculados através da música

 

Mas a música e sobretudo a letra

Desconchava-nos

Pede-se

Passar um dia contigo

Acompanhado de coisas simples e vulgares da vida

Para se ter um “dia perfeito”

Todo o contrário destes tempos

Em que até as crianças são exigentes

 

Segue o caixão ao som da música nos breves e últimos movimentos

Até ao local onde será incinerado

 

Não, não foi um dia perfeito

Foi, sim, um dia trágico

Ver uma mulher que vencera

Terrível pugna contra inimigo tão cruel

Como é o cancro

E que morreu de forma tão trágica

E quando se esperava uma vida ainda pela frente

Teve, afinal, uma vida tão efémera…

 

E não podia ser nunca,

Aquele dia,

Um dia perfeito!

 

  

 

 

 

4 comentários

Comentar post

Mais sobre mim

foto do autor

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2025
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2024
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2023
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2022
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2021
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2020
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2019
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2018
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2017
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2016
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
Em destaque no SAPO Blogs
pub