O SARDÃO AZUL
Com o olhar abismado
Na paisagem absolutamente sublime
Que se mostra
À contemplação dos olhos
E ao crivo dos sentidos
Cismado a pensar no amanhã
Perplexo com tamanha verdura,
A esperança num mundo melhor,
Tanto serra
Que acaba cerceando a visão para além dos limites
Tantas árvores
Que preenchem infindáveis manchas de território
E algumas estradas que acabam derrubando o isolamento
Afiançado pela dimensão da beleza
Com que, por vezes, a natureza se mostra
Que deixa qualquer um assombrado
Pelo seu visionamento
Depois de alcançar o alto da serra
E é, pois,
Sentado nas velhas fragas
Que se assemelham a edificações
E criam a ilusão de habitações em granito
Edificadas no cume do monte
Que, em silêncio, podemos ficar em transe
E em permanente estado de contemplação quase absoluta!
O jovem pastor
Exausto de deambular pelas serranias circundantes
Acompanhando as suas orgulhosas cabras
De quatro patas almofadadas nos cascos
Que lhes permite irromper por ali acima
Sem sofrer qualquer contrariedade
Munidas de insaciável apetite
E que vão adubando o solo com uma fúria assinalável
Deixou-se quedar uns momentos em contemplação absoluta
E dali, para além de ouvir o vento a declamar palavras de circunstância,
Escutar, aqui e ali, o som de velhos motores de automóveis
Que vão procurando vencer os desafios
Impostos por uma estrada ziguezagueante
Paralela ao rio que corre suave e sublime
E se mostra à contemporização de um olhar
Nos vários prismas e nas múltiplas colorações que é possível avistar
Eis que o pastor se silencia ainda mais
E se queda absorto no envolvente
No que os seus olhos vêm
No que os seus sentidos sentem
E no que os seus olhos alcançam
E neste canário depara-se
De ouvido apuradíssimo
Que lhe chegam sons que se assemelham
Ao som do rio
Aquele deslizar esfuziante da água a correr
Em fundo e na ladeira lá em baixo
A deslizar em direção ao mar
A exibir as suas águas esverdeadas
Rendilhadas de fios esbranquiçados
As correntes que o próprio rio vai gerando
Que parecem fios em prata
Enfileirados nas vestes dos toureiros
Ao fundo avisto a barragem
Que acabou por domar as suas águas
Que no passado tantas vidas tirou
Diz-se até
Que um certo barão se afundou no rio
Por causa da quantidade de libras que levava nos bolsos
Mas diz-se também
Que outras vidas não tirou
Por certo uma exata senhora
Cuja saia rodada que trajava
Serviu de boia e salvou-a
Mas, indiferente ao desastre,
O rio era como que um alma penada
Que deambulava por aí
Acelerava nos rápidos
E tornava a navegação quase impossível
E descansava nas levadas
Fugindo ao seu velho destino
O que fazia com que as embarcações quase se imobilizassem
Nesse entretanto,
O pastor puxou de uma gaita-de-beiços
E pôs-se a tocar furiosamente
As cabras, impassíveis, continuavam a sua azáfama
Mordiscando e engolindo a erva abundante no solo
Para, de seguida,
Encetarem outro movimento mais abrangente
Procurando outro quarteirão
Para voltarem a comer a apetitosa e fresca erva
De repente,
O pastor avistou um sardão
Revestido com o seu garboso manto azulado
Que saía de uma fresta de uma das rochas
E que se deslocava pachorrento
Até uma parte da rocha onde tinha todo o sol
Que um qualquer sardão
E aquele em particular
Que dava ares de ser já um vetusto sardão
Podia desejar
Mas o sardão ignorou por completo o pastor
Pôs a sua cabeçorra para a frente e ali ficou
Esticado e imóvel ao sol
O pastou olhou-o demoradamente
E não se conteve
Lançou do cajado
Devagar e sorrateiramente
Mas, ao mesmo tempo, continuava a tocar na gaita-de-beiços
Velhas modas que o pai
Que foi pastor toda a vida
Lhe ensinara…
E então quando passava por um trecho musical
Mais agressivo e rápido
Vibrou uma forte pancada
Com o seu cajado
Na direção do sardão
E este nem teve sequer tempo de fugir
Ou de esboçar uma reação
Quedou-se imóvel e fulminado pela ação do pastor
O que nos pode matar
Não é a nossa força
Que amedronta os outros
As nossas fraquezas
Ou as nossas ações em concreto
Que podem dar força aos outros
Mas sim as ações ou inações
Dos que não estão em paz consigo mesmo!