O DEUS HUMANO
Quando morrem alguns
Não se podem dar ao luxo
Como os demais
De descansar em paz!
Desde as escrituras que a tradição manda
Descansem em paz
Mas há pessoas
Que adquirem uma tal grandiosidade em vida
Que acabam por se tornar mitos
Quase deuses
Carregados de carisma e de autenticidade
De uma força intrínseca e extrínseca
Que a pronúncia dos nomes em concreto
Transporta-nos logo para uma dimensão
Gigantesca, megalómana, mitómana
A que ninguém é indiferente
A propósito da morte recente
De um ídolo de dimensão universal
Era talvez a personalidade mais conhecida
Pelos bons e maus motivos
A que ninguém ficava indiferente
Será que, qual Citizen Kane,
Na hora da despedida proferiu:
“Rosebud”?
Ele foi, talvez, o primeiro ídolo
Mediático
Galáctico
Que preanunciou o que mais tarde viria
Quando ouço dizer
Que fulano postou na sua rede social
Sobre um qualquer tema em concreto
Redigindo, a propósito, uma breve e resumida mensagem
Invariavelmente muito bem redigida
Sensível
Profunda
Porque o momento assim o impõe
Mas, com que artimanhas do diabo,
Surgem estes ídolos que somem e seguem
Em vitórias nas pistas, nos relvados, nos pavilhões, nos palcos
E que deles apenas se conhece
Em público
Um discurso onde não abundam palavras de reflexão?
Tudo o contrário das suas mensagens escritas?
O finado ídolo era tão contraditório
Como todos os seus compatriotas o são
Onde não existe unidade em nada
Veneram os seus ídolos mortos
Como ninguém
Com a naturalidade que é tão comum
Aos do país das pampas
É por isso que é mais fácil
Que um elefante penetre num buraco de uma agulha
Do que encontrar dois naturais desse país
Que concordem um com o outro
É, aliás, a sua pele, a sua essência de vida
Numa sociedade forjada de emigrantes
Que nos dão a dimensão daquela comunidade:
Italianos, judeus, alemães e, claro, espanhóis
O que deu essa mistura explosiva
De povo que anda à procura da sua identidade
Tanto psicanalista numa só cidade de, ditosos, “bons ares”
Explicará, decerto, essa procura, essa dimensão feroz da identidade
Esse país está em permanente discórdia consigo mesmo
Discute-se com o amigo, com o vizinho e, claro, com o desconhecido
Mas discute-se também com quem se ama
Já imaginaram como será a relação entre os dois numa sociedade assim?
Mas o tango, as pampas, a patagónia e alguns glaciares famosos
Tornaram aquele país polar do sul
De formato de pera invertida
Que se dá ares de forte e que nunca desiste de pelear
Com o gigante ao lado que fala a língua de camões açucarada
Faltava, porém, uma personalidade
Que pudesse corporizar povo tão sentimental
Que deu ao mundo o tango
A que ninguém pode ser alheio
A sua musicalidade parece fazer vibrar as cordas dos nossos sentidos
Aquele povo tão profundo
Tão açambarcador da palavra
Tão teimoso
Tão casmurro
Mas tão excecional
Até nas contradições
E que deu ao mundo esse mito universal da literatura:
Borges!
Mas só aquele metro e meio de gente
Com uma fisionomia tão ergonómica
Que nasceu para ser jogador de futebol
E por onde passava era um furacão
Que conseguia chegar a tudo e a todos
E, sem medos, expressava os seus pontos de vista
Que até Fidel se rendeu ao seu gigantesco charme
À sua incrível arte de sedução
E ele à dele!
Mas prefiro mil vezes este mito
Que é um Deus para muitos
Mas um Deus humano
Do que mil heróis
Do que mil mitos
Da conta bancária
Onde o ter se sobrepõe ao ser!