NÃO…NÃO FOI UM DIA PERFEITO!
Por baixo da relva
Que eclode viçosa e espessa
Amplo manto esverdeado
Jazem sepultadas centenas de ossadas
Naquela terra tão impregnada
De odores e minúsculos seres
Que se alimentam de moléculas putrefactas
Necrópole acentuadamente contemporânea
Construída num talhão de cota baixa
Inabitual para estas edificações
Habitualmente edificadas
Em zonas mais altas
Mas,
Abrem-se os olhos
Para deixem fruir a minha alma ferida
Vasculhar todos os recantos deste cemitério
Onde eu, todavia, não penetrara
Incomensuráveis campas alinhadas
Remetem para um imponente desfile militar
Assinaladas
Revestidas a relva
Harmoniosas e a perder de vista
Que me dão a sensação de frescura e de vida
E não o habitual e gélido mármore
Ou o compacto e escuro granito
De repente, no meio da relva
Entre o corredor
Que permite a entrada dos carros fúnebres
E as sucessivas fileiras de campas arrelvadas
Vislumbro um pequeno lago
Que me ajuda a refrescar as memórias
Liberta-me dos pecados
Porque água significa pureza e cristalinidade
E nesta pequena mancha aquosa
De aspeto curvo e sinuoso
Vejo a vida como ela é
Ondulante e surpreendente
Ao contrário da morte
Que não tem movimento
Mas todo o seu contrário
O lago dá-nos a dimensão fresca da natureza
Como nos dá a relva
Já as campas de linhas
Tão absolutamente direitas e fixas
Dão-nos a dimensão de como será a morte
Penetrando mais adentro
Vejo no exterior de um edifício
As pessoas aglomeradas em pequenos grupos
Mascaradas
Como se cada uma delas
Estivesse num encontro
Em que se preanuncia a sua partida deste mundo
Que se olham
Inalteráveis e sem emoção
Que se miram
Mas sem verem os rostos
Na última e derradeira partida
E, estou certo,
Que na hora da despedida
Não haverá emoção no rosto
Porque esse foi-se com a vida
Mas almas despregadas
Como pirilampos nas noites quentes de verão
Que deambulam sem destino
Em volta das iluminações públicas
A força do mistério da morte
Parece interpelar cada um dos presentes
Que se agrava ainda mais
Pela dimensão universal desta pandemia
Seja
Uma morte
Esperada
Repentina
Seja, como no caso em apreço,
Agravada por se tratar de uma morte por asfixia
Causada pelos gomos de uma laranja
Tornando este óbito tão especial
Num momento de revolta
Incompreensível e impregnado de emoção
A incredulidade é o sentimento emergente
Para além da perda de um ser humano
A todos os que ali estão
Para testemunhar as exéquias
Mas o momento de emoção
Deu-se quando o caixão
Saído do salão onde se havia recolhido
Para dar as despedidas aos mais chegados
Testemunhando uma breve alocução
Se dirigiu para o crematório
Onde iria ser cumprida a máxima:
“Tu és pó”!
Debaixo do “Perfect day”
Do Lou Reed
Aquela música suave
Que se vai arrastando
Que acaba arranhando a alma
Testemunhando o “dia perfeito”
Que imaginou que a sua despedida perfeita
Seria no dia do seu funeral
Que se pudesse ouvir aquela música em especial
Ela que sempre se expressou
Por sentimentos veiculados através da música
Mas a música e sobretudo a letra
Desconchava-nos
Pede-se
Passar um dia contigo
Acompanhado de coisas simples e vulgares da vida
Para se ter um “dia perfeito”
Todo o contrário destes tempos
Em que até as crianças são exigentes
Segue o caixão ao som da música nos breves e últimos movimentos
Até ao local onde será incinerado
Não, não foi um dia perfeito
Foi, sim, um dia trágico
Ver uma mulher que vencera
Terrível pugna contra inimigo tão cruel
Como é o cancro
E que morreu de forma tão trágica
E quando se esperava uma vida ainda pela frente
Teve, afinal, uma vida tão efémera…
E não podia ser nunca,
Aquele dia,
Um dia perfeito!