O MEU GANGES
Correr atrás de ti
Como se eu fosse um néscio
Que, sincopado, se arremessa
Em dias sim
Em dias não
Para as tuas águas
Gélidas
Camaleónicas
Poluídas
Mas sagradas
Da sua caminhada ciclópica
Desde os Himalaias até à baía de Bengala
Vai engolindo velhos e novos rios
Carregados de histórias fantásticas
Descritos pelos sucessivos Panditas
Que, em cada recanto,
Explicam a essência do Hinduísmo
Testemunhar o ressurgir no horizonte
Dos primeiros raios de sol na Índia
Momento antológico do dia
Único, imprescindível, fundamental
Perceber a energia
Que,
Pela manhã,
A cada dia,
Eclode
Como se fosse uma gigantesca fogueira
Que cintila e aquece na manhã em que desperta
Aurora que se anuncia
Sempre esperançosa
Naquele incipiente silêncio
Captado bem cedo pela manhã
O romper do dia
Faz-me sempre lembrar
A primeira vez…
Que ouvi Waldemar Bastos
Que fui à escola
Que a mirei a ela
Que pronunciei a palavra nova
Estranha e a contragosto para mim
Que li algo novo que me desconcertou
Acordar pela manhã
Perceber que é mais um dia
Que não será igual ao anterior
É uma vitoriosa batalha conquistada
Ver aquele como um novo dia
E não a continuação
De dias e dias
Infatigáveis
Infindáveis
Onde tudo é igual
E o nada, que nada é,
Ganha contornos neuróticos
Sou um experiente e imponente arvoredo
Que já viu muito
Que conheceu árvores de várias latitudes
Frondosas e odoríficas
De folhas
Mais ou menos
Exuberantes
Detendo-se, a cada passo,
Com alguma em especial
Observando animadíssimo
As belas folhas, a imponência
E os ditames que o seu coração
Lhe foi ditando a cada instante
Adoro observar
As frestas encurvadas dos troncos
Aqueles nódulos resinosos
Como se ali estivesse
Toda a magnitude da natureza
Ou a minha própria vida empolgada
Por onde beberei a sua seiva
Gosto de sentir o vento a soprar forte
O verso a carpir as mágoas
A alegria expugnada dos exageros
Respirar o oxigénio
Que tão prestimosa sensação me transmite
Nos ótimos fluídos que me chegam
Até à profundidade dos meus afetos
Adoro a frescura
A agradável sensação de liberdade
De muitas árvores que crescem
No mais improvável espaço
E que parecem comandadas por um único impulso
Não desistir da vida
Não baixar os braços perante as adversidades
Que seria de mim sem as árvores?
Como ficaria eu se elas se ausentassem?
O mundo seria mais vazio e desinteressante
Sem os pássaros
Que se escondem
Que procuram refúgio
Que descansam
Que nidificam
Que cantam belas melodias
Nas árvores
Quem cresceu próximo da natureza
Seja no norte ou no centro
Com as suas imponentes florestas
Pululadas de contos celtas
Seja mais a sul
Com algumas das suas árvores
Que são formas de vida vegetal
Das mais longas da humanidade
Teve algures no seu passado
A sua árvore
E, nessa árvore,
Deslizou inúmeras vezes pelo seu tronco
Acima ou abaixo
E era ali que, soberbo, se sentia
Vendo o mundo circundante de cima
O poder imaginar
Que tinha poderes ilimitados sobre as coisas
Como se fosse um príncipe
Saída das incontáveis narrativas
De Hans Christian Andersen
Ver o mundo de cima
Deu-me
Pela primeira vez
Uma diferente perspetiva
Da dimensão que estava habituado a ver
Ver de cima
Ver de baixo
Ver no mesmo plano
Concedeu-me uma incurável fonética
De não me bastar ao óbvio
Mas ver, ver, ver sempre
Para além do óbvio
Do cinzento
Ou do apenas preto e branco
E ao ver assim
Percebi como diletante eu sou
O diabo não brinca
É astuto, engenhoso,
Tão ignobilmente interesseiro!
Mas, dentro de mim,
E mesmo que o diabo não queira
O Ganges vai continuar a correr
Para Bengala…