Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Artimanhas do Diabo

Artimanhas do Diabo

O ÚLTIMO NATAL

          Debaixo do viaduto Alcântara Machado, no Mooca, situado na Avenida Alcântara Machado, zona bem central da cidade de São Paulo, há uma comunidade de moradores de rua.

Ali também existe uma escala social gradativa: os que conseguiram erguer umas barracas em madeira e ali vivem com relativo conforto, sobretudo nos dias mais frios, e São Paulo não tem propriamente o clima do Rio, e não é obviamente caraterizada pelo eterno bom tempo tropical por exemplo do nordeste; e os restantes que vivem em tendas, muitas delas improvisadas, feitas com plásticos que vão sendo colocados por cima de umas tábuas que suportam os plásticos.  

          Ali ermita, desde há uns meses, naquela comunidade sem lei, sem escrúpulos e que vive numa autêntica selva urbana, Ismael dos olhares dos paulistas que passam assoberbados nas viaturas a velocidades vertiginosas a caminho, sabe-se lá de onde! E muitos daqueles que ali vivem, é verdade, que há ali caras que são pessoas honestas, de ocupações laborais temporárias, muitos deles indocumentados, são o que o sistema brasileiro chama de desbancarizados, situação que a pandemia veio pôr a nu pois foi necessário que o governo federal acorresse para evitar uma catástrofe humana gigantesca, mas a maioria, como Ismael, não tem qualquer ocupação e o que faz mesmo é dedicar-se ao consumo de drogas, mais ou menos ligeiras, dependendo da grana que tenham no momento, e alimentam o vício de pequenos furtos e pedindo nas ruas, muitos deles concentram-se na praça da catedral, ali bem perto da chique e rica Avenida Paulista!  

          Muitos dos paulistas que passam nas suas viaturas em velocidades vertiginosas pelo viaduto, e pelas dezenas de viadutos em que a cidade é fértil, fazem-no com espírito maligno quanto aos moradores de rua, sobretudo desde que o atual inquilino do Palácio do Planalto passou a ali despachar, e opinam que esta gente que mora na rua, pura e simplesmente, não quer trabalhar, são mandriões, pilantras, vagabundos sem vergonha, como apelidam os ideólogos próximos das bancadas senatoriais ou congressistas ligados à bancada evangélica, ruralista ou da bala, todos eles entusiastas apoiantes de Bolsonaro.    

          Ismael chegou ao Brasil pela mão do irmão que, farto de o ver nas ruas de uma pequena cidade portuguesa, com problemas sérios com as autoridades policiais e judiciais, e vivendo sabe-se lá onde, em casas abandonadas sobretudo, e já com problema de dependência de drogas, resolveu financiar a viagem do irmão para o Brasil para casa de uns amigos que vivem no chamado ABC paulista, na cidade de São Caetano. Estes rapidamente se aperceberam que Ismael não só não queria trabalhar como a Polícia Militar já andava em cima dele por causa de uns furtos e como não queriam ter problemas com as autoridades pois os lusodescendentes têm fama e o proveito de serem pessoas, que até podem ser alvo das piadas mais jocosas e pouco abonatórias de inteligência, sérias e não querem problemas com a polícia. Certo dia Ismael fugiu para o centro de São Paulo e foi viver para o viaduto com uma nordestina que ali vivia, viciada em crack e que acabou por morrer de overdose. Ismael passou a viver debaixo do viaduto acoletado sob umas lonas e uns plásticos entrelaçados e costurados uns nos outros que davam um aspeto de cabana improvisada. No exterior e nas imediações do seu abrigo acumulavam-se uma multitude de peças de lixo, desde sacos carregados de entulho, garrafas vazias de bebidas alcoólicas que parecem plantadas a esmo no solo, papéis e objetos metálicos variados igualmente espalhados pelo chão, que davam um aspeto caótico, imundo e nojento a todo o envolvente que se observa nas várias dezenas de barracas improvisadas que por ali se erguem aproveitando a proteção do aqueduto. Ali tem vivido, de facto, Ismael, ele próprio já perdeu a noção do tempo em que ali vive. Mas Ismael, como não lida com o conforto de uma casa feita em tijolos e cimento há uns anos, estranharia se de repente fosse morar para uma habitação normal, e nem precisaria de ser uma habitação sofisticada, uma simples casa em tijolos, sem vidros e com umas portas bem rudimentares, dessas que abundam nas periferias faveladas das grandes cidades brasileiras, rejeitá-la-ia sem demora…

          A vida de Ismael teve aquele destino no Brasil porque se encrencou em Portugal. Chegou a ser condenado por violência sob a sua companheira de então, também toxicodependente, que teve que receber tratamento hospitalar e acabou por confessar que foi o seu namorado o autor.

O irmão de Ismael, perante a situação por que passava este e porque também já há uns tempos que sentia vergonha do irmão, que deambulava pela cidade na maioria dos dias debaixo de substâncias químicas, e dos múltiplos recados e receios da mulher, cujos filhos viam no tio um empecilho a uma certa ascensão social, resolveu tomar uma decisão e conseguiu aliciar o irmão a partir para São Paulo.

          No dia 24 de dezembro em São Paulo vive-se a chegada do verão, temperaturas altas, humidade abundante e chuvas copiosas. Esse natal, para Ismael, parecia ser mais um como nos últimos tempos, debaixo do efeito de substâncias psicotrópicas, cola de sapatos incluída, que o deixava prostrado no interior da cabana improvisada a maior parte do dia e noite, e só saía praticamente para fazer as necessidades fisiológicas, quando ainda tinha algum discernimento, pois muitas vezes fazia-o no interior da tenda improvisada.

          Nessa manhã do dia 24 de dezembro, algo de extraordinário aconteceu na vida de Ismael. Por volta das doze horas da manhã foi acordado pela voz de Seu Jorge que tocaria numa rádio ali bem perto, e viu uma áurea de uma luz forte e luzidia que penetrava a sua cabana e que o iluminava intensamente. Uma voz dolente, macia e suave, invadiu os seus ouvidos e perguntou-lhe se não queria ver as pessoas que ele conheceu ao longo da vida? Ismael, atónito, agitou afirmativamente com a cabeça e começou a visionar os pais, os dois irmãos, os sobrinhos e todos os que conheceu em Portugal, as ruas da cidade por onde deambulou desde criança, até se lembrou do rosto da juiz que o condenou a uma pena de prisão suspensa na sua execução debaixo de certas condições, uma senhora magríssima, que falava muito depressa vestida de uma capa negra que lhe realçava a sua tez clara e os olhos azuis, e Ismael até viu o sangue a escorrer pela face da sua namorada responsável pela sua ida para o Brasil, os gritos alucinantes desta a tentar limpar o sangue da face. E o curioso é que só tinha recordações de Portugal e praticamente do Brasil não era atacado por nenhuma imagem, parecia que tudo se desvanecera neste país.  

          Por fim, agitou o braço, esticou-se e caiu de rompante perante o que se anunciava ser uma apoplexia maligna e fatal.

          No dia seguinte Seninho, foi à barraca improvisada para pedir um cigarro e deparou-se com o cadáver de Ismael.

          Veio a polícia, vieram os serviços de tanatologia municipal, levaram o corpo e enterraram-no numa vala comum, sem honra nem glória, como se fosse um invisível cidadão que veio ao mundo para ser sepultado em lugar tão longínquo e incógnito; melhor seria na sua cidade natal em Portugal, junto aos seus.

          Realmente a única glória que se poderia dizer que Ismael teve nesta vida foi ter perecido no dia de natal, no que de significativo e simbólico possa isso ter!

            

Mais sobre mim

foto do autor

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2025
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2024
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2023
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2022
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2021
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2020
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2019
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2018
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2017
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2016
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
Em destaque no SAPO Blogs
pub