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A tua voz
Não me é estranha
Como se alguma vez o pudesse ser?
Ouço-te desde o dia em que abri os olhos
Respirei profundamente
E vi a tua silhueta
Que empubescia no interior da minha memória
Cravada na garupa do cavalo
Montado pela bela amazona de cabelos longos tisnados;
Essa tua voz
Que é a minha também
Leva no regaço os nossos desejos mais ternos:
Um fogo incessante que se ateia glorioso
Água que jorra
No prazer irrepetível de um grito
E lá bem dentro do que mais fundo nos une
Guardamos as sombras interiores
Que, por vezes, tantos nos inquietam
Para que o mundo caminhe depressa;
Um rio que se destapa
E na encruzilhada de uma ilhota
Acaba separando-se em dois longos braços
Afanoso e rebelde
Que, atrevido, deixa fluir
A força das suas águas
Onde cada pequeno leito
Brilha na jactante correnteza
Seguindo a sua marcha
E é quando mais à frente
As águas do mesmo rio se voltam a encontrar e a abraçar
Águas que correm desde o berço
E eu volto a escutar as nossas vozes…
As nossas vozes são romarias
Que bailam no calor de uma noite de verão
As nossas vozes
São a harmonia silenciosa das nuvens
As nossas vozes
As nossas vozes
São o vigor que alimenta o nosso ser
E não se destapam pela sua singularidade
Antes, envolvem os nossos ossos
Recobertos de pequenas falhas
Que vituperam a nossa carne
Na malsã corredura de uns tantos
Que se escapulem sempre
Para uma inenarrável estreiteza de vistas
Para enganar as suas vidas
De mais um pachorrento dia!
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Em certa noite tórrida
Debaixo de um intenso luar
Cintilando milhões de estrelas no céu escuro
Debaixo de um infatigável sobreiro
Os deuses há muito
Se reuniram
E desse conclave saiu
Um plano arquitetado
Para o tálamo anunciado
Que casasse a simbiose perfeita:
A natureza
Ali tão prodigiosa
E a vontade e a concretização do sonho do Homem
Que ali parece tão excessivamente difícil,
E edificando nesses montes
A paixão de um rio pela redenção de toda uma região
Colinas apertadas
Que recebem nos seus braços
As águas verdes
Que nascem em Sória
E acabam lançadas em torrente
Como louca paixão de adolescente
Nas águas salgadas do mar junto à foz;
Este rio mítico
É o sangue que corre nas veias deste Douro
Cobre de verde
O manto de Sua Majestade
Águas prenhes e revigorantes
Que vão gizando o caminho
Serpenteando falésias
Suavizando a paisagem
Águas que não se cansam nunca
De deslizar silenciosas pelos desfiladeiros
Ora, ondulantes no sentido da foz
Ora, serpentando na direção de Espanha
Por entre penedos gigantescos
Consolidados pela terra
Ó quanta terra
Que endureceu
Teu solo seco
Escamado de lajes xistosas
Pisado pelos heróis
Que nunca viraram a cara à luta
E fizeram lindos bardos de videiras
Que ciclicamente dão à luz
Prodigiosos néctares;
As tuas fragas
Sustentam esse chão majestoso
Por onde os javalis sulcam o solo
Tão selvagens como fugidios
Medra corredia
A astuta raposa
Saltitam
Os fugidios coelhos
E onde nas alturas
Debaixo de intenso céu azul
Reinam os grifos
Que parecem vigiar as águas do rio
Que o tornaram num espaço
Pejado de construções geológicas
Tão lindas de cortar a respiração!
De súbito, vejo deslizar pelas tuas serenas águas
Uma embarcação que transporta turistas
Até às profundezas mais longínquas navegáveis do rio
Transportando sonhos concretizados e por realizar
Alguns do tamanho desses montes que acolhem as águas do rio
E é a vindimar
A lancetar os pequenos braços da vidreira
Onde pendem lindos cachos de uvas
Que acabo a lançar um olhar sereno ao distante barco
Que navega as águas desse rio…
E, não resisto,
Aceno com a mão direita
Protegida por uma luva
Uma saudação especial
Uma e outra vez
E nem um apito soa no barco
Nem uma pequena saudação
Ignorando-me olimpicamente
Me dirige o grupo de turistas
Que descansa em prazerosas cadeiras ao sol
Deixando-me de sorriso inerte e expetante
Perene de dúvidas
Se aquelas pessoas ociosas
Sabem que hercúleos esforços foram precisos
Para que pudessem apreciar
Beleza inigualável como aquela
Linda de cortar a respiração
Ou de apreciar o sabor inesgotável
Dos melados mostos
Que com a idade acabam tornando-se
A bebida dos deuses por excelência!
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Vão-se os meus dedos
Sonâmbulos
Apaixonados
Longos
Bravios
Competentes
A tatear a tua pele plácida
Lustrosa e pura
Que parece uma sadia nascente
A refletir os raios de sol em dia cintilante;
Bebo pela concha das tuas mãos
A água transparente
Acabada de colher
Da levada desse rio
Sem fim
Onde nadam placidamente
As boas almas
Que pululam livremente
Nessa tua mente abençoada;
Deixo-me levar pela correnteza das águas
Esqueço-me para onde vou
E de donde venho
Quero apenas sentir
Neste sereno momento
Esse manto transparente
Que tão bem te ornamenta
E que não me olvido
De o evocar de cada vez que te vejo
Com esse chapéu tigrado
Pousado na cabeça
Matizado de amarelo e laranja
De olhar fixo no chão
Porque duros e cruéis
Podem ser os olhares
Que há muito te perseguem
Nesse passo elegante
Que tão bem te carateriza
Enlevado
Resplandecente
Exultante;
Esses minúsculos sinais
Pequenos oásis no deserto
Que cobrem teu corpo
São a prova inabalável
Que nutres pelo Amor
Essas subtis manchas
Plantadas nas tuas pernas
Evoca-as tantas vezes
A massajá-las suavemente
E a ouvir tuas exclamações de prazer
Que saem desses teus lábios tão doces
Que parecem néctar puro de lavanda
Quero as tuas mãos
Os teus dedos
Os teus braços
O teu peito
As tuas pernas
E mesmo esse teu corpo sofrido
De mãe
É para mim reconfortante
Vê-lo a medrar perante o meu olhar excitado
E é aí que cavalgo a minha paixão
E é aí que não me atrevo sequer
A pensar
Em deixar-te para atrás
Porque isso seria
Deixar-me para trás
Também!