PRAIA
Tanta areia
Onde
Placidamente me deito
Tanto mar
Valente e vigoroso
Que não cabe na minha imaginação
Tanta luz
Que se abre aos meus olhos
Tantos odores
Que me desassossegam
Tanta memória
Que vive dentro de mim
Dos tempos de jovem
Em que a praia era divertimento puro!
Percorro o espaço
Que ainda não é mar
Que ainda não é praia
De areia
Húmida
Dura
E impenetrável
Que acolhe meus pés
Inquietos,
O vento
Saúda-me
E vem-me a vontade de o desafiar
No seu jeito colossal
Vislumbro sua tela esfíngica
Que me interpela
seu olhar decidido
Que prende meu olhar
E capta toda a minha atenção
E sem que eu possa decidir
Sobre o que fazer
Acabo por me deitar
Sem toalha
Por pura diversão
Na areia seca
E fico parecendo
Um desses biscoitos areados de açúcar!
Ao longe
Um ressoar
Metálico
Do que parecem ser
Carris percorridos
Mais perto
Leve soar das horas
Nos sinos de uma igreja
Em cima de mim
Uma voz
Que interpela a todos
Um vendedor de bolas de Berlim
Que parece levitar sob a areia
Num passo célere e firme:
- Uma com creme para mim!
Dispara um veraneante
Uma criança que chora
Um pai que se irrita
Uma mãe que discute com o marido
Um cão que ladra nervosamente
Um pescador na praia
Distante
Que agita a sua cana
Lançando o isco para o mar
Um barco silencioso
Que em pranto
Me vai interpelando
Ora, parecendo engolido
Ora, em crescendo,
No meio do mar;
Então, onde as ondas rebentam
Interpela-me uma trágica lembrança
Dos homens que perecerem nas ondas de rebentação
Engolidos pelos rugidos do mar
Escoltados pelos gritos
Em desespero das vareiras
E em que o sol parecia se extinguir
E nuvens negras descerradas
Acompanhavam suas almas temerárias
Na derradeira viagem até ao infinito;
Mas não vejo mar
Não vejo terra
Não vejo futuro
Não vejo presente
Vejo
Sim
Passado
Que, como uma espinha,
Trespassa a minha garganta
E já não vislumbro
Aquelas comidas carregadas de odores fortes
Devoradas na praia
Ao compasso dos relatos da Volta à Portugal em bicicleta
Aquele momento em que parecíamos todos ficar encantados
Pela descrição dos radialistas
Que faziam chegar até nós
As façanhas mais prodigiosas dos heróis em fuga
E já não há praia
Mas sim areia acumulada
Que nos faz sonhar em vão
Que nos faz arrepiar as tentações
E onde até o mar
Já não é mais azul puro
Mas um manto untuoso
De coloração esverdeada
E até os peixes
Cada vez mais raros
Parecem ter perdido a honra
Já não fogem
Já não saltam
Parecendo suicidas
A entrar voluntariamente
Nas redes longas
A caminho da morte certa!